Hidrografias ou vestígios da correnteza

Interstícios da enchente

(…) são feitiços do verbo PARTO ORIENTE-me pelas águas turvas de folhagens densas o som é delgado como varetas de pipa é grande a envergadura para que seja resiliência nadar entre as águas de algas emaranhadas como os cabelos da Yara cabelos verdes e pele escamada furta-cor mil-homens é a folha só o sumo das folhas os galhos queimam estalando lenha verde faz fumaçar sinais de fogo para dizer ao Povo Vento as ventanias que sopram por cá ao norte e ao leste PARTO ORIENTE reboso de onde me dependuro numa corrente circular de outras que beiram o abismo SÓ COMER E SÓ FALAR AQUILO QUE CABE NA BOCA (…)

Dezembro 2016/ Janeiro 2017: São Luís/MA (nos confins de um doutorado)

O mergulho nos poros, os desviantes das encruzilhadas o povo todo que tentei evocar para essa escrita… Dar conta. De um repertório de capital cultural e artístico, e dar conta do que é do desejo e das utopias todas que caminham junto desse corpo político. Percebo agora que o processo dessa escrita foi viver este corpo atravessado em múltiplas direções e dimensões e tentar traduzi-lo. Traduzir em linguagem palavral, imagética, física em matérias impermanentes o espaço de experiências que marcam este corpo que fala. As marcas marcam também toda a cadência de uma fala e por isso importam. E contando estória, fazendo o exercício da autoficção-científica como possibilidade de recriação de mundos e histórias que foram apartadas, sequestradas de nossos compêndios de saberes e acessos, de nós que habitamos as bordas. Fica este falatório gago de quem esfrega as mãos suadas e sente as gotas de suor escorrerem pelos pelos do sovaco como quem apresenta trabalho no colegial faz entrevista de emprego fantasiada de pessoa de bem ou presta concurso público ou faz uma performance com a buceta aberta com um espéculo. Só que nesse corpo aqui, impossível falar por outro que aqui não está. Ainda quando há as parcerias há que se olhar e acarinhar as diferenças, as polissemias que semeiam o que comemos, daquilo que vivemos. Em latifúndio se planta monoculturas, são várias repetições do mesmo. Nessas ideias das narrativas por malhas, na construção de histórias por outras vozes, descolonizar os corpos ou ao menos reconhecer onde em nós habita o colonial, as agriculturas são geridas pelo conhecimento da terra. Cada tempo é um tempo de uma coisa em cada estação uma diferença na geografia no clima… E o ritmo é de quem caminha em terrenos lodosos, corre na areia, serpenteia no mato. Corpo aqui sempre deslizando… As línguas deslizando uma sobre a outra de um lado para o outro… Então, foi sobre tecer epistemologias, narrar sobre trajetórias e caminhos para escrever fora da pauta preparada antes de saber; ajuntamentos de modos de viver que gozam por outros meios. Estes repertórios deslocados apresentados aqui e as narrativas fora de esquadrinhamento fazem parte de um processo de produção de conhecimento que parte da experiência do corpo que escreve escrevendo. Aquilo que se faz fazendo… gerundiando… como no telemarketing onde trabalhava no aeroporto de Congonhas em 2005. E na tentativa de fazer dessa escrita e pequenos métodos coisas acessíveis e possíveis para quem trabalhou comigo em 2005 e continua no telemarketing. Ou para as pessoas que cito aqui, durante todo o trabalho que se segue (ou seguiu, depende de que lado você samba…), que não fazem parte do circuito por onde os trabalhos acadêmicos costumam circular, possam fazer desse texto que escrevi algo delas, que as pertença de alguma maneira também. Só caminhando se faz o caminho, caminhante. E agora que é antes de terminar, mas é o fim escolhido para acabar com o juízo de não saber colocar um ponto final final, é que percebo que a angústia e o arrepio de finalizar este livro mora nesse dar conta de reverenciar todo o sangue derramado, toda sangria feita pela cura, todo corpo que transpira na celulose do papel, que para além do vômito da bomba, da dor que é companheira antiga neste processo de pesquisa e de vida, de todas as mortes que habitam aqui, que isso aqui e esse corpo aqui sejam um canto em coro que convoque a vida para dançar no som das explosões, nos fragmentos de silêncio expandidos que flutuam no estilhaço.  AGORA SOU UM COÁGULO, UMA ASSOMBRAÇÃO, UMA CONTRADIÇÃO. Inspiro fundo… Expiro… Ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssse Entrego.


Janeiro 2019: entre santos (Paulo e Luís)

Era terminar um rito de passagem pela aquisição de títulos de nobreza para então habitar essas ruínas assombradas de São Luís. E era um desejo de ser cavalo. Mas eu não parei de me assombrar com a morte. Mas não parei de mergulhar em profundidades abissais. E nesses mergulhos, o movimento de afastar-se da superfície não é tão evidente assim.

É antes de tudo um planeta em contra(di)ção. Contrair, expulsar, dequitar.

Duas vezes a ação de voltar: a re-volta. Três vezes se bate na madeira para que o mal não pegue. Mãe pragueja e fala alto. Sabe ser silente também. Sabidos sabiás assoviam. Aquele mato que faz remédio para a cabeça dos rins. A folha que faz banho cheiroso. A casca que ferve e limpa das entranhas o sal de pedra, a mágoa, o embuste. 

Não contar e ainda assim contar.

Eu contava os dias e enumerava semanas e contava as gotas de suor do rosto no calor úmido e de corpo cheio. Precipitações.

2017 / 2018: nos inícios da maré cheia (dentro)

(…) somos o peso dos ossos na carne nossos ossos nas nossas carnes água meu corpo é feito de água não sei como não escorre pela terra eu era feita de pedra areia e tijolo agora sou água e sal uma medida de ph e densidade hoje foi mais brutal e tive medo de me desconhecer no espelho eu era só um vulto agora raiz e espasmos (…)

(…) a coisa mais velha do mundo em paridade com as coisas que se formam no universo pó de estrelas restos de planetas implodidos para criar corpo forma densidade ossatura líquido e viscosidades espanto e choro incontido volteias as voltas na margem do útero expandido marsupial no sonho onde a comunicação é por extenso extensa via láctea lactante bicos prontos para o jorro é possível o gozo a partir de cordas que envolvem o corpo de dentro e de fora poroso poço posso entremeados de novembro germinar para num agosto mais espesso expandir telúrica (…)

Raposa baleia serpente-que-devora-outras-serpentes corpo celeste cadela cavalo marinho boto vaca réptil mamífero marinho corpo cabaça pedaço de mundo núcleo de esfera fera bruta selvagem animal não doméstico rebelião de seres embarcação voadeira biana bote canoa afronta nossa vida é uma afronta planta de raízes móveis eles que pensam que as árvores não caminham raiz raiz maíz Pacha que me guia abre expande torce estala a bacia estala como galhos de mangue que conversam entre si sou planta de manguezal prenhe de vidas e me julgavam morto eu manguezal urbano cheio de lixo me regenerei junto aos outros mangues (…)

2017 / 2018: líquidos entornados entorno (da bacia) e os auspícios das marés baixas (conta gotas de revés: des-encher)

(…) o suor me escorre da pele o corpo sabe e a razão tenta esconder os avisos pelos sonhos o sono enviesado a encantaria correndo léguas teu corpo diz “não quero esperar” eu digo “vou já” pela manhã madruga dia uma primeira tempestade te anuncia te grita das águas que invadem o quarto pela fresta das janelas ser de água e luz trabalho teu parto como ebó e gira corpo de barravento pra te proteger do sereno do mundo corre dia não enxergo mais as coisas apago a luz da baia que me é designada me apago desse mundo o que vejo são vultos luzes e minha avó sentada na cadeira defronte a nós rebolar uivar andar de quatro redonda circular o espaço quarto crescente em qualquer lugar é possível ser selvagem EM QUALQUER LUGAR É POSSÍVEL SER SELVAGEM quem vem comigo são as ayabás as amazonas tapajós guajajaras ê a caboclada nos examinam dedos na vagina dilatação 4 5 6 7 8 mijar de quatro na cama o cheiro de buceta domina todo o ambiente as batidas do teu coração forte como eco espectro tem marcas indeléveis e invisíveis que só nossos corpos habitarão (…)

(…) uma desaparição às vezes é preciso desaparecer desapagar para dar espaço para nada ser é como um tipo de reencarnação e habitar esse novo corpo velho desusado era um que virou dois que era dois em um que era o desacreditar que era o crescente que virou cheia até explodir quando o dois que era um resolveu ser um fora daí acreditar e seguir acreditando são desesperos condensados no meio da felicidade em volta dela por onde não sabemos ou não queremos ver há traumas e colapsos há desamores e coisas arrancadas deixando raízes fraturadas há uma carência absurda (…) acredito no revide a solidão é estruturante na ma-trans-ternidade

Hoje me sento para conversar com o Tempo é tempo de perceber as rotações torcer para dilatar expulsões contorcer os ritmos é num aboio mais grave [ ] é o caminho sentar-se diante do tempo é observar o assentamento das almas no espaço de vida as palavras se afogam nos fluidos que vertem correntes elétricas que desaguam pelo corpo ESTA É UMA FÁBULA PERINATAL é pelas bacias que posso falar nas vozes do tempo pela minha bacia suas vozes no tempo dobra e mais uma vez e outra vez e outra vez diz-torce a violência divina pegam fogo as matrizes para que não haja mais cópias asas finas que dobram as contagens mil cópias quebradas e os dedos estilhaçados pela própria boca foram dois dias de banhos [ ] agora chove depois de tanto tempo sem pingar do céu PRECIPITAÇÕES não temer o erro tomei as pancadas da primeira chuva de lava 15 de outubro

2018: escrever com os olhos

O relógio virou na meia noite. É lua cheia e um grande clichê arrodeia pelas órbitas oculares. Trepida o peito. Não saber mais o que se é. Refém recém chegado ao cativeiro. O encontro se gera se gesta e regenera camadas esquecidas. Cada mormaço em cada pele que retesa de calor amolece e flui pela umidade relativa do ar e o suor pode brotar fresco. O suor. As mãos que se esquartejam frias esperando a hora do jantar as pausas indecentes mínimos silêncios em cada testa que deixa vazar palavras enrugadas pelo pulsar da língua entredentes. No canto da boca uma palavra caída não dita. Em cada canto de cada boca uma palavra caída maldita escorrendo aflita. Cada sela espera por um cavalo em cada cela sela pactos com a palha e os tijolos o barro grosso e vermelho como uma cara branca ardendo no sol da palma da minha mão. Pisando com as mãos a amassar as construções em palcos de danças da besta fera. A era erra. Não ouso dizer um romance nem coisa alguma destas nefastas que cheiram a naftalina e lembrancinhas de casamento empoeiradas aqueles sabonetes envolvidos em filó com pequenas rosas mentirosas fechando o pacote falso. Não ouso falar nestes termos que remontam a coisas esquecidas em quartos que ninguém abre. Não quero dizer dessas coisas que me dão calafrios e fogo nos pés. 1, 2, 3, respirar para desopilar as artérias da cabeça. O ar está pouco aqui. Mas eu respiro bem debaixo d’água. É o encontro e a falta que ele faz. Era lua cheia e ainda é. 

Para virar a festa para parar os relógios com os pés. Em vielas o corpo se esconde atroz. O corpo não é são. São corpos e nenhum são. São elas Paulo e Luís cada cidade em sua ilha e um rir de janeiro entremeios entranhecido. É um desencontro um descompasso os ponteiros tropeçam e o encontro se esquiva. Se perde nos escombros da cidadeassombro. As sobras as sombras e um desdizer constante.

Franze as sobrancelhas junta as pálpebras úmidas e os cílios podem agora molhar sem demora. A seguir a seguir… E uma após a outra pinga gota grossa. É chuva. Sobe o cheiro de mofo; ideias velhas vazias. Juntei meus olhos e derramei no fogo. Pague meus honorários e desvie das ratazanas na calçada. Cuidado: eu ainda existo? Ainda… anda fala e ouve vozes. É pela boca que reconhece as coisas do mundo. Boca vazia sem dentes e uma língua que dança ensaiando palavrório. Há um cansaço inabalável em cada olheira. É muita água.

Enquanto des- espero a pia continua cheia de louças sujas de ontem, as roupas não secam no varal. Três lâmpadas esperam ser trocadas, as contas aguardam a paga, os panos de chão fazem aniversário no balde com água sanitária, coisas amontoadas na fila de um destino mais justo. Somos essas coisas amontoadas esperando uma justiça que não vem. Des- esperando. As mães fazem isso… Nos des- esperam enquanto dançamos frenéticos aos ritmos etéreos do som da rua. Minha mãe, a sua mãe, eu-mãe. Puta Madre. A carta de número 22 sobre a mesa, Heyokah dançando a vida e a morte. Eu-mãe nascido do morto eu-filha. 

O invisível. Prudência. 

Uma lacraia gigante com patas de elefante e ferrões de arraia faz sua coreografia peçonhenta no chão do banheiro. Água quente para mudar de cor. Num braço carrego uma criança que ri na mão oposta três serpentes vivas. Meu semblante é soberano olheiras púrpura. Os dedos do pé empurram o chão até o inferno. Estou em pé um seio mais cheio que o outro. O corpo repleto de algas cabeça exposta ao vento. Silêncio. Uma rajada de pedras. 

Continuo em pé, a criança crescida ainda ri, serpentes em riste. Vou queimar o sol com meus olhos. Esse cansaço não me abala.

Janeiro 2019: São Paulo/SP

(…) no delírio da carniça. Aqui tem esgoto descendo a rua junto com nossos passos. Águas envenenadas de abandono, impossível negar que vim daqui. Os rios pesam toneladas para além e correm como uma superfície densa de metais, óleo diesel, trilhos, chumbo e animais mortos: Pinheiros, Tietê, Pirajussara, os córregos na beira das casas da beira. Pra trabalhar às quatro da manhã todos os dias minha avó atravessava uma pinguela nas ruas sem asfalto. Por baixo corriam águas verde lodo com cabeças de boneca e outros membros desencontrados em decomposição. Nas férias da escola eu ia com ela. São Paulo. O esgoto a céu aberto onde nasci. Periferia sul, Jardim Santo Antônio, Capão Redondo, Grajaú. Eu vim daqui. 

Agora que a buceta está destampada minha boca pode falar. Eu falo

Esperar e des esperar. A placenta o coágulo o resto de parto. Escorre o sangue derrete a cara desfigurada da dor dos movimentos para coroar e expulsar a nobreza ancestral que sai da caverna da montanha. O tempo murcha o corpo que pari esse corpo não para não peça que eu pare. Nas pentecostais neonazi militares eles rezam para suas armas suas pólvoras suas bíblias com cheiro de morte matada. Aqui no útero degenerado, na buceta que fala, na cria insurgente e inviolável, brotamos do nada. Somos parentes da água e da terra, viemos da lama e reconhecemos no raio e no trovão o brilho de nossas vozes. Nós falamos no sotaque das plantas que curam feridas do açoite e sequelas ancestrais. Também para dar de beber aos sinhozinhos e sinhás como o feitiço que nos libertará. É no cuidado…  Nós sabemos o bem e o mal que faz cada coisa, o que se vela e o que é velado. É em passos miúdos que se segue adiante. Que as águas enferrujem seus metais. O medo não nos abala.

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Performance e Tradução em A Dívida Impagável, performance audiovisual de Michelle Mattiuzzi


A arte da performance moderna, não é novidade pra nós, é coisa de pretxs e suas artes na diáspora; modo de escapar de um espelho único do mundo, brincando de ser performer, fugindo dos modelos representacionais necropolíticos e dos modos genocidas e epistemicidas de produção do capital branco, pra tentar brincar de não morrer. (CARRASCOSA, 2018 p. 77)  


O convite das editoras veio acompanhado da sugestão de escrever sobre meu trabalho como tradutora negra dissidente sexual e de gênero e sobre a importância de uma percepção escurecida para traduzir textos escritos por pessoas negras para além de (demandas) políticas de representatividade. 

O primeiro impulso foi o de falar sobre a solidão dessa prática tão importante para mim e para as minhas e, ao mesmo tempo, tão mal-entendida enquanto produção (co-)autoral, artística e epistêmica. O cansaço, a solidão, o epistemicídio, entre outros fatores, geram e alimentam inseguranças: Como transmitir tal ideia para determinado contexto? Quais as melhores formas de trazer para o público-alvo determinado termo, conceito? Ficar colada no texto para não “desvirtuar” ou prezar pela fluência? Atualizar ou marcar o lapso temporal entre a data de escrita e a data da re-escrita/ tradução? Quem vai ler essa tradução? Quem está, de fato, lucrando com produções intelectuais negras?

Traduzo intelectuais negras porque precisamos nos conhecer, nos articular além de fronteiras nacionais, através e além de nossas diferenças. Esse trabalho é, ao mesmo tempo, um gesto de crítica, recepção, leitura, articulação e interpretação de produções artístico-intelectuais-culturais de pessoas da Diáspora Negra, historicamente escamoteadas, alvos do esquecimento, epistemicídio, apropriação cultural enfim, de todas as facetas da violência racial. Minha dissertação trata dessas questões, discutindo os processos tradutórios de poesia negra alemã, fazendo também uma crítica e mediando a recepção dessa poesia no Brasil. Esses processos pareceram findar após o depósito da citada dissertação no acervo da biblioteca institucional. Contudo, em dezembro de 2018 participei da vivência “Retorno ao Futuro”, proposta pelo artista transdisciplinar Diego Araúja em Salvador. Nesta ocasião falamos de nossos processos artísticos-críticos, traçamos princípios, meios e fins (não necessariamente nessa ordem). Melhor, compusemos círculos que constituem e produzem tais processos, pontuamos a necessidade de uma crítica negra encarnada, implicada e implicante. A vivência foi um espaço mais seguro e profícuo para refletir sobre minha prática, que eu julgava meramente acadêmica, mas que é, primordial e intrinsecamente artística.        

Discutindo nossas motivações po-éticas para fazer arte (e) crítica, falamos sobre a análise rasa de obras de artistas e intelectuais negrxs (apenas) a partir dos temas assimilados pelo mercado (escravidão, racismo, empoderamento, etc.) e como isso nos confina nas armadilhas da representatividade que destaca um indivíduo para falar e representar uma multiplicidade de identidades e experiências. Caminhos viciados de uma crítica caduca e pálida, que não se implica, que opera na chave binária do “bom” versus “ruim” erigida sobre parâmetros eurocentrados, dependentes de políticas e do jogo da representatividade, que reforça, muitas vezes, o mito do gênio único (no masculino mesmo), que se destaca e eleva de seu grupo, mantendo a lógica racista da exceção e excepcionalidade.

Percebi que algo que nos move, como artistas-críticxs-intelectuais negrxs vivxs, é o desejo de que o que fazemos faça sentido para nossas comunidades, gerando auto/re/conhecimento sobre nós mesmxs e nossas histórias, criando sempre, a partir de paradigmas epistemológicos nossos, outros caminhos e possibilidades de VIDA, de FUGA, de LIBERDADE, dentre tantas outras brincadeiras “de não morrer”. É nesse sentido que a tradução de obras negras, feita a partir e através de nossas epistemes e epidermes é, em si, processo de vida, de rememoração e de diáspora, pois prescinde de deslocamentos, trânsitos e transes temporais, espaciais e linguísticos. Posso dizer que meu trabalho como tradutora é pura motivação de ouvir, ler, conhecer, difundir e multiplicar epistemes negras, afinal preferimos multiplicidade à representatividade.      

Audre Lorde[1] disse que “poesia é um acontecimento circular.” E por isso é, e gera movimento, nos move! Foi pensando nos movimentos diaspóricos rizomáticos de uma poesia que funda um movimento político-identitário na Alemanha em meados dos anos de 1980, impulsionado pela presença de Audre Lorde, que traduzi alguns poemas de ayim e o documentário sobre os anos que Audre Lorde esteve em Berlim, já que todos esses fatores reverberam muito na minha experiência de vida. Portanto, é no “leitmotiv” do movimento, que faço a palavra po-ética afrodiaspórica girar para além do âmbito acadêmico. Em junho de 2018 comecei a confeccionar livretos artesanais com poemas de may ayim e traduções minhas ao lado. Na capa há uma ilustração que a artista visual Annie Ganzala compôs inspirada pela leitura dos poemas e que constitui mais um elemento dessa circularidade poética.                  

Essa ética circular de nossas produções artísticas-epistêmicas que venho tentando delinear é observável também na performance audiovisual “A Dívida Impagável”, da performer, escritora e pesquisadora Michelle Mattiuzzi e é nela que vou me deter nas próximas páginas. Mattiuzzi elabora esta performance a partir de pesquisas e processos artísticos-afetivos com textos de Denise Ferreira da Silva, Jota Mombaça e traduções minhas de poemas de may ayim. A performance de 18 minutos aconteceu no Itaú Cultural em São Paulo abrindo a programação do Festival Risco[2] no dia 6 de dezembro de 2018. Mattiuzzi através da performance “saúda as poéticas da escrita negra”, fazendo a palavra escrita circular, dando plasticidade, audibilidade, multidimensionalidade, urgência e agudeza aos textos escritos.  

No caso específico das traduções, Mattiuzzi performa torções no tempo, no espaço e na língua, já que a palavra de ayim grafada em alemão, fora diversas vezes falada pela própria poeta em eventos na em outros espaços (Alemanha, EUA e África do Sul, por exemplo). Aqui e agora (no momento da performance) as palavras que talhei em bom pretuguês no silêncio barulhento das elucubrações que prescindem o processo tradutório passam a fazer parte – ademais do repertório artístico de Mattiuzzi – do arcabouço das artes negras contemporâneas no Brasil, e portanto, de um imaginário maior, somando e multiplicando sentidos na Diáspora Negra.  

Foto: Divulgação. 

Exercendo a oralidade na performance – para nós, fundamento ligado à memória e à produção epistêmica – Michelle Mattiuzzi vestida totalmente de branco encontra-se de costas para o público, sentada em um banco posicionado no meio de um semi-círculo formado por lâmpadas que emitem luz branca. Essas luzes são acesas e apagadas ao que parece, a princípio, acompanhar o ritmo e o timbre de sua voz gravada ao re-citar as palavras das intelectuais mencionadas. Nesse momento inicial da performance, as palavras tornam-se de Mattiuzzi que as traz, ou melhor: as traduz – do mundo linear da escrita e das páginas brancas de livros – em movimento, oralidade, corpo e em performance, na qual sua fala articulada em primeira pessoa, ampliada pelo aparato fonográfico é “esclarecida” pela luz branca. Aqui somos tomadxs por contrastes: O primeiro é o tom monótono, cordial, quase robótico da projeção da voz da artista acompanhada pelo som idílico do canto de pássaros, contrastando com o teor das palavras que redefinem quem somos nós e quem são eles: “Pois o tempo de pedir licença passou e pra senzala eu não volto nunca mais. Hahahahahahahaha!”

Outra contraposição é o figurino e iluminação branquíssimos. O que é esse holofote branco, – que ao “esclarecer” tanto, chega a apagar a figura de Mattiuzzi, e por ser tão intenso, quase cega o público – senão a própria branquitude (objeto de estudo da artista) e/ou seus holofotes de transparência e representatividade?

Som e luz se acompanham numa progressão que causa estranhamento, surdez e cegueira. Ambos elementos se impõem e volume e intensidade desde a voz mimicamente “clara”, instrutiva e racional de Mattiuzzi até o grunhido eletrônico ensurdecedor, acompanhado de um aumento da incidência dos feixes de luz branca no corpo da artista. O desconforto é intenso e persiste. Mas a “clareza” e racionalidade de uma retórica pausada, de uma sintaxe iluminada, compreensível, didática e “bem articulada” não deveriam acalmar os ânimos, por seguirem a lógica de quem fala e de quem fala “bem”? Acontece que o movimento da palavra é aqui a própria poética afrodiaspórica, que contradiz o racismo (a cegueira da luz) e reverbera (po)-éticas negras em trânsito, traduzidas e em transe. Transe parece ser um acionamento da performance que paulatinamente inunda os sentidos do público com audibilidade-barulho, clareza-cegueira, lucidez-alucinação.

Os usos dos elementos sonoros em “A Dívida Impagável” geram um tensionamento gradativo junto à simultaneidade e efeitos de versos quebrados e palavras repetidas. A voz distorcida do final contrasta com a lucidez das palavras no início, bem como o tom didático-irônico-pedagógico dos sons das palavras que “caem da boca”, contrastam com seus efeitos, pois as palavras caem como bombas, “doa a quem doer”. Simultaneamente aos sons, há uma gradativa chuva de raios de luz branca, que gera o desaparecimento relâmpago do corpo da performer: primeiro quando a luz se apaga e depois, pela exacerbação dessa luz incidindo no corpo da artista e no ambiente. Mesmo quando a imagem do corpo ao centro some, a voz continua dando a sensação, muitas vezes, de não prescindir do corpo, já que as palavras são também de outras, são também nossas, frutos de longas, intensas e silenciosas elaborações. Palavras atemporais e coletivas.

Em certo momento da performance, mesmo sob a descarga intensa de luz branca e o estardalhaço eletrônico, a voz de Mattiuzzi não perde audibilidade e seu corpo ergue-se acima do feixe de luz, se equilibra e brinca – de pé no banco – com a gravidade.

 […] Talvez devamos discernir nessa poética uma vontade permanente de conjurar a morte, prolongar a vida ad infinitum pela interação simultânea da voz e do corpo montado periodicamente em uma pluralidade que é reconfortante porque promete a imortalidade. (YAI, 1986 p. 99). 

Minha tradução – reverberada na cena de Mattiuzzi – são tributos às que já viveram, viverão e vivem. Uma forma de dar sentidos à presença do passado, do presente e do futuro (não devidamente nessa ordem) em nossas vidas e de lidar com os persistentes nascimentos e assassinatos de nossos próprios corpos. Foi lendo e traduzindo ancestrais, assistindo à performances e também performando que algo que eu já sabia há muito tempo tomou conta dos meus pensamentos: nós compartilhamos uma língua, construída dos gestos de re-criar os cacos históricos, linguísticos, físicos de nossas existências, de nossas alegrias. Para Carrascosa (2018 p.81) “Os gestos performáticos configuram um canal estético-corporal-vocal para traduzir a realidade cotidiana opressiva (corporal e mentalmente), alterando sua ordem simbólica na série histórico-social.” Assim, a criação e acionamento de memória, produção intelectual-artística e projeção de narrativas presentificadas em “A Dívida Impagável” nos permite ver o sujeito negro onde as lentes brancas convencionais acreditam ser impossível, isto é, na produção epistêmica, na arte, na tradução, na Alemanha, de pé, vivo! e principalmente fora de seu feixe de luz, seja em sua faceta visibilizadora (espetacularizante) ou necropolítica. 2 lados da mesma moeda, mas que finalmente – como bem manifesto na performance – ineficazes para apreender esse corpo que se levanta, que desvia, que foge.

As palavras ditas na performance e oriundas de elaborações forjadas no acúmulo da experiência diaspórica, parecem tensionar os limites da escrita e da oralidade, da audibilidade e da noção de esclarecimento. O corpo e voz de Mattiuzzi em performance degustam palavras viajadas e traduzidas, que sobrevivem à morte de quem as escreveu e ao próprio encarceramento da escrita:

[…] 

as grafias são grades

os pontos são começos

em cada disparate rebenta

uma ilusão

a jaula tem um porta

enquanto isso prefiro

estar excluída

prefiro

não estar

incluída. [3]  

may ayim (1990) 

Ao recitar traduções (escritas) de poemas (orais), a performer faz crítica oral. Olabiyi Yai (1896) nos alerta sobre o paradoxo da crítica de poesia oral ser comumente feita no ocidente de modo escrito. A performance “A dívida impagável” de Michelle Mattiuzzi compõe e atualiza todos esses processos po-éticos e críticos não previstos pelo ocidente. Yai (1986, p. 96) cita sociedades Gẹlẹdẹ para demonstrar como a performance é elementar em suas práticas regulares e cíclicas de re-criação, e como “a crítica da performance está ligada ao modo de produção e existência da poesia oral”, destacando que “no modo Efê como realizado na Yorubalândia Ocidental, a crítica da performance acontece coletivamente.” Deste modo, seria interessante compreender nossas práticas artísticas negras contemporâneas como práticas, cuja “peculiaridade […] é justamente o fato de ser[em] concebida[s] como exercício comunitário, como produção coletiva” (YAI, 1986, p.97) em constante renovação e reinvenção de nossas vidas na Diáspora.                                                                        

A performance de Mattiuzzi pode ser compreendida, nesse sentido, como resultado e como provocadora de produções que nos movem. A obra engendra futuro(s), ao corroborar e potencializar um projeto mitopoético comunitário transnacional, que é onde insiro minha prática tradutória. 

Eis a rede de poetas-performers-tradutoras-teóricas-pesquisadoras-artistas afrodiaspóricas (se) movimentando (através da) a palavra que enxergo in formation no círculo onde Michelle Mattiuzzi está em sua performance-crítica-tradução. Gosto de pensar que, ao contrário do que se forja, a Diáspora Negra não se resume à separação e ao apagamento, mas é recriada em e recriadora de encontros. Nós temos nos AQUILOMBADO em rodas ou semi-círculos que giram em sentido anti-horário há muito tempo. Fazemos isso também através de traduções crítico-criativas, de traduções performativas, de performances de traduções, de registros escritos de oralidades, de oralização de escritos, etc., etc., etc. Para Yai (1986 p.96) “Para ser capaz de compreender a poética oral da poesia oral, devemos descartar qualquer teoria que apresente essa poesia como um “produto” ou um “trabalho” que tenha as características de finitude e fechamento como implicadas por esses conceitos. Em vez disso, deveríamos falar em “produção” ininterrupta.

A performance “A Dívida Impagável”, gira palavras traduzidas e viajadas, impulsionando não apenas essa crítica escrita, mas também outros processos performáticos subsequentes. Como por exemplo,  a Leitura Dramática do texto traduzido do alemão “AFROKULTUR: O Espaço entre o Ontem e o Amanhã”, de Natasha A. Kelly. Nessa ocasião, no âmbito do FIAC (Festival Internacional de Artes Cênicas)[4] em Salvador recitei poemas de may ayim e tive a alegria de dividir o palco com duas grandes artistas da cidade de Salvador: Sanara Rocha e Mônica Santana, além da colega e professora de alemão Ivanete Sampaio. Assim e aqui, a circularidade de nossas críticas performáticas se completa, mas não se fecha nem finda, pois nossas palavras são imortais.
                             

Referências Bibliográficas

CARRASCOSA, Denise França. CRÍTICA PERFORMATIVA. fólio – Revista de Letras, [S.l.], v. 10, n. 2, fev. 2019. ISSN 2176-4182. Disponível em: <http://periodicos2.uesb.br/index.php/folio/article/view/4744>. Acesso em: 03 mar. 2019. doi: https://doi.org/10.22481/folio.v2i10.4744.

Da SILVA, Denise Ferreira. A dívida impagável: lendo cenas de valor contra a flecha do tempo. Disponível em: < http://www.buala.org/pt/mukanda/a-divida-impagavel-lendo-cenas-de-valor-contra-a-flecha-do-tempo > Acesso em 02 de mar. 2019. 

PINHEIRO, Diego. Questões sobre a arte contemporânea negra. In: Revista Barril. Vol 10 – março de 2017. Disponível em: < https://www.revistabarril.com/questoes-sobre-arte-contemporanea-negra/ > Acesso em 03 de mar. 2019. 

YAI, Olabiyi. Issues in Oral Poetry: Criticism, Teaching and Translation. disponível em:< https://repository.library.georgetown.edu/bitstream/handle/10822/555479/GURT_1986.pdf?sequence=1#page=109 > Acesso em 26 de fev. 2019.

Notas

[1] Conferir o documentário “Audre Lorde – The Berlin Years: 1984-1992”, de Dagmar Schultz

[2] Conferir: http://riscofestival.com/2018/estreia-risco-em-processo/

[3] Todas as traduções contidas nesse artigo foram feitas por mim.

[4] Conf. http://fiacbahia.com.br/espetaculos/afrokultur-leitura-dramatica/

Um fim para “este” mundo: entrevista de Denise Ferreira da Silva na revista Texte Zur Kunst

Entrevista de Denise Ferreira da Silva por Susanne Leeb e Kerstion Stakemeier.  

Em seus textos, palestras-performances e colaborações cinematográficas, Denise Ferreira da Silva se opôs a figuras de pensamento e modos de ação que são continuamente autorizados pela genealogia do Iluminismo e do pensamento moderno ocidental, dando sequência à sua constituição.

Essa tradição ocupa uma posição de norma dominante, apesar de existir uma genealogia crítica igualmente forte, que delineia o tipo de violência sistêmica por ela configurada a partir das teorias e de uma política pós-colonial e descolonizadora (não só) para o discurso sobre a arte e (suas) teorias do presente.

Como Ferreira da Silva argumenta, essa tradição tem sido essencial para a subjugação racial dos povos indígenas e dos/as negros/as. Ela serviu como pré-condição para a escravidão e o colonialismo, levando à continuidade da violência racial. Ainda hoje, após décadas de resistência, o mundo é testemunha de injustiças extremas e da produção de “no-bodies” [1], como diz Ferreira da Silva – um termo que se distingue da noção de “vida nua” proposta por Giorgio Agamben. 

Em Toward a Global Idea of Race [2], de 2007, é, a autora argumenta que é o “eu transparente” da subjetividade iluminista que se vê hoje sob ataque. Embora esse “eu transparente” tenha sido criticado, especialmente nas filosofias continentais e escritos feministas ao longo do século XX, a autora afirma que essas críticas dificilmente tocaram a função sistêmica que esse conceito carrega para a subjugação racial, permanecendo, assim, insuficientemente radicais na produção das suas recusas.

Além de oferecer, em sua escrita, uma visão macropolítica para uma filosofia política voltada à negação radical do universalismo, recentemente, Ferreira da Silva voltou sua atenção para a arte e a estética, concentrando-se especificamente no que ela chama de uma “poética feminista negra”: a questão sobre o papel que a performance e a poesia podem assumir na tarefa monumental de pôr um “fim a este mundo”, como ela escreve, aludindo a Frantz Fanon e outros, e de como superar a racialização, uma preocupação que permanece no centro de todos esses esforços. 

Ao perseguir esse objetivo, ela colaborou com inúmeros curadores e artistas, tais como Natasha Ginwala, Arjuna Neuman, Valentina Desideri, Rachel O’Reilly, Wendelien van Oldenborgh, Susanne M. Winterling e Madiha Sikander. À luz da mais recente edição de Texte zur Kunst, dedicada a investigações sobre discriminação e racismo no campo da arte contemporânea, a posição de Ferreira da Silva é mais relevante do que nunca. 

Em particular, duas de suas preocupações centrais se destacam: uma rejeição da noção de crítica e a formulação de uma possível posição além da crítica que subverte as linhagens epistêmicas das filosofias continentais; e uma “poética” contemporânea, isto é, uma prática estético-artística que visa romper as estratégias políticas modernas de subjetivação racial. A Professora Ferreira da Silva explica estas e outras questões numa conversa com os historiadores/críticos de arte Kerstin Stakemeier e Susanne Leeb.

Kerstin Stakemeier e Susanne Leeb: Quero iniciar a nossa entrevista considerando as ramificações filosóficas, poéticas e artísticas de seu trabalho. Daí, perguntamos: Em sua escrita, você problematiza a “crítica racial” como algo que faz pouco mais do que diagnosticar a desvalorização. Até onde compreendemos, sua principal oposição aqui seria o fato da crítica racial permanecer profundamente enredada nas reivindicações universalistas de verdade que caracterizaram a modernidade européia?

Denise Ferreira da Silva: Ao comentar sobre a crítica racial, tenho em mente um tipo de engajamento modulado a partir da formulação que Immanuel Kant propôs para a crítica, que é descrita como a exposição sistemática e a avaliação das condições de possibilidade para X; isto é, de seus fundamentos e limites. Desde Descartes, e, definitivamente, de Kant em diante, esse procedimento analítico específico sustentou a afirmação de que a mente racional (reduzida à compreensão) tem acesso às leis universais da natureza porque compartilha sua constituição formal.

Esse pressuposto também é compartilhado pelo tipo de crítica racial que se detém no diagnóstico da desvalorização das populações humanas construídas como não-brancas/não-européias. Na pior das hipóteses, apresenta essa desvalorização como um efeito de crenças ou ideologias e, como tal, um desvio dos princípios universais (morais) que supostamente governam a existência moderna; na melhor das hipóteses, ela apresenta a desvalorização como constitutiva do pensamento moderno, mas depois passa para um argumento baseado na idéia de incompletude (que a universalidade ainda precisa ser realizada) ou equívoco (que um particular foi erroneamente tomado para o universal). Em ambos os casos, a universalidade é mantida como uma descrição apropriada do programa ético moderno.

Na medida em que os engajamentos críticos contemporâneos – seja da Escola de Frankfurt, do pós-estruturalismo ou do marxismo – se detenham à forma e tomem emprestado o formato da crítica kantiana, eles reproduzirão dois movimentos que foram mapeados por Sylvia Wynter. O primeiro é o que Wynter chama de secularização da racionalidade, e, o segundo, a representação do humano por meio das operações da seleção natural.

KS/SL: Você poderia dar um exemplo desses dois movimentos?

DFdS: O primeiro tipo de crítica racial que mencionei em meu livro Toward a Global Idea of Race é exemplificado pela concepção “discriminação racial”. Essa ferramenta da sociologia das relações raciais prevalente nos EUA nas décadas de 1940/50 e 60, capta um aspecto da subjugação racial que está no tratamento diferenciado e leva em consideração o fato de que a pessoa e o grupo discriminados estão impedidos de acessar as políticas públicas existentes. Basicamente, a tese por trás da noção de discriminação racial é que ela resulta da ignorância em relação à situação de subalternidade racial e de uma falta de iluminação. Como diz a teoria, uma vez que toda a população americana aprendesse mais sobre a vida dos negros e fosse educada nos princípios de liberdade e igualdade universais da sociedade, a discriminação desapareceria e a universalidade, tanto no nível das idéias quanto no do funcionamento social, seria plena nos Estados Unidos.

O conceito de racismo, por sua vez, exemplifica a segunda crítica. A literatura é extensa e variada e a tarefa é complicada pelo fato de que o racismo é um conceito elaborado em teorias tão sofisticadas quanto distintas como As origens do totalitarismo de Hannah Arendt, Internal Colonialism de Robert Blauner e o artigo de Stuart Hall, Race, articulation and societies structured in dominance. As origens do racismo remontam à Europa e a um tempo anterior à modernidade sendo o seu funcionamento no período pós-iluminista geralmente visto como resultado de um realinhamento do estado, do capital ou de grupos de interesse (Oliver C. Cox, Michel Foucault e Aníbal Quijano). 

Em menor grau, a tarefa é dificultada pela tendência mais geral, por parte dos estudiosos críticos, de empregar racismo como descritor de fenômenos sociais que podem ser explicados por outros conceitos cabíveis, como de classe ou ideologia, por exemplo. Deixe-me apenas dizer que até hoje a melhor articulação de uma análise da subjugação racial – sob o conceito de racismo – é o marxismo negro [3] de Cedric Robinson, precisamente porque ele se recusa a explicar a subjugação racial como uma subvenção à exploração de classe. De maneira notável, embora sua análise localize a origem da noção de raça na Europa pré-moderna, o que seu rastreamento do funcionamento da raça no capital industrial e mercantil fornece é o delineamento do que ele chama de Tradição Radical Negra. Assim como o pensamento de Frantz Fanon, W. E. B. Dubois’s, Hortense Spillers, Saidiya Hartman, Robin Kelley’s, Nahum D. Chandler’s e Fred Moten, o pensamento de Cedric Robinson exemplifica a própria tradição que ele mapeou, com uma espécie de crítica racial que não reproduz a redução mencionada acima.

KS/SL: Onde você vê as diferenças mais fundamentais de uma abordagem reducionista?

DFdS: Inserindo em primeiro plano a violência racial (e não a discriminação racial ou exclusão racial), todos esses trabalhos expõem – de diferentes maneiras, é claro – que os princípios de igualdade universal e liberdade universal não são os fundamentos para a existência moderna, mas que de fato, sua circulação depende do desdobramento da diferença racial e da diferença cultural, a fim de delinear o domínio ético adequado à aplicação dos princípios universais sob os quais prevalecem as formas jurídicas coloniais de violência total. Leia-se, por exemplo, a declaração de Fanon no primeiro capítulo de Os Condenados da Terra [4] (e recomendo a tradução de Constance Farrington na década de 1960; a nova tradução é tenebrosa) sobre a falta de um momento ideológico para a dominação no contexto colonial, sendo o poder, desde então, exercido apenas pelas armas da polícia e do exército, sem as palavras ou as idéias do sacerdote ou do professor.

KS/SL: Como a arte é, tanto quanto a crítica, prejudicada pelas limitações que você acabou de descrever na “crítica racial”? Onde – se em algum lugar – você vê figuras alternativas de radicalização estética para a arte contemporânea e práticas estéticas?

DFdS: Eu não posso responder a primeira parte desta questão porque ela não funciona assim. Não funciona porque, como tentei dizer em minha resposta anterior, a crítica racial é apenas uma variação de um tipo de engajamento – isto é, crítica – como foi formulado por Kant, mas também por Marx. Em todo caso, porque a crítica parece ser tudo que temos, ela obviamente informa qualquer obra de arte que explicitamente trate da violência colonial e racial do passado ou contemporânea; dos modos atuais de exploração, expropriação e extração do capital global; do trabalho que o Estado realiza pelo capital global; do funcionamento do cis-heteropatriarcado. Não faz sentido esperar o contrário.

Ao mesmo tempo, acho que algo mais acontece quando a criticidade vem do trabalho criativo, quando a imaginação persegue os fins da crítica. No entanto, acho que para obtê-lo, talvez tenhamos que liberar a obra de arte das garras da compreensão (que é a faculdade mental à qual a criticalidade é atribuída) e permitir que ela siga a imaginação – aliás, meu “nós” se refere ao artista, o crítico e o público.

KS/SL: Você ataca especificamente a ideia de um “sujeito transparente” na modernidade Ocidental, mas também menciona a crítica dessa noção do sujeito como constitutiva de grande parte da filosofia continental ao longo do século XX. Michel Foucault ou Monique Wittig, entre muitos outros, não parecem localizar-se fora da relação pensada por Fred Moten na conferência intitulada “Blackness and Nonperformance”: “The subject who was never here, cannot then disappear, it can only haunt.” [5]

DFdS: Absolutamente. Embora eu possa localizar o que estou tentando fazer numa linha de interrogação que passa pela teorização sociológica e antropológica clássica, assim como a psicanálise e a linguística, estou muito mais interessada em entender como o contexto colonial (jurídico e econômico) foi em grande parte responsável por assombrar (o pensamento moderno); e continua a assombrar todas as tentativas de delinear o sujeito desde o século XVI. Pois esta é a única razão pela qual o sujeito pode ser articulado como tal, isto é, o sujeito nunca poderia “pousar” e estar lá, pois se ele estivesse “lá” ele não seria transparente (autodeterminado e autoconsciente).

KS/SL: Partindo, mas também diferindo dos escritos feministas franceses, você afirma que sua crítica da autoconsciência “privilegia a exterioridade como um momento determinante na significação”. Você poderia elaborar um pouco mais sobre a ideia de exterioridade?

DFdS: Eu rapidamente percebi que o meu estudo das noções de raça e nação tinha me levado além dos textos sociológicos e antropológicos, nos quais eu achava que encontraria tudo o que fosse necessário para a montagem do conceito nos séculos XIX e XX. Nesses textos que li por reunir os discursos nacionais dos EUA e do Brasil – publicados entre 1875 e o final da década de 1940 – muitas (se não a maioria) das vezes esses dois termos (raça e nação) foram empregados como se fossem intercambiáveis. Eu digo como se fossem, porque houve, é claro, uma diferença em termos do modo de endereçamento; isto é, nação geralmente aparece em autodescrições e convocações à ação unificada, enquanto a raça aparecia em comparações e tentativas de fazer distinções. No caso dos Estados Unidos, a comparação foi para a Inglaterra, claro, enquanto o Brasil, por outro lado, foi comparado aos Estados Unidos. Agora, esses dois usos desses conceitos naquele momento, como sabemos, foram colapsados ​​no discurso nacional-socialista alemão, no qual a representação oficial (estado) da nação foi baseado na “pureza”. Esta última é apoiada pela noção de diferença racial; isto é, não evoca primariamente um passado comum e um futuro comum, mas um território exclusivo e um corpo único. Isso significa que a diferença racial permite a articulação da exterioridade em uma espécie de texto – que chamo de texto nacional – que solicita a posição formal de interioridade. Por essa razão, no esforço para dar sentido a esses modos de endereçamento e sua efetividade, tanto quando articulados separadamente quanto se em conjunto, eu tive que me mover “para trás” da ciência do século XIX sobre a construção do corpo do homem como um conceito biológico para a “ciência da vida” de George Cuvier, a fim de descobrir como o próprio biológico foi construído.

O que encontrei, entre outras coisas, é que a exterioridade que a versão racial do século XIX transmitiu foi crucial para o pensamento moderno o tempo todo – porque apoiou sua reivindicação de capturar a verdade de todas as coisas no mundo. Mas foi somente no período pós-iluminista que foi possível produzir uma formulação científica da diferença racial, que desdobrou essa diferença (exterioridade) nos escritos do homem/o humano sem violar o atributo (autodeterminação) que sustenta a alegação de que este último ocupa uma posição única no mundo.

KS/SL: De acordo com Fanon e, mais recentemente, escritores como Frank B. Wilderson III, você defende um “fim para este mundo”. Para alguém como Wilderson, a poesia como um modo de linguagem escrita se torna uma práxis para um reposicionamento radical. Para Saidiya Hartman, a literatura ocupa um papel semelhante. O que é para você um meio de “finalização” ou uma prática artística de “finalização” distinta, digamos, da desconstrução?

DFdS: Eu acho que o ponto chave aqui é se o “fim”, que é a única coisa razoável que se pode fazer desse mundo capitalista racial, deve acontecer dentro ou fora de algo e se esse algo que é retido é novo ou parte deste mundo.

Para Fanon, o homem/humano é aquilo que seria feito de novo após a descolonização, e para Wilderson e Hartman a linguagem e a literatura poderiam ter o mesmo papel, isto é, daquele “algo”.

Estou muito preocupada com a possibilidade de não conseguirmos parar o fim deste mundo onde existimos; estou preocupada com a demolição de estruturas democráticas que, apesar de limitadas e perversas, forneceram pelo menos uma âncora para reivindicações de justiça social e global (de populações indígenas, migrantes, LGBTI *, não-brancas em todos os lugares) e poderiam (às vezes) limitar a violência total; estou preocupada que os insetos e outras espécies estejam se extinguindo, que os rios estejam secando, que os oceanos estejam sendo sufocados por plástico, que o fracking [6] esteja destruindo e ameaçando contaminar grandes áreas de água subterrânea. Esta é uma longa lista. No entanto, estou investido – porque não vejo como poderemos existir de outra maneira – no fim do mundo como o conhecemos.

Este novo mundo terá que ser reconstruído e recuperado da destruição causada pelas ferramentas e mecanismos extrativos do capital global.

KS/SL: Onde neste final você coloca arte e filosofia?

DFdS: Se o poder está em toda parte, basicamente porque é (como) tudo, tal qual afirma Foucault, então, essa tarefa de finalização só pode acontecer, e deverá acontecer necessariamente, dentro e contra as estruturas institucionais e monetárias da arte, da universidade e (ouso dizer) da mídia social. Além das grandes revoltas e rebeliões que conhecemos dos livros de história, as formas de finalização [do mundo como nós o conhecemos] também incluem revoltas menores, momentos, gestos de recusa e refúgio. Ou seja, não vejo por que, como a universidade, a arte contemporânea não pode ser também um lugar de estudo da negritude nos termos propostos por Moten e Harney e praticada pelo feminismo negro.

KS/SL: Em seu texto Toward a Black feminist Poethics [7], você escreve que uma leitura poética feminista negra pensa a relação entre a obra de arte e o arsenal de racialidade que a acompanha, mas também considera como a obra conectada a este tipo de reflexão recusa tornar-se, simplesmente, um objeto de “antropologia empírica”. O que exatamente você quer dizer com “antropologia empírica”?

DFdS: Não há resposta curta. Mas deixe-me dizer desde o início que minha preocupação é com o artista, em particular; com a forma como, de maneira muito similar aos acadêmicos (e eu estou me incluindo aqui), o trabalho dos artistas negros é mediado pela noção antropológica de diferença cultural. Quando comparada com o início do século 20, uma grande diferença é que, por um lado, o foco é menos nas formas, materiais, etc. do que na artista, enquanto, por outro lado, há também uma ênfase na extração, na expropriação e na opressão. Isso é muito importante politicamente. Infelizmente, no entanto, a força radical desse duplo movimento corre sempre o risco de se dissipar sob a pressão da lógica de mercado que prevalece em toda parte – uma lógica que exige muito, inclusive simplificação.

Há muitas conseqüências disso, incluindo o recurso aos tropos familiares de representação, que não só já são antropológicos, mas também acabam confirmando essa base. Por exemplo, houve algumas ocasiões em que experimentei ou testemunhei outras pessoas forçadas a terem que resistir a ser tratadas como “informantes nativas” (para usar o termo adequado de Spivak), mesmo quando o que elas estavam articulando era uma análise dessa mesma condição. Ou seja, sua resposta crítica ao tratamento como “informantes nativos” foi tomada como uma expressão “autêntica” de sua experiência “nativa”/diferente. A propósito, essas ocasiões não eram muito distintas das que me encontrei como acadêmica. Estes são tempos perigosos. Acho que há o perigo de perder a oportunidade de aproveitar as aberturas radicais que a arte pode engendrar. Esta pode parecer uma afirmação ingênua. Não é. Nos anos 1980, por intermédio dos movimentos sociais e com o apoio de idéias apresentadas por alguns filósofos europeus, acadêmicos das ciências sociais e humanas anunciaram a chegada de um momento pós-moderno, que acabaria por transformar dramaticamente as configurações da academia e de outras instituições na América do Norte, na Austrália e na Nova Zelândia. Até onde eu sei, a noção original de diversidade e multiculturalismo (articulada por pensadores norte-americanos de esquerda ou progressistas) nunca chegou à Europa e só muito recentemente a interseccionalidade entrou no discurso acadêmico. É claro que, uma vez que essas noções foram apropriadas e instrumentalizadas pelo Estado, instituições e corporações, tudo se deteriorou. Ainda assim, alguns de nós que atravessamos esse período ainda estamos aqui, ocupando espaços que de outro modo não existiriam, porém, agora, na posição de criar espaços que sequer seriam imagináveis.

KS/SL: Você tem alguma idéia sobre como superar a divisão entre o global como universal e as práticas artísticas singulares que são informadas por questões e práticas sociais e políticas, mas que parecem despidas de sua complexidade porque o global as caracteriza como algo meramente “culturalmente diversificado”?

DFdS: Vamos tentar isso. O global não é uma entidade universal, formal; o global é um contexto material, uma configuração, que inclui mecanismos jurídicos de violência total e restrição legal, mecanismos econômicos (extrativistas, industriais e financeiros) que facilitam a expropriação e a exploração, bem como as ferramentas simbólicas de racialidade que delimitam o alcance do programa ético moderno, regido pela noção de humanidade e pelos privilégios de que desfruta.

Sendo assim, ainda somos capazes de pensar em uma prática artística singular como exemplar de um dado momento (um ponto no espaço-tempo) nessa configuração. Não há papel ontológico (ou ético ou estético) para a diferença cultural aqui. Com certeza, isso é o que eu acho nos trabalhos de Otobong Nkanga, do Otolith Group e de Carlos Motta, para citar alguns – isto é, a recusa da diferença cultural como descrição principal daquilo que estão imaginando.

KS/SL: “Afetabilidade”, não opacidade, é o seu contra-termo para “transparência”. Sobre a recente ascensão de movimentos de direita, partidos e governos, você se refere à “perda” da posição de um “eu” transparente: “Na presença da diferença racial, sujeitos europeus (brancos) não ocupam mais o lugar do eu transparente; eles se tornam sujeitos afetáveis, uma vez que contemplam o horizonte da morte, aqueles cujas idéias e ações são sempre determinadas pela presença de um ‘outro’ inferior, um subalterno racial cujos corpo e mente se referem a outras regiões globais.” Nesse sentido, parece que, sob as condições atuais, a “afetabilidade” se move na direção da afirmação de posições cada vez mais subalternas. Existiria um patamar comum (o que não significa uma razão comum) capaz de fornecer um ponto de partida para nos libertarmos dessa mudança progressiva que vai ao encontro desse sujeito afetável? Estávamos pensando sobre Fanon e sua ideia de um humanismo melhor, sem ter definido a base na qual tal humanismo poderia se basear ou ser direcionado (se necessário)?

DFdS: Esta é uma questão, não é? Quero dizer, uma possível formulação para esta questão é – e eu acho que isso é da Sylvia Wynter – se o ser humano é a condição necessária para qualquer programa ético que leve em conta a conjugação (no sentido da química) dos modos de subjugar que proliferam no presente global. 

Em meus experimentos intelectuais, tento encontrar maneiras para escapar das dicotomias – como interioridade/exterioridade, autodeterminação/afetabilidade, temporalidade/espacialidade etc. – que têm sido tão centrais para a delimitação do homem/da humanidade como privilégio. Obviamente, não se trata de pensar sem exterioridade, mas de pensar, como tento fazer, um “pensamento fractal”, isto é, sobre diferentes escalas simultaneamente: cósmica, histórica, orgânica e quântica. 

Por exemplo, enquanto o tempo (sequencialidade) se torna irrelevante no registro cósmico, o espaço não faz sentido no nível quântico, porque o que acontece nesse nível não pode ser atribuído a algo que tenha extensão. “Deep Implicacy” e “Radical Immanence” [8] são, para mim, uma maneira de imaginar o mundo sem a ideia da relação que sempre pressupõe coisas separadas e separáveis. E se o pensamento desse um passo atrás, se encontrasse como parte de toda a bagunça de tudo aquilo que é o pleno e se contentasse em fornecer soluções momentâneas a cada instante de acordo com uma intenção mediada pelo contexto dado?

KS/SL: Uma última pergunta. No momento, estamos testemunhando o retorno de uma política abertamente racista, declarada por chefes de países supostamente democráticos. Em um dos seus textos anteriores, No-Bodies: Law, Raciality and Violence [9], você fala sobre a “substituição do ‘terrorista fantasmagórico’ pelo onipresente ‘imigrante indocumentado’ sob uma “virada securitária”. Você se refere aos militares como agentes da violência estatal contra sua própria população e fala especialmente sobre as favelas no Rio de Janeiro, que, como você diz, são chamadas de Faixa de Gaza brasileira pelos seus moradores. Então, é claro, temos Orban, Trump, Bolsonaro et al. Seria Bolsonaro apenas mais um jogador, embora um jogador radical, nesta “virada securitária”?

DFdS: Como você já notou, Bolsonaro é apenas outro nome em uma lista já muito extensa de chefes-de-estado que podem ser caracterizados pela ousadia de reclamar o emprego da violência total – seja desde o estado ou dos nacionalistas brancos – contra diferentes populações negras economicamente desapropriadas. Este é outro momento no regime securitário que vimos emergir após o 11 de setembro – e já dura quase 20 anos! Em Toward a Global Idea of Race, identifico duas lógicas de subjugação racial originárias: a lógica da exclusão e a lógica da obliteração. Um dos meus argumentos no livro é que ambos operaram ao longo do século XX e início do século XXI, mas a lógica da obliteração recebeu, por muitas razões, menos atenção, principalmente porque sua função foi substituída pelo papel da criminalização.

Durante a maior parte do século XX, a diferença cultural – de acordo com a tese de que a subjugação racial cria sujeitos sociais patológicos – desempenhou um papel crucial na explicação da violência racial como uma resposta ao comportamento criminoso por parte do subalterno racial. Ora, sabemos muito bem como isso funciona; o número de casos de assassinatos por policiais de pessoas negras desarmadas e a absolvição dos tribunais é muito claro. De qualquer forma, acho que o que está acontecendo no Brasil – que é o que vem acontecendo nas Filipinas há algum tempo – é uma intensificação da lógica da obliteração, que é anunciada ao mesmo tempo em que a nova administração traz o fim das últimas proteções trabalhistas remanescentes, bem como a eliminação dos direitos à terra garantidos constitucionalmente para as comunidades indígenas e quilombolas.

KS/SL: Isso é o Brasil agora?

DFdS: Deixe-me terminar com algumas perguntas: O que acontece quando a função principal do Estado deixa de ser proteger a nação (o povo) e seus interesses, para proteger as corporações (seus investidores) e seus interesses? Que tipo de contra-discurso e práticas políticas são necessárias para enfrentar esse aspecto do “estado-corporação” que está sendo implantado no Brasil, o que só pode ser chamado de privatização (no nível do cidadão individual) da segurança através de mecanismos que tornam a posse legal de armas acessível a um contingente maior da população e ampliam o número de casos aos quais se aplica a autodefesa como defesa legal? O que acontece com nossas acusações de brutalidade policial quando o atual ministro da Justiça brasileiro divulga uma nova política de segurança que, além das condições descritas acima, dá carta branca para os policiais atirarem para matar no local / à vista em suas incursões espaços urbanos economicamente desapropriados? E não mencionei o aumento do número de ameaças e ações violentas contra os povos indígenas, LGBTI e ativistas ambientais no Brasil nos últimos meses. A própria ideia de justiça social está em perigo. O conceito de justiça social se encaixa bem dentro do estado-nação. Mas o estado de segurança está agora firmemente estabelecido, com o único mandato de proteger a economia; é o “estado-corporação”, cujos papéis primordiais para o capital global são criar instrumentos jurídicos e estruturas e mecanismos que facilitem a extração, a expropriação e a exploração e protejam o interesse das empresas e de seus investidores. O que nós vamos fazer?

Tradução: Lori Regattieri e Tatiana Oliveira

Sobre as entrevistadoras: 

Kerstin Stakemeier é professora de Teoria da Arte e Mediação de Arte na Akademie der Bildenden Künste Nürnberg. Ela mora em Berlim.

Susanne Leeb é professora de arte contemporânea na Leuphana University Lüneburg.

A revista gentilmente nos permitiu reproduzir e traduzir a entrevista. Original em TEXTE ZUR KUNST. Publicado no dia 12 de abril de 2019. Disponível em: https://www.textezurkunst.de/articles/interview-ferreira-da-silva/



Notas

[1] N.T.: Aqui a autora faz um jogo de palavras com a expressão popular “joão ninguém”, para designar processos de “desaparecenças”, que, na tradução literal do inglês também pode ser lido como “sem-corpo”. Cintia Guedes observa a importância da polissemia do termo “no-bodies” (simultaneamente não-corpos e ninguém) como uma abertura da escrita de Denise Ferreira da Silva para apontar tanto a existência ontológica e civil (da vida após a morte da escravidão), quanto a ausência de valor material da vida do corpo negro (vidas negras importam).

[2] N.T.: As entrevistadoras fazem referência à publicação que resulta da pesquisa de doutorado de Denise Ferreira da Silva. Este trabalho não foi traduzido ao português; por isto, sugerimos como versão provisória do título Para uma Ideia Global da Raça.

[3] NT.: ROBINSON, Cedric. Black Marxism: The Making of the Black Radical Tradition. The University of North Carolina Press, 2016.

[4] N.T.: FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Editora UFJF, 2006.

[5] N.T.: Conferência ministrada por Fred Moten no The Museum of Modern Art (MoMA), NYC, em 25 de setembro de 2015. Disponível em: https://www.moma.org/calendar/events/1364 

[6] N.T.: Conhecido em português como fraturamento hidráulico. Optamos por deixar a referência em inglês por ter sido, a palavra, incorporada pelo jargão das discussões sobre clima e energia.

[7] N.T.: Em português, “Por uma poética feminista negra”, tradução livre.

[8] N.T.: A autora faz referência a dois trabalhos de instalação audiovisual produzidos em parceria com outros artistas.

[9]  N.T.: Em português: Sem-corpo: Direito, Racialidade e Violência, tradução livre.



Programa de rádio: Mote com Paulete LindaCelva

Cereal Melodia: Mote é novos começos é mover e ressignificar saberes é a oralidade como veiculo transmissor de conhecimento, é partilha!

Mote 08 – Jup do Bairro, Felipa Damasco e Mari Boaventura

Convidads

Jup do Bairro
Multiartista, em meados de 2007, encontrou nas artes a possibilidade de externar suas vivências. Durante sua trajetória, atuou como educadora, palestrante, styling, atriz, cantora, performer e produtora de eventos, tudo de forma autodidata e sempre colocando em pauta narrativas que atravessam seu corpo, de travesti, preta, gorda e periférica. Jup do Bairro tem acompanhado nos vocais, Linn da Quebrada nas turnês de Pajubá e Trava Línguas dentro e fora do Brasil. Além de intercalar com sua carreira individual, com os shows de Bad do Bairro, seu projeto atual com a DJ BadSista. Jup também é apresentadora, ao lado de Linn da Quebrada, no programa transMissão do Canal Brasil.

Felipa Damasco
Felipa Damasco, é artista multimídia e produtora de linguagens híbridas, passando por criações coletivas e autorais na música, artes visuais, performance, dança e moda. Tem sua pesquisa de performance focada em questionamentos sobre negritude e comportamento humano, e faz acontecer desde 2017 a performance “VOCÊ JÁ OUVIU FALAR QUE: CABELO CRESPO NÃO MOLHA”. Participa do coletivo AEANFDC com quem adentrou espaços de projeção como SP Arte e Feira Tijuana. É artista colaboradora de Jup do Bairro e Linn da Quebrada desde de 2016 e é compositora e cantora do experimento musical Amores de Verão que não chegam no Inverno. Atualmente integra a equipe de fotografia de Cai Ramalho, fazendo trabalhos com marcas comerciais e veículo de moda.

Mariana Boaventura
Mariana Boaventura é a tia da pensão na Pantera Cartel Agency, integrante do AfroHub e ComunaDeusa e esta por trás das festas Sound of Siririca e Avec Ma Mobilete, sua pesquisa tem como foco uma seleção caprichada de sonoridades da diáspora africana e seus desdobramentos mais modernos.

A Fantasia de Assaltar o Museu

O Museu é o “repositório racial da memória” [1]. White institution [2] encarregada da monumentalização da supremacia branca. Ali está o relato escrito pelo senhor. Ali está a colonialidade feita escultura, a estetização do saque, da dor, a fetichização da otherness [3], a obsessão pela coleção, pela acumulação. Ali, nossa memória viva se faz pele. 

filme : Pantera negra, cena no museu de Londres.

Como acredita que seus ancestrais [brancos] conseguiram o que está aqui neste museu? Compraram a um bom preço igual a tudo aqui ou apenas roubaram?

A amnésia branca esconde sua responsabilidade histórica. Na ideia de “arte universal” prevalece a ideia de arte supostamente portável, não política, onde o museu é um espaço “não nacional” e livre de responsabilidade histórica. Isso “justifica a existência de museus cheios de artefatos roubados pelo colonialismo europeu”, cheios de estéticas e representações de uma história hegemônica. Nossa larga memória, nossas cicatrizes coloniais, nos proíbem de esquecer ao entrar em um museu. Talvez isso não o tinha presente quando junto ao coletivo Ayllu decidimos realizar ações poéticas dentro de museus e instituições que resguardam a memória colonial. Mas a estética colonial produz sensações a partir da monumentalização da dor.

Não vou falar de estética. Não sou especialista em arte nem crítica de arte. Vou falar de sensações, de fúria, de raiva, das manifestações de dor que me gerou entrar nos museus na Europa, especialmente no reinado da Espanha. Tentarei plasmar esse cruzamento que me fizeram fantasiar em assaltar o museu. Sinto que é uma fantasia coletiva com outros corpos diaspóricos e dissidentes sexuais. Não estou escrevendo nenhuma novidade. A ideia de recuperação, de reocupação ou de minar os museus não é nada nova. É algo latente no imaginário popular daquelxs que escapamos, vivemos a fugitividade e nos encontramos com o roubado, com parte do nosso passado.

Minar o museu

Fred Wilson, artista negro estadunidense, em 1992 e há 500 anos do massacre colonial, decidiu “minar o museu” em Baltimore, USA. Esta intervenção coloca diferentes peças a dançar e a dialogar com o passado escravista-colonial e sua renovação no presente, “no quinto centenário”. Wilson realizou uma invasão silenciosa e esse modus operandi foi replicado no Museu of World Culture, em Gotemburgo, Suécia. O título da instalação era Site unseen: Dwellings of the Demons [4]. Este exercício de exorcizar demônios não vistos do museu evidentemente é uma ação de reativação do trauma e da ferida colonial e, ao mesmo tempo, é uma ação necessária, com a qual temos fantasiado muito.

Suturar queer à diáspora recupera essas práticas de desejo e subjetividades, que são tornadas impossíveis e inimagináveis, dentro da diáspora e do nacionalismo não convencionais (Gayatri Gopinath).



Imagem- Cena do seriado Pose, Ep.1, Temporada 1

Me tremem as pernas com toda essa cultura me mudava agora mesmo [ao museu] este deveria ser meu novo apartamento 

O que acontece se um grupo de negras trans e outras dissidentes sexuais fantasia com assaltar o museu? Elektra, Angel e Blanca, protagonistas da série Pose, o fazem. Assaltando o museu para assaltar a estética. Para tirar-lhe a coroa e os trajes reais e desfilar no ballroom/ salão do baile. 

Imagem- Cena do seriado Pose, Ep.1, Temporada 1

A dívida

O tema dos artefatos culturais roubados é uma parte pequena mas significativa do debate sobre o legado colonial. As 15 nações do Caribe que forma o CARICOM a endereçaram diretamente, este 2013, quando convidaram a Europa a um diálogo reparador das sequelas da escravidão, do colonialismo e do genocídio (sua chamada segue sem resposta). O enorme valor econômico das peças roubadas, como o busto de Nefetiti, estimada em 350 milhões de Euros, semeia a questão das reparações financeiras do colonialismo


Fatima El-Tayeb, Reclaiming Nefertiti, em en: https://www.contemporaryand. com/magazines/fatima-el-tayeb-reclaiming-nefertiti/


O busto de Nefertiti se encontra no Museu Neues de Berlin, na famosa ‘ilha dos museus”, a cidade e o governo alemão se negam firmemente a devolvê-lo ao Egito, em que pese, as autoridades egípcias exigem exatamente isto desde 1925


 Fatima El-Tayeb, Reclaiming Nefertiti, em en: https://www.contemporaryand. com/magazines/fatima-el-tayeb-reclaiming-nefertiti/

“i can’t believe we made it”

Beyonce, Apeshit

Beyonce assalta o museu. Cria uma coreografia de corpos negros frente a peças de arte icónicas. Se posiciona no Louvre frente ao quadro da consagração de Napoleão de 1804. Mesmo ano da independência do Haiti, a partir da revolução negra e de resistência ao massacre que fizeram os franceses em terras do Caribe. Essa consagração não é nada consagrada pelas narrativas coloniais. Assaltar o museu significa invadir os espaços que produzem serializadamente a estética do ‘belo’ a partir dos corpos brancos, esculpidos, representados desde, por e para a supremacia branca.

Quando xs negrxs e xs corpxs bandidxs, corpos ilegalizadxs pela supremacia branca, ocupamos o museu, são ações de desobediência estética, são ações políticas de imaginação, de viagem ao passado, de efervescência das recordações e desejos de recuperação.

Entrar no museu e nos espaços de arte implica submetemo-nos a um aparato de disciplinamento estético de nossos olhares. Esta maquinaria foi construída pela supremacia branca para produzir subjetividad(es), “sensações diante do belo”, desejabilidade diante “do branco” como corpo político universal. Esta imagem do vídeo de Beyonce revive meus rechaços aos museus mas, ao mesmo tempo, me convida a invadir o museu para reelaborar a história, para que a raiva brote e que as sensibilidades múltiplas da diáspora se multipliquem e manchem a branquitude.

Bich, better have my corn

Em 2015 me encontrava em Toulouse, França, com Duen Sachi e decidimos assaltar um museu. Era uma ação de ira sudaka diante da indignação de ver sequestrados distintos tipos de milho procedentes de Abya Yala no Museu de Ciência Natural de Toulouse.  O guarda da segurança não permitiu que fotografássemos a mostra: milhos. 

Ação performática Bich, better have my corn, Toulouse, 2015

Negras Malas 

Nao (navaja), uma flor do Chocó Colombiano [5], me convidou a invadir o Museo Del Prado em Madri, com sua proposta Negras Malas [6]: um projeto audiovisual imersivo que reúne diferentes aspectos da identidade afrodiaspórica feminina. O Prado, igual ao resto da Espanha, é um espaço de vigilância e de criminalização dxs corpxs negrxs, dxs corpxs diasporicxs provenientes das ex-colônias. Sempre nos vêm como se viéssemos roubar o museu.

Ao entrar no Museu nos recebe Carlos V e O Furor. Uma escultura que rende culto ao massacre colonial. Uma escultura da dor e da exaltação da escravidão. A representação do homem branco europeu controlando com correntes o furor dxs negrxs selvagens. Carlos V é o legado do Plus Ultra, o mundo sem limites que pertence a Espanha. Lema que sintetiza a pulsão de conquista do homem branco espanhol.

“O Museo Nacional del Prado, desde que foi inaugurado em 1819 e ao largo de sua história centenária, cumpriu com a alta missão de conservar, expor, enriquecer o conjunto de coleções e obras de arte que, estreitamente vinculadas à história da Espanha, constituem uma das mais elevadas manifestações de expressão artística de reconhecido valor universal”

As negras malas foram surpreendidas ao tentar fotografar. As negras malas foram perseguidas corredor por corredor As negras malas disparamos no museu. As negras malas também sentiram as sensações diante dos corredores imensos, da multidão de corpos brancos, da realeza, “do Real”, da violência branca, da violência “Real”. Estas negras malas assaltamos o Museo del Prado com nossos corpos não perfeitamente belos como as esculturas que estão ali. As negras malas não fomos deportadas, ainda que sim, com o olhar policial da normatividade branca. As negras malas escapamos. As negras malas sempre somos fugitivas.

Modus operandi: ações anti-coloniais

Desde Ayllu armamos um modus operandi para realizar uma rota poética de assaltos imaginários as instituições coloniais: do Arquivo de Índias e o Museu da América ao parque temático das Caravelas de Colombo, em Huelva. Cada um desses espaços reativam a impotência ante o saqueio e o massacre.

Nunca pensei estar no Arquivo Geral das Índias. Quando estava na 8a série meu professor disse que havia ido a Espanha a revisar o Arquivo das Índias. Ali foi a primeira vez que escutei sobre esse “fantasioso lugar”. Espanha segue chamando “as índias” o território de Abya Yala e o Caribe. Segue produzindo essa fantasia colonial. Essa fabulação que mantém a Espanha em sua negação de seu passado colonial e da palavra negro – para referir-se a pessoas escravizadas – aparece ainda como categoria de busca no Arquivo Geral das Índias.

Oitenta milhões de registros tem o arquivo das índias. Não nos bastaria a vida para ler oitenta milhões de relatos de massacre, “justiçamento” e aniquilação, resistências e rebeliões. Com minhxs companheirxs de Ayllu fantasiamos fazer uma ponte com todos esses documentos e cruzar o Atlântico. Talvez a poesia, e fantasiar com ela, sirva para curar.

Fantasiar não significa esquecer, significa reelaborar as narrativas de dor. Retomar o arrancado. Devolver o roubado. Espanha é especialista em retornos quentes [7] : estratégia política do sistema de controle migratório que implica a expulsão e devolução de pessoas migrantes, irregularizadas pelo estado espanhol. Espanha devolve os corpos que “não pertencem” a esse território, mas ainda não devolve tudo que não pertence a esse território.

Devolver e remexer fazem sentido em uma mesma oração. Ao voltar a Heuva e ao cais das Caravelas de Colombo estávamos remexendo a história. Relendo essa narração feita por Espanha e convertida em uma parque de diversões estilo Disney World. Espanha, com seus 14 monumentos a Colombo, com nomes de ruas dedicados a escravistas, com estações de metrô em honra de “conquistadores”, com as coleções do Museu da América e o Museu de Antropologia, faz esplendor de sua amnésia colonial seletiva. Um período da história que não quer ser desempoeirado, ou quer, mas sob o relato único. Nossas ações anti-coloniais foram ações poéticas para assaltar instituições coloniais, ações de “sutura da ferida“, um modus operandi que segue trabalhando sem anestesia a mesma ferida, ainda aberta, talvez infecta. 

Tradução: Cíntia Guedes

Notas

[1] Fatima El-Tayeb, “La vida queer de la diáspora”. Conferência nas Jornadas “Descolonizar el Museu”, Museu de Arte Contemporânea de Barcelona (Macba), 2015. Tradução própria. Propriamente proscrita trans-fronteiriça-barroca sudaka-afrocaribenha.

[2]  Instituição branca. Nota da tradutora: O texto original está escrito em espanhol e algumas expressões são deixadas pelx autorx em inglês, o que evidencia o contexto no qual tais expressões foram forjadas. Escolhemos deixar as expressões em inglês no corpo do texto, bem como alguns nomes de instituições e obras, e apontar em notas suas traduções para o português.

[3] Alteridade

[4]  Local invisível: moradias dos demônios.

[5] Nota da tradutora: estado colombiano caracterizado pela floresta equatorial, banhado pelas águas caribenhas e pelo oceano Pacífico.

[6]  Ver projeto: https://negrasmalas.hotglue.me/

[7] Retornos quentes, são as políticas anti-imigrantes e racistas operadas pelo Estado espanhol na fronteira Sul – com Marrocos – pela qual migrantes – em geral pessoas negras de África – são expulsas imediatamente, devolvidas de modo instantâneo ao território africano.

Escuro e não-representação – Sobre NoirBLUE de Ana Pi

Esses tênis brilham porque não são feitos para pisar o chão. O corpo virado do avesso é, na realidade, um corpo que vem de outra parte, um corpo que existe de outra maneira no espaço e que reclama, por isso, uma outra forma de posição. Há fumaça e escuridão, há também aquelas luzes azuis que se movem diante dos nossos olhos. Estou assistindo uma viagem no espaço, uma aventura cósmica, uma evocação de forças disruptivas sobre os mundos de dor que compõem aquilo que convencionou-se chamar realidade. Estou falando sobre mágica; estou falando sobre coreografias fugitivas; estou falando sobre futuridade negra; estou, enfim, falando sobre o solo de Ana Pi, NoirBLUE [1].

Ana Pi é bailarina, investigadora, coreógrafa e artista da imagem. Sua prática envolve as tradições incorporadas da diáspora negra e as danças contemporâneas periféricas em um movimento simultaneamente íntimo e coletivo voltado à invenção de exercícios de liberdade transitórios, de micro e múltiplas interrupções nas coreografias normalizadas de captura e violência. Nesse sentido, seu trabalho é um estudo sobre como estar atenta enquanto dança e a filosofia política encarnada que ela articula nos fornece um aglomerado de ritmos, batidas, quadris que vibram, saltos, quadradinhos e sarradas elaboradas através e para além da violência racial; um arquivo sensível de gestos comprometidos com uma definição de dança enquanto um ato de luta e uma estratégia de fuga.

A dedicatória aos movimentos #BlackLivesMatter e #JovemNegroVivo, por sua vez, não opera simplesmente como a promoção de uma causa. Mais bem, ela assinala um engajamento da artista com o informe campo de forças que configura a coalizão espiritual negra. NoirBLUE parece emergir de uma espécie de encruzilhada cronológica, tanto como a atualização de uma força ancestral quanto como uma operação premonitória. Sua relação com tempo e memória, e seu compromisso com a luta continuada para que as vidas negras importem, intervêm na dança especulativa de Pi com um programa ético definitivamente enraizado numa certa forma de futuridade – uma abordagem estratégica do tempo que visa operar no futuro por meio de uma leitura poética do presente do mundo, suas relações fodidas e as brechas radicais que elas comportam.

Num certo momento da peça, Pi propõe à audiência um jogo (aqui é importante registrar que, ao dizer “audiência”, estou me referindo a um grupo majoritariamente Eurobranco). Ela traz para a frente do palco um bocado de pequenos rótulos autocolantes brancos e começa a colá-los ao próprio corpo um a um. Enquanto isso, a audiência é convidada a enumerar categorias de azul. “Azul marinho, azul bebê, azul piscina”, Pi é quem ativa a lista para que em seguida o jogo comece. Gradualmente, as vozes da audiência começam a entrar em cena com mais e mais categorias de azul. Pi segue brincando com as palavras, fingindo e fazendo mal-entendidos, mas o que captura a audiência no jogo armadilhado da categorização é a própria naturalidade do gesto classificatório no contexto social em que o trabalho se apresenta.

Quando, no final do jogo, quase todos os rótulos foram finalmente dispostos no corpo da artista como marcas, ela corta o diálogo com a audiência e corre rumo às sombras de seu palco, dançando firmemente à medida em que as luzes se enegrecem. Ao evidenciar os rótulos brancos, a implementação da luz negra opera como um dispositivo eficiente para as políticas da opacidade negra. Ela desmaterializa a negritude como um objeto do olhar branco-colonial enquanto marca o branco como um objeto de sua própria sujeição. É quando o corpo negro desaparece em meio a atmosfera fluorescente da luz negra que o trabalho realiza sua mais poderosa forma de crítica, ao desafiar a noção mesma de materialidade que reproduziu a branquitude como única e totalitária forma de presença. Assim, quando as luzes enegrecem, o corpo negro rompe sua contenção rumo a uma forma de presença radicalmente outra: tornando-se a escuridão ela mesma.

A iluminação de NoirBLUE é uma parceria entre Ana Pi e Jean-Marc Ségalen e é crucial para a peça, especialmente por sua relação com a sombra, a escuridão, a luz negra e a fumaça. Visibilidade aqui não é jamais confundida com transparência. Em vez disso, ela é reposicionada de acordo com um projeto visual que elabora a escuridão como um campo não-representacional onde não há um olhar dominante capaz de recortar corpos como objetos. Se esse é um trabalho sobre visibilidade negra – e é, bem como este texto, ambos inscritos por um mundo que nos invisibiliza enquanto sujeitos e criadoras para fazer de nós temas e objetos hiper-visíveis –, ele o é na medida em que a visiblidade negra necessariamente desafia o lugar comum do Iluminismo e configura um aparato sensível que nos permite ver através, pensar desde e existir para além do escuro.

Já no final, enquanto Ana Pi arma um novo jogo – desta vez um leilão do vinil contendo a trilha sonora original da peça –, a audiência é convidada a tomar uma posição no espetáculo do valor. Talvez a pessoa que venceu o leilão na ocasião em que assisti a peça (o renomado escritor português Valter Hugo Mãe), comprando o vinil por menos de 50 euros, acredite que aquela cena trata simplesmente da venda do disco. E num certo sentido sim, mas, quando consideramos o drama histórico que conecta o corpo negro de Ana Pi à cena do leilão, temos de confrontar a violência inerente à moderna equação do valor. O jogo, contudo, é dinamizado pela maneira como Pi entra e sai dele, jogando com o valor contra a violência do valor.

NoirBLUE não cessa de mover o modo como certas operações naturalizadas são feitas. Assim, do mesmo modo que na cena dos rótulos brancos, a cena do leilão incide diretamente sobre a automaticidade das respostas da audiência, instaurando uma armadilha reveladora da continuidade entre valor e evento racial, sem, com isso, evidenciar todas as estratégias críticas lançadas na cena. Essa dimensão jocosa do trabalho é, sem dúvida, uma outra manifestação da opacidade na poética de Ana Pi. Sem ceder ao imperativo da transparência, Pi aposta na dissimulação da densidade crítica do próprio trabalho para criar uma plataforma sensorial por meio da qual irradia uma poderosa força antirracista, que incide sobre a audiência branca sem que esta seja capaz de sequer perceber aquilo pelo que está sendo tomada.

Para encontrar as forças acionadas por Pi, é preciso permitir-se a enxergar com os ouvidos; especular com os pés; pensar com os quadris; e na pele ativar tanto um radar quanto um locus espiritual. Nesse processo, a música atravessa os sentidos, os significados e a cognição ela mesma, como uma força que faz vibrar tudo na sala, desde o corpo de Pi até o movimento intestino de todos os corpos e das coisas presentes. Jideh High Elements é o colaborador convidado por Ana Pi para a criação da trilha sonora, e suas faixas são, ao mesmo tempo, composições profundamente enraizadas nas tradições da música eletrônica negra e rotas de fuga para os gestos ancestrais de futuridade negra que compõem NoirBLUE. 

Todos esses elementos realizam uma atmosfera, e nos sugerem que NoirBLUE não deve ser lido como um espetáculo, mas como a instauração performativa de um outro mundo. “Que mundo?”, a leitora pode perguntar, cedendo à tentação da transparência. Mas uma das belezas do trabalho de Ana Pi é, precisamente, sua capacidade de instaurar um mundo sem torná-lo completamente visível. Criar essa força imaginária que – em face do mundo como o conhecemos (o mundo do capitalismo racial) e seus aparatos extrativistas – recusa a visibilidade como transparência é uma forma de auto-preservação das vidas e projetos especulativos negros. Se no meio da peça as luzes de emergência da polícia iluminam o corpo de Pi, é porque, desde a posição do sujeito negro, ainda não se pode ser livre neste mundo; mas se Pi continua a dançar depois disso é porque, desde essa mesma posição, ela carrega consigo algo (um segredo!) pelo que vale a pena lutar.

N.E.: Esse texto já foi publicado previamente no livro “Não Vão nos Matar Agora”, de Jota Mombaça. Galerias Municipais/EGEAC, 2019

[1] N.E.: Site oficial Ana Pi https://anazpi.com/

Como se preparar para a guerra: escritos de uma sobrevivente feitos na travessia de 2018 para 2019


nota inicial:
Este texto foi escrito entre o fim de 2018 e início de 2019. Para essa publicação, fiz uma última revisão em 2020, após meses sem contato com esses dizeres. As frases em negrito no corpo do texto são anotações feitas na última revisão. São lembretes a mim mesma, que me fazem lembrar da perecividade da linguagem escrita e falada. E também da imprevisibilidade dos nossos modos cotidianos de guerrear.

Em tudo há vida e no corpo há tudo.  

Eu sou um corpo-flor e estou em guerra. Eu sou um corpo-flor e estou cansada de guerrear. Eu sou um corpo-flor com desejo de batalhar. Eu sou um corpo-flor e irei vencer todas as batalhas. Não tenho medo da morte e sim, da aniquilação.

Sou um fragmento de Írôko e consigo dimensionar em meu corpo as diferentes temporalidades que o constituem. Minha experiência de mundo é marcada por ficções racistas e aquilombamentos, que assim como eu, sobrevivem há séculos graças a reinvenção de si.

Faz algumas centenas de anos que estou sendo reterritorializada em zonas de batalha onde tecnologias contra e a favor de minha morte são produzidas. Brasil, Angola, Paraguai, Estados Unidos da América, Portugal, França, Nigéria, Cuba, Argentina, Inglaterra, Índia, Japão: eu negocio minha existência em diferentes gestos culturais quando reinvento-me num linguajar singular, o pajubá; gestos são linguagens e linguagens podem ser escritas. Malandramente, assumo nacionalidades que me desmaterializam na tentativa de assegurar minha sobrevivência nessas geografias bélicas.

Aqui e lá, crio acordos com a Humanidade e, assim, consigo fortalecer o tráfico internacional de informações proibidas.  Nos proíbem o acesso a conhecimentos [2] e nos impedem a produção de conteúdos que nos ajudam a forjar liberdades. A obra de arte, por exemplo, é uma digestão singular dos desejos, afetos e memórias produzidos e ingeridos em coletividade. Caso a autora ocupe uma posição de mortificação no território que reside – como acontece comigo – certamente as práticas de poder-saber irão dificultar suas experiências de liberdades; a exemplo da escravidão, o extermínio e o encarceramento em massa da população negra brasileira. Logo, a dificuldade que nós, corpos despatrializados, podemos desenvolver em criar obras de liberdade é um sintoma de nossa própria experiência de aprisionamento.  Por isso, não se deve produzir uma lacuna entre obra e vida – mesmo que a vida opte pelo anonimato – pois a obra e a poética – em todas as suas possibilidades – só acontece com uma intencionalidade da artista e, nesse sentido, toda escolha é sempre uma redireção de potência vital.  

A energia, força ou potência vital é o conteúdo mais precioso para nós e para aqueles que querem nos mortificar e nos matar.  É essa energia que nos movimenta e nos permite movimentar Mundo. No grito, no silenciamento, na dor, no gozo, na felicidade, na angústia, na liberdade, no aprisionamento: em tudo há energia de vida; em tudo há vida. Faz séculos que os odiosos da diferença aprenderam a capturar e manipular tal conteúdo vital e, desde então, nos usam para despontencializar-nos, redirecionando nossa força vital para violências contra nós e nos descartando quando já não temos mais força para ser apreendida;

mas não existe o fim da força, porque na macumba o que há é a eterna transmutação vital.   

Então, cabe a nós forjarmos autonomias de vitalidade que nos possibilite continuarmos afirmando-nos em materialidades desconformes – corpo, obra – e desobedecendo coodernadas do biocapitalismo [3]. Para que aconteçam desestabilizações nas máquinas coloniais que produzem e só autorizam subjetividades racistas e binárias, e para que também ocorra desterritorialização e abdicação de territórios urbanizados, precisamos nos desfazer do corpo encouraçado pela colonialidade e entendermos nosso corpo como local de memória [4].   

Se em mim há milhares de memórias jogadas no mar, hoje existo pois sou um dos corpos que sobreviveram ao naufrágio. Nós, corpos aquáticos, devemos sempre sermos compreendidos na perspectiva de cardume, porém sem que haja um apagamento de nossos singulares modos de mergulharmos nas histórias salgadas. Ou seja, minhas condições geográficas me constituem em gestos que não seriam os mesmos caso eu tivesse vivido meus 22 anos em outro ponto terrestre que não fosse a cidade de Vitória no Estado Espírito Santo – Brasil. Gestos esses que estão em perpétua modificação e podem contribuir ou não para contra-atacar aqueles que querem eliminar nossa materialidade não-branca, empobrecida, dissidente. 

Todo ecossistema é um conjunto de elementos que juntos criam situações particulares que possibilitam a vida, a morte e a matança. Essa relação é responsável pela minha complexidade que se forja com os itens – identidades, memórias, desejos, afetos – que constituem meu território de existência: corpo. 

Minha corporeidade é um efêmero fragmento da história e do Tempo; tempo exusiático. Desenvolvo estratégias singulares para coabitar o mundo com vidas que me amedrontam e me protegem. Eu vivo em conflito comigo e com os outros e estes outros me constituem numa relação simbiótica. Assumo-me subalterna e denuncio os abastados de facilidades que criam seus privilégios com meu empobrecimento. Minha negritude bixa e minha bixalidade negra não existe na dimensão da palavra falada e escrita, sem a existência da assimetria política do mundo colonial. Mas, minha existência pesa mais que uma palavra, logo minha experiência é autônoma a qualquer literatura e tenho negociado com todas as formas de escrever, falar e gestualizar que facilitam a sobrevivência de meu corpo negro testiculado. 

Meu corpo antecede e se fortalece com a palavra, não me caibo em nenhuma identidade catalogada pela medicina, psicologia ou farmácia, mas as uso para fomentar possibilidades de sobrevivência. Durante meus 22 anos de contato com sociedades ocidentais meu corpo retinto e testiculado tornou-se negra, negro, masculino, feminino, bixa, travesti, mulher, menino, transsexual, não-binário, queer, kuir e continuará sendo capturado por processos identitários e continuarei negociando maliciosamente com os processos de racialização sexual.

Além disso, eu vivo um contemporâneo marcado pela hibridização da espécie  homos-sapiens sapiens com as máquinas. Os processos de subjetivação atuais transformam meu prazer em pílula, minha organicidade em capital financeiro. Eu sou um tecnocorpo que deseja torna-se uma flor. Eu sou um corpo-flor que cotidianamente corta seus fios que o ligam ao sistema produzido pelo biocapitalismo. Meu sangue, anatomia e toda minha bioquímica viraram elementos de valor na economia. Então, a desintoxicação e a desprogramação são práticas fundamentais para que minha/nossa vida continue acontecendo. E, se percebo minha existência sendo manipulada pelo colonialismo como uma tenebrosa experiência de sobrevivência, então meu desejo de vida é um ato de guerrear. 

Quero viver em cardume 

Eu me preparo para a guerra sempre que denuncio sua existência; sempre que assumo à mim que estou em guerra. Corpos subjetivados pela ocidentalidade precisam compreender que estamos em guerra – civis, internacionais, subjetivas, existenciais. Não há liberdade se ignorarmos este conflito. 

Durante todo esse período de guerra, as tecnologias de ataque estão sendo transformadas e atualizadas – a sobrevivência de singularidades negras é uma experiência de dar continuidade ao processo de cruzamento de diferentes culturas da diáspora africana. Nós, corpos racializados como negros, devemos compreender a cultura negra como uma cultura das encruzilhadas (MARTINS, 1997)  e assumir nosso corpo como um local de interseções. Para sobrevivermos precisamos incorporar Exu Elegbara, “princípio dinâmico que medeia todos os atos de criação e interpretação do conhecimento” (ibid, p.26).

Treinar para a guerra é traficar tempo, memória, segredos e capital. É também permitir que nossos corpos sejam traficados por outros corpos que estão sendo traficados em suas colônias, ou seja: criar uma rede de circulação e fortalecimento de nossas potências vitais que estão sendo materializadas em textos, músicas, vídeos, objetos, ações e outras possibilidades. Devemos nos atentar aos processos de coletividade, pois por eles somos violentadas e é em grupo que iremos contra-atacar.

Treinar é desaprender gestos no rememorar de um passado que ao ser acessado, atualiza-se em forças no presente. O treinamento é um processo de pesquisa epistêmica, investigação afetiva, cartografia anatômica, mergulho em si. Quando assumimos um estado de treino, aprendemos com o cansaço que precisamos compreender nossos limites e optar por não ultrapassar alguns, pois esta ação pode ser suicida. O treinamento não cristaliza-se num tempo-espaço específico, ele pode ser realizado em qualquer ponto do território. Treinar é produzir coreografias de libertação com movimentos que nos aprisionam. 

Notas

[1] Título homônimo à serie de obra desenvolvidas por mim, constituída por fotografias, vídeos e performances. Os trabalhos estão disponíveis em castielvitorinobrasileiro.com 

[2] CARNEIRO, Suely Aparecida: a construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese de Doutorado. São Paulo, 2005, p. 96. 

[3] PRECIADO, Paul Beatriz: “Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica”. 

[4] MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória: o reinado do Rosário no Jatobá. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.

Kiaola, em suas variações de Marrom Terra

Para Gessé Paixão, pelos seus sonhos e porque estamos sob a constelação de câncer.

nós, tão cansados de viagens atlânticas forçadas.

Na esperança de reencontrar nossa voz. 

Encontrei-a sentada numa esteira de palha, as costas largas pressionando a parede da frente da casa, ao seu redor haviam pedras miúdas, algumas conchas, gemas coloridas, búzios e restos de ossadas delicadas. Pressentindo minha chegada, levantou os olhos das contas espalhadas pelo chão e com eles percorreu meu corpo e feição dignando-se a um bom dia amistoso, de quem já está acostumada com a reação aturdida assumida pelos passantes que a constatavam  há anos naquela mesma posição e ofício. Apressei em explicar que era carteiro e estava no primeiro dia de trabalho naquela região, e que ao passar por aquela rua tinha decidido encontrar alguém que pudesse me oferecer água. Ouvindo-me estendeu a mão esquerda em direção a uma moringa de barro, e a mão direita a um copo e derramou o líquido transparente, oferecendo-me. Enquanto bebia, observei com atenção os anéis miúdos que o cabelo ralo cor de algodão teciam sobre sua cabeça, a pele de um tom desbotado indicava que há alguns anos antes tinha possuído a mesma cor escura e brilhante que a minha, e por sua fragilidade eu presumia que qualquer toque mais vigoroso poderia desfazer o fino tecido. 

Enquanto descansava por alguns minutos perguntei se não a estava atrapalhando, visto que não me dirigia muitas palavras. A resposta em tom negativo seguiu-se de uma interessante explicação. Kiaola, como se chamava, estava ali passando o tempo, procurando por sua própria voz, perdida em uma viagem muito antiga feita com sua mãe que ela mesmo não se lembrava bem como tinha ocorrido, o sumiço entretanto não a impedia de se comunicar com os outros, como estava fazendo comigo. Porém, ela reiterava que de fato aquela não era a sua voz autêntica. Continuou, explicando que já tinha se aposentado, e falando isso adensou “coisa que nesses tempos de agora, você não consiga mais fazer” e por isso passava os dias fora de casa,  para espiar e estar pronta caso ela, sua voz, retornasse. Enquanto deslizava bonitas miçangas em alongados cordões, disse-me que quando encontrasse o fio do som da própria voz, ele iria soar como o barulho intenso do tilintar de suas contas em movimento, ninguém poderia se fechar ao seu grito e as palavras que tinha guardado para dizer. Vendo minha curiosidade sobre qual matéria compunha o conteúdo de sua mensagem, confessou que faria uma denúncia das injustiças seculares, maldades centenárias e violências “que nosso povo tinha suportado”. Naquele instante, nas minhas memórias de menino-homem entendi exatamente o que ela dizia. 

Prosseguimos a prosa e continuei a contemplá-la. Ela era tão doce que se nos detivessémos em suas íris açúcar-mascavo ficávamos como que surpresos e cientes de um amargor de fundo, que não se experimenta de primeira. Sua presença me lembrava as plantas de canaviais, que mesmo quando espremidas em seu máximo, só sabiam expelir um líquido adocicado. Geralmente as pessoas só lidavam com a garapa e não com os bagaços e os fiapos que ficavam, e era desse amargo que eu falava e que ela escondia no dentro dela, sendo o gosto mais íntimo de sua boca. Percebi que enquanto conversávamos, chorava e as formigas iam colher gota a gota, seu sumo. Tornando-se pequenas contas-pretas que compunham um colar costurado pela linha invisível que descia furtiva de seu rosto, seio, barriga e pernas até encontrar o chão. Os insetos eram suas mais preciosas jóias, segredava, rememorando ao mesmo tempo a importância dos escaravelhos-sagrados para sua linhagem. Me disse também que quando era lavadeira e passava os dias na beira do tanque dando conta de pilhas e pilhas de roupas sujas, seu suor escorria solto, e a fazia rodeada de um balé de cores, asas e plumas. Ninguém se espantava com a dança de pássaros e borboletas orbitando como constelações em seu entorno, era algo dela. Ninguém se espantava, ninguém.  

Naquela ocasião, em que passei mais tempo em um intervalo do que podia, ou supunha, dentro das regras de uma empresa, limpei a poeira de seu rosto, tão antigo e sulcado que mais pareciam as máscaras de Nok. Talvez eu tenha sido a primeira pessoa que a tinha visto tão de perto, e portanto tomei parte daquela sensação de cansaço e tristeza que pesavam sobre seus ombros, uma desesperança que movia seus pés rachados e gordos pela terra, e como o gosto do Cacau eu descobri, que ela era amarga.

Despedi-me, em razão do adiantado estado das horas, e ela assentiu com a cabeça o meu cumprimento, com a resignação de quem já está acostumada com os momentos de partida. Disse-me que já que eu andava pela vida, carregando as palavras dos outros, talvez pudesse encontrar a dela, e caso isso se desse, que eu prometesse voltar para restituí-la, pedido que de pronto aceitei, enquanto experimentava um pouco de canjica branca com canela e coco macerados, feita por Kia no início da manhã e servida a mim antes dos meus passos ganharem caminho. 

Andei alguns metros de distância, e ao atravessar o cruzamento das alamedas, percebi que sua voz me chamava, retornei e estendendo a mão com um colar vistoso, de miúdas pedras avermelhadas, brancas e pretas, Kiaola me presenteou falando “atente-se aos atalhos do seu coração, encontre e siga sempre os ruídos do seu movimento”. Sorri, e abracei-a , sendo este o nosso derradeiro contato. 

Depois de ter estado com ela, passei anos atrás do  fio de sua palavra, e  isso me fez descobrir novos sotaques, fonéticas dissonantes e acústicas distintas, mas infelizmente não foi suficiente para que eu rastreasse o paradeiro da esperança sonora de Kia. 

Durante a extensa jornada, a procura misturou-se a minha própria vida,  meus filhos nasceram, e tiveram outros filhos e suspeito que Kiaola já tenha ido embora dessa terra. Então, talvez eu tenha me enganado crente que essa história, e que sua figura  haviam submergido como outras tantas, nos rios turvos da memória. Um equívoco, pois hoje quando amanheci, ao banhar meu rosto repleto de ranhuras e emoldurado pelos fios cinzentos de minha barba, ao encará-lo de frente, rente ao espelho do banheiro. 

Eu consegui ouvi-la. 

Desenho de Mariana Lucas Coutinho

Performando-se negre no cinema: anotações para uma conversa infinita

– Nigga shit, Nigga shit, Nigga nigga nigga shit!

Cassius Cash Green grita sobre a batida eletrônica, microfone em uma mão, balançando a outra para cima, entre o constrangido, o incrédulo e a raiva. A sua frente a plateia de gente branca vai à loucura repetindo as duas palavras a plenos pulmões.

A cena de Sorry to Bother you (Boots Riley, 2018) marca um ponto de virada do filme. Após uma meteórica ascensão na carreira do telemarketing, o jovem negro é convidado para uma festa do seu patrão yuppie 3.0 branco. Muito álcool, muita cocaína e muita gente branca. Cash é a nova estrela da companhia, batendo recordes de venda via telefone a partir da sua imitação perfeita de uma voz branca (soando “como se não se importasse”, “com as contas pagas” e “feliz com o futuro”). 

Sendo assim, ele é uma das atrações da festa como menino prodígio e convidado lá pelas tantas a encenar não mais a sua voz branca, mas a sua performatividade negra (“tiros na cabeça”, “as merdas de gangster”, o talento para fazer rap). Ou seja, todas as expectativas do milionário branco sobre experiência urbana de juventude negra. Encurralado, Cash manda os seus nigga shit que correspondem exatamente à imagem branca de sua negritude.  

O filme de Boots Riley navega com bastante deboche pelas premissas absurdas do que se espera das performatividades negras (quando esta deve ser branqueada e quando escurecida) nas sociedades capitalistas anti-negritude. A dupla consciência das personagens negras sobre como o jogo performativo se opera é ao mesmo tempo uma forma de navegar o sistema (vender mais enciclopedia ou armas de destruição em massa, ou expor arte de protesto negra para críticos e merchants brancos), e de se estar inexoravelmente capturado dentro dele (ser o preto da festa, receber sangue de animais na cabeça). 

E quando falamos de cinema negro? O quanto desta performatividade é manter-se no jogo expressivo e o quanto é captura? É possível mensurar o que não se vê?

Performando para e contra a câmera

Em Afro-Fabulations, The Queer Drama of Black Life (2018), Tavia Nyong’o volta à performance de Crystal LaBeija no documentário The Queen (Frank Simon, 1968) após os juízes premiarem uma jovem competidora branca no Concurso de Beleza do Miss América All Camp. A drag negra denuncia a cumplicidade tanto dos organizadores e juízes do concurso quanto da equipe do documentário na sustentação de um regime de encenação e representação racista, no qual ela (ou outra drag negra) nunca poderão vencer. A reação de LaBeija reafirma o lugar de impossibilidade no jogo performativo e ao mesmo tempo o hackeia – capturando o acontecimento para si. 

Se no filme a ruptura operada é um breve momento que pode ser reordenado na narrativa documental como “risco do real”, “franja do presente”, “improviso”; há também algo que vaza para além do filme e do cinema, no geral. 

[The Watermelon Woman (Cheryl Dunye, 1996) é uma fabulação crítica preta lésbica feita a partir daquilo que vaza da encenação negra no cinema clássico dos EUA].

Se o pró-fílmico é base constitutiva da relação personagem real e câmera documental, como pensar uma teoria do contra-fílmico a partir da captura das performances negras que resistem a serem enquadradas?

Quando o invisível se torna visível, o olho demora a acostumar. Em um primeiro momento parece inexistente. Parece invenção. Depois são muitos. E, por fim se desenha, com precisão e é dessa forma que a gente vai enxergando: o azul no preto. Ou o preto no azul. E eu sei que eu agora também tô sonhando com as pessoas que virão depois de mim. Além de azul e preto, essas pessoas vão ver todas as cores, todas as formas, sentir todos os cheiros e provar todos os sabores. Acho que isso é liberdade: poder ir prum lado ou pro outro da ponte. E é por isso que eu peço a benção também à essas pessoas mais novas que virão depois de mim.

NOIRBLEU, Ana Pi, 2017.

“Corpos negros não são iguais à negritude”

Racquel J. Gates e Michael Boyce Gillespie nos lembram também que a performatividade negra não corresponde necessariamente à liberação ou recuperação. Ser preto, parecer preto, performar preto, encenar preto: para que(m)? Com que(m)? Contra que(m)? [Ou, pode ser só nigga shit].

E:

Um estudo do cinema e mídias negras que apenas iguala a inclusão de realizadores e personagens negros com uma prática cinematográfica revolucionária nunca efetuará verdadeiramente uma transformação, mas no lugar, simplesmente justificará uma história de corpos negros trabalhados por e trabalhando para a branquidade em níveis ideológicos e formais (por exemplo, blackface, cinema de questões sociais…).

Gates, Gillespie, 2019,tradução livre.

Se corpos negros não equivalem à negritude; negritude não corresponde à libertação; presença e representação negras não são em si revoluções no regime das imagens; no campo do visível, o que é possível a partir das performances negras pro/no/contra o cinema?

[Há ainda a captura da experiência negra como único recurso expressivo. Juliano Gomes (2018) deu a letra: “Se o necessário é performar transparência, ser ‘autêntico’, ‘verdadeiro’, é bom redobrar atenção”. E pergunta: “Como atuar por estratégias ativas de opacidade?”].

O que pode ser o cinema, e o cinema negro, brasileiro?

A pergunta feita por Heitor Augusto no início de 2018 aponta para uma série de possibilidades e enfrentamentos de um campo em expansão. Entre tantas questões, a que nos interessa enquanto investigação das performatividades negras em cena: “Quais filmes serão percebidos como ‘mais negros’ que outros? Quais mises en scène serão interpretadas como ‘mais próximas’ de uma autoria negra do que outras?”. 

Uma pergunta é: como performar negritude para além da ancestralidade?

A outra pode ser: como performar negritude fabulando a ancestralidade, o “testemunho”, o “verdadeiro”, o essencial?

As duas se complementam.

Obs. 1: Em Cartucho de Super Nintendo em Anéis de Saturno (2018), Leon Reis colocou o videogame na encruzilhada. 

Obs. 2: Em NEGRUM3 (2018), Diego Paulino colocou Aretha Sadick na espaçonave do Sun Ra.

“(…) o gênero é um antagonismo para as mulheres negras porque o gênero é construído e reproduzido de maneiras que só podem nomear as experiências de certos tipos de mulheres. Em vez de buscar a inclusão nas relações de gênero que não podem contemplar a miríade de experiências das mulheres negras, o feminismo fugitivo recusa completamente a categoria de gênero, adotando uma categoria transgressora do fugitivo – aquele que foge da dominação e se une a outros para construir coletivamente uma nova política de libertação” 
Apresentação da Conferência Fugitive Feminism,organizado por Akwugo Emejulu, 2018.

*

Impossível ir ao cinema sem me encontrar. 
Espero por mim. No intervalo, antes do filme, espero por mim.

Kara Keeling (2003) relendo Frantz Fanon nos lembra que antes de ser imagem no/do cinema, a Imagem Negra (e a Imagem Branca) são constitutivas dos regimes de representação das sociedades coloniais e pós-coloniais:

Em vez de se identificar com uma imagem específica de “negritude”, o jovem negro já foi identificado como tal. Não é a identificação do Negro de si através de imagens existentes de Negros que condiciona a predicação do ego (self) Negro, mas uma identificação coletiva prévia (amplamente baseada na equação pele=identidade) do Negro como “Negro” (com toda a “historicidade” que isso carrega).

Keeling, 2003, p. 100., tradução livre.

Assim, a experiência ontológica negra passa não por um processo de autorreconhecimento e descoberta internos, mas de identificação social externa. No regime de representação colonial ser negro é ser sobredeterminado pelo olhar branco, não como ficção individual, mas como uma coletiva. É essa imagem negra ficcional de si que Fanon espera encontrar no famoso trecho de “Pele negra, máscaras brancas”. Esse momento de espera antes do filme marcado pela antecipação e angústia do espelhamento do regime de ficcionalização da imagem negra performada nas imagens do cinema. 

Se o tempo do intervalo é angústia, Keeling pensa-o também como (im)possibilidade, virtualidade. Na espera pela imagem preta que confirma o jogo da representação colonial, no tempo em suspenso que não se atualiza, ali reside também o desejo por uma imagem negra que não pode existir – mas que sempre já existe como o desejo, como o negativo virtual da imagem projetada. 

Se o cinema recaptura e normatiza o performar-se negre, essa imagem que ainda não existe na tela e já existe como aspiração do intervalo é “liberação” e “abertura” – é o que foge. 

(Mas como vê-la?)

Biofilia: Um ritual autoetnográfico do desejo



Ao lado do abismo, os escombros. E sobre eles, nós, invisíveis, sobrevivendo, fazendo comunidade.


Tatiana Oliveira, 2018

Biofilia é uma ode desejante à vida. Biofilia é uma linha de fuga que irrompe o mundo a partir de UM ritual de canibalização de afectos que passam pela carne, pela raça, pelo gênero e pela subjetividade desta que vos escreve, ou seja, biofilia nasce a partir de uma cerimônia de antropofagia cujo banquete é composto pelas minhas dores, minhas memórias, meus sonhos, minhas experiências e meu desejo imanente de estar, existir e viver neste mundo cujas desterritorializações provocadas pelos modos capitalistas forjam grandes extremos que condicionam sobretudo nossos corpos-territórios. Biofilia não é sobre resistência, mas sobre um modo singular de mergulhar nas mortes cotidianas e no vazio dos romantismos para extrair partículas de potência vital que ultrapassem sobremaneira os horizontes de acontecimento e permita, deste modo, invadir o grande buraco negro do mundo. Há quem pense que há somente aniquilação e que nada escapa à força dos buracos negros, mas é a partir do mergulho desejante nele que podemos extrair as singularidades: é o limite que rasga os véus do mito racial e revela suas entranhas em um doloroso e violento processo de criação de si. A etapas da performance são inúmeras, passo a descrever efemeramente algumas que me vem à cabeça com seus movimentos aberrantes (LAPOUJADE, 2015) de invenção, não necessariamente na ordem em que ocorrem. 

  1. A incrível Bethânia, em seu Canto para Oxum, diz “quando eu morrer, voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar”. Biofilia é esse retorno pós mortem, não apenas a morte literal, mas aquelas pequenas e singulares mortes que cotidianamente insistem em nos aniquilar; como resistir? Não há resistência que não passe necessariamente por um processo de reinvenção. Nesse sentido, é possível afirmar que só pode haver resistência se houver necessariamente um processo singular de implosão das racionalidades que movem e outorgam o vivido (e seus modos de existencialização), com efeito, só há potência-(re)existência se formos capazes de agenciar uma máquina de guerra que irrompa processos de irracionalidades e destitua, deste modo, o velho modus operandi inaugurado pelo humanismo. É preciso uma indisciplina para não sufocarmos com a disciplina, não desejamos mais o humano demasiado humano (NIETZSCHE, 2000), mas somente compor por devires animais de toda ordem, devir-sankofa: é esse nosso (des)rumo. Cunhambebe disse no comecinho do século XVI: “eu sou uma onça, tá gostoso” (SILVA, 2018). Foi assim que ele foi muito maior que o alemão bisonho. 
  2. Biofilia é uma intoxicação (in)voluntária. É um ritual onde a Terapia Hormonal, levada às últimas consequências durante a adolescência, é ressignificada através de uma performance que busca destituir a necroestética que, por vezes, vaza os poros das pessoas trans. É verdade que nem sempre as teorias dão conta da vida, mas é verdade também que não pode existir teoria sem vida. Biofilia é uma tentativa de cartografar uma vida que se encontra sempre no limiar, nas beiras e assim faz pulsar as multiplicidades desse mapa. É um encontro dentro e fora dos encontros que faz nas beiras um agenciamento de beiras: o agenciamento trans-negro do mundo é “nas beiradas, sanguíneo nenhum pode ir lá” (ESTAMIRA, 2006). Uma pílula clandestina. Uma seringa com óleo. Uma força que extrai da força fraqueza. Biofilia não é sobre ser forte: é sobre como não deixar a força produzir os arrepios da dor e do cheiro da morte, a linha de fuga é a sutil delicadeza de um gesto de fraqueza. É porque o choro jamais deixou de conter a potência da força e o grito jamais deixou de fazer nossa carne vibrar. Este é o movimento intensivo da vida na morte.
  3. O bisturi que fez minha boceta é o resultado das dobras que levam ao infinito aquilo que antes me matou tantas vezes. Seria um paradoxo se não fosse a própria dor passível de desdobra. O bisturi que me fez sangrar quase até a morte, foi aquilo que me permitiu experimentar meu primeiro orgasmo ainda num leito de hospital. Mas eu já havia sangrado até a morte em meados da década de 1990 quando um homem tapou a minha boca e enfiou o pênis duro em meu ânus provocando minha dupla morte: a da minha alma e a da minha dignidade, conjurando o meu corpo. Eu nunca mais pude me recuperar. Eu já havia sangrado até a morte três anos antes quando outro homem enfiou seu dedo no meu ânus e me fez sentir a dor da vergonha se espalhar pela minha carne. Eu perdi a minha infância e as teorias edipianas jamais foram capazes de trazê-la de volta. Eu morri há muitos anos atrás muitas vezes. Nós morremos todos os dias de algum modo. Eu respirei por aparelhos toda minha adolescência em cada lata catada na rua, em cada papelão que dobrava, em cada riso que insistia em tirar de mim minha própria potência de sorrir. Biofilia não é boa – não se trata do dualismo bem contra o mal –, mas de um mergulho intensivo num plano de imanência que as teorias edipianas jamais foram capazes de proporcionar.  Biofilia é uma tentativa de resgate pelas sombras de um corpo, de uma memória estraçalhada nos escombros da minha própria vida.
  4. “Você nunca vai ser uma mulher”, gritava minha genitora com ódio, mas havia tanto amor emanando dos meus pequenos seios que cresciam, contra todas as expectativas, que mal ela sabia que eu era uma mulher molecular antes mesmo da primeira dose de hormônio. Cresciam como poesia. Regavam minha alma. Eu nunca tive dúvidas: o peito que brotava era como uma pequena e destemida flor que cresce nos cantos dos muros de concreto pelo mundo afora. Era vida na morte em meio ao turbilhão de morte na vida. Pura biofilia, um desejo único de querer descobrir até onde aqueles peitos iriam me levar. Me levaram para muitos lugares: meus peitos eram violência pura que o mundo não conseguia suportar, o confronto e o abalo à norma corpo-identitária. Eu venci o mundo com o amor revolucionário doado pelos meus próprios peitos. Mas o mundo não deixou de produzir trauma, o mundo jamais deixou de me contaminar. O mundo vive e morre em mim na mesma medida em que eu vivo e morro no mundo, não há mais separação. Com efeito, há apenas afectação sine qua non de multiplicidades.
  5. A boceta cirurgiada não é apenas um buraco, como ouvi algumas vezes, é um plano de imanência que me faz transbordar a cada dia a potência do vivido nos movimentos intensivos que aprendi a produzir. Na biofilia, ela é o território de esvaziamento do significado para, assim, desejantemente, construir um novo repertório de significação que passa antes de tudo pela enunciação de um porvir. A minha xana é um agenciamento coletivo de enunciação onde saber, poder e subjetividade se fundem para combater, paradoxalmente, os enunciados de outrora, produzindo fissuras no modelo que a constituiu. Trata-se de um movimento extra-pessoal, infra-pessoal e semiótico que, ao mesmo tempo, indivualiza os processos e os multiplica coletivamente. Os dildos, utilizados em biofilia – e fundidos na minha boceta (são um só e a mesma coisa) –, são ao mesmo tempo o aparelho de captura – que em certo sentido condicionam a vagina a um certo tipo de repertório corpo-identitário normativo – e a máquina de guerra que escapa da norma “capturante” num movimento singular do desejo. Não há mais linhas cronológicas, pois a experimentação de si é sobretudo acrônica. Ela faz da acronia um anacronismo estético desejante, isto é, o ritual autoetnográfico do desejo. Embora as virtualidades – as memórias em pulsação – não se dissolvam na atualização – movimento de acessar as virtualidades para reconduzi-las aos processos de diferenciação – provocada pelo desejo de fazer a vida explodir como o big bang criou o universo, ela é responsável por um movimento intensivo singular na dobra do movimento extensivo singular, ou seja, tempo é invenção e justamente por isso ele é um processo incessante de singularização. É através da virtualização dessas memórias em sua duração – que não possuem menos e nem se opõem à realidade – que a atualização instala um processo de diferenciação pelo qual algo difere de si mesmo e atinge uma singularidade (DELEUZE, 2018). Tal processo não se dá por semelhança, mas na diferença de si mesmo consigo mesmo. Enfiar um dildo nesta vagina cirurgiada, nesse sentido, não é repetição de um ato mecânico somente – para dilatação do corpo vaginal –, mas também um mergulho num processo outro na busca pela potência da vibratilidade do vivido como resgate de linhas ou fluxos do não vivido: uma experimentação orgasmática de si no mundo das mortes. Com efeito, é um eterno mergulhar no buraco negro do mundo.
  6. Biofilia tem músicas, poemas, imagem, performance, drama e alegria. Assim, a estética que ganha corpo não é mais a necroestética, mas a bioestética: uma política ritual como ode desejante da vida. Não para superar a morte, como uma leitura precipitada poderia indicar, mas para pensar com os processos de morte onde é que a vida escapa. As músicas são reportórios auditivos do ritual, os cravos e as rosas são repertórios olfativos do ritual, os movimentos através da penumbra são os repertórios visuais do ritual, o meu corpo e a água são os reportórios que se ligam ao paladar e, por fim, o repertório do tato é constituído pela conjunção dos objetos dispostos ao uso. Assim, os cinco sentidos são acionados durante essa performance. Eles correspondem às cinco dimensões que o desejo percorre e se conecta ao infinito. Há um agenciamento coletivo de corpos, emoções e sensações que não escapam ao ritual, nesse sentido, quem assiste a performance necessariamente está conectado ao banquete antropofágico – comendo ou sendo comido – servido e experimentado pelos cinco sentidos ou as cinco zonas de experimentação do desejo.    

Mas apesar disso tudo, Biofilia: um ritual autoetnográfico do desejo, não é a afirmação de uma suposta potência. Ao contrário, é uma incessante indagação ao mundo a partir de um certo território: o corpo de uma mulher transexual, negra e favelada. Se somos memórias contraídas no presente, ou seja, se a memória é de fato um ser em movimento molecular no presente, a pergunta que biofilia faz do início ao fim é: como conviver com a lembrança (trauma) em meio aos cacos da memória? É sobre isso de que trata biofilia: um resgate desejante de nós mesmos a partir dos escombros que o mundo nos deixou.

Bibliografia

Deleuze, G. (2018). Diferença e repetição. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra.

Lapoujade, D. (2015). Deleuze, os movimentos aberrantes. São Paulo: N-1 Edições.

Nietzsche, F. (2000). Humano demasiado humano. São Paulo: Companhia das Letras.

Oliveira, T. (10 de Outubro de 2018). À beira do abismo, os escombros. Acesso em Abril de 2019, disponível em Revista DR: http://revistadr.com.br/posts/a-beira-do-abismo-os-escombros/

Prado, M. (Diretor). (2006). Estamira [Filme Cinematográfico].

Silva, M. R. (2018). Corpos antropofágicos: supermáquina e interseccionalidades em cartoescrita de fluxos indisciplinares. Manaus: UEA.