Dossiê: Vibrações do Inaudível

Performance e Tradução em A Dívida Impagável, performance audiovisual de Michelle Mattiuzzi


A arte da performance moderna, não é novidade pra nós, é coisa de pretxs e suas artes na diáspora; modo de escapar de um espelho único do mundo, brincando de ser performer, fugindo dos modelos representacionais necropolíticos e dos modos genocidas e epistemicidas de produção do capital branco, pra tentar brincar de não morrer. (CARRASCOSA, 2018 p. 77)  


O convite das editoras veio acompanhado da sugestão de escrever sobre meu trabalho como tradutora negra dissidente sexual e de gênero e sobre a importância de uma percepção escurecida para traduzir textos escritos por pessoas negras para além de (demandas) políticas de representatividade. 

O primeiro impulso foi o de falar sobre a solidão dessa prática tão importante para mim e para as minhas e, ao mesmo tempo, tão mal-entendida enquanto produção (co-)autoral, artística e epistêmica. O cansaço, a solidão, o epistemicídio, entre outros fatores, geram e alimentam inseguranças: Como transmitir tal ideia para determinado contexto? Quais as melhores formas de trazer para o público-alvo determinado termo, conceito? Ficar colada no texto para não “desvirtuar” ou prezar pela fluência? Atualizar ou marcar o lapso temporal entre a data de escrita e a data da re-escrita/ tradução? Quem vai ler essa tradução? Quem está, de fato, lucrando com produções intelectuais negras?

Traduzo intelectuais negras porque precisamos nos conhecer, nos articular além de fronteiras nacionais, através e além de nossas diferenças. Esse trabalho é, ao mesmo tempo, um gesto de crítica, recepção, leitura, articulação e interpretação de produções artístico-intelectuais-culturais de pessoas da Diáspora Negra, historicamente escamoteadas, alvos do esquecimento, epistemicídio, apropriação cultural enfim, de todas as facetas da violência racial. Minha dissertação trata dessas questões, discutindo os processos tradutórios de poesia negra alemã, fazendo também uma crítica e mediando a recepção dessa poesia no Brasil. Esses processos pareceram findar após o depósito da citada dissertação no acervo da biblioteca institucional. Contudo, em dezembro de 2018 participei da vivência “Retorno ao Futuro”, proposta pelo artista transdisciplinar Diego Araúja em Salvador. Nesta ocasião falamos de nossos processos artísticos-críticos, traçamos princípios, meios e fins (não necessariamente nessa ordem). Melhor, compusemos círculos que constituem e produzem tais processos, pontuamos a necessidade de uma crítica negra encarnada, implicada e implicante. A vivência foi um espaço mais seguro e profícuo para refletir sobre minha prática, que eu julgava meramente acadêmica, mas que é, primordial e intrinsecamente artística.        

Discutindo nossas motivações po-éticas para fazer arte (e) crítica, falamos sobre a análise rasa de obras de artistas e intelectuais negrxs (apenas) a partir dos temas assimilados pelo mercado (escravidão, racismo, empoderamento, etc.) e como isso nos confina nas armadilhas da representatividade que destaca um indivíduo para falar e representar uma multiplicidade de identidades e experiências. Caminhos viciados de uma crítica caduca e pálida, que não se implica, que opera na chave binária do “bom” versus “ruim” erigida sobre parâmetros eurocentrados, dependentes de políticas e do jogo da representatividade, que reforça, muitas vezes, o mito do gênio único (no masculino mesmo), que se destaca e eleva de seu grupo, mantendo a lógica racista da exceção e excepcionalidade.

Percebi que algo que nos move, como artistas-críticxs-intelectuais negrxs vivxs, é o desejo de que o que fazemos faça sentido para nossas comunidades, gerando auto/re/conhecimento sobre nós mesmxs e nossas histórias, criando sempre, a partir de paradigmas epistemológicos nossos, outros caminhos e possibilidades de VIDA, de FUGA, de LIBERDADE, dentre tantas outras brincadeiras “de não morrer”. É nesse sentido que a tradução de obras negras, feita a partir e através de nossas epistemes e epidermes é, em si, processo de vida, de rememoração e de diáspora, pois prescinde de deslocamentos, trânsitos e transes temporais, espaciais e linguísticos. Posso dizer que meu trabalho como tradutora é pura motivação de ouvir, ler, conhecer, difundir e multiplicar epistemes negras, afinal preferimos multiplicidade à representatividade.      

Audre Lorde[1] disse que “poesia é um acontecimento circular.” E por isso é, e gera movimento, nos move! Foi pensando nos movimentos diaspóricos rizomáticos de uma poesia que funda um movimento político-identitário na Alemanha em meados dos anos de 1980, impulsionado pela presença de Audre Lorde, que traduzi alguns poemas de ayim e o documentário sobre os anos que Audre Lorde esteve em Berlim, já que todos esses fatores reverberam muito na minha experiência de vida. Portanto, é no “leitmotiv” do movimento, que faço a palavra po-ética afrodiaspórica girar para além do âmbito acadêmico. Em junho de 2018 comecei a confeccionar livretos artesanais com poemas de may ayim e traduções minhas ao lado. Na capa há uma ilustração que a artista visual Annie Ganzala compôs inspirada pela leitura dos poemas e que constitui mais um elemento dessa circularidade poética.                  

Essa ética circular de nossas produções artísticas-epistêmicas que venho tentando delinear é observável também na performance audiovisual “A Dívida Impagável”, da performer, escritora e pesquisadora Michelle Mattiuzzi e é nela que vou me deter nas próximas páginas. Mattiuzzi elabora esta performance a partir de pesquisas e processos artísticos-afetivos com textos de Denise Ferreira da Silva, Jota Mombaça e traduções minhas de poemas de may ayim. A performance de 18 minutos aconteceu no Itaú Cultural em São Paulo abrindo a programação do Festival Risco[2] no dia 6 de dezembro de 2018. Mattiuzzi através da performance “saúda as poéticas da escrita negra”, fazendo a palavra escrita circular, dando plasticidade, audibilidade, multidimensionalidade, urgência e agudeza aos textos escritos.  

No caso específico das traduções, Mattiuzzi performa torções no tempo, no espaço e na língua, já que a palavra de ayim grafada em alemão, fora diversas vezes falada pela própria poeta em eventos na em outros espaços (Alemanha, EUA e África do Sul, por exemplo). Aqui e agora (no momento da performance) as palavras que talhei em bom pretuguês no silêncio barulhento das elucubrações que prescindem o processo tradutório passam a fazer parte – ademais do repertório artístico de Mattiuzzi – do arcabouço das artes negras contemporâneas no Brasil, e portanto, de um imaginário maior, somando e multiplicando sentidos na Diáspora Negra.  

Foto: Divulgação. 

Exercendo a oralidade na performance – para nós, fundamento ligado à memória e à produção epistêmica – Michelle Mattiuzzi vestida totalmente de branco encontra-se de costas para o público, sentada em um banco posicionado no meio de um semi-círculo formado por lâmpadas que emitem luz branca. Essas luzes são acesas e apagadas ao que parece, a princípio, acompanhar o ritmo e o timbre de sua voz gravada ao re-citar as palavras das intelectuais mencionadas. Nesse momento inicial da performance, as palavras tornam-se de Mattiuzzi que as traz, ou melhor: as traduz – do mundo linear da escrita e das páginas brancas de livros – em movimento, oralidade, corpo e em performance, na qual sua fala articulada em primeira pessoa, ampliada pelo aparato fonográfico é “esclarecida” pela luz branca. Aqui somos tomadxs por contrastes: O primeiro é o tom monótono, cordial, quase robótico da projeção da voz da artista acompanhada pelo som idílico do canto de pássaros, contrastando com o teor das palavras que redefinem quem somos nós e quem são eles: “Pois o tempo de pedir licença passou e pra senzala eu não volto nunca mais. Hahahahahahahaha!”

Outra contraposição é o figurino e iluminação branquíssimos. O que é esse holofote branco, – que ao “esclarecer” tanto, chega a apagar a figura de Mattiuzzi, e por ser tão intenso, quase cega o público – senão a própria branquitude (objeto de estudo da artista) e/ou seus holofotes de transparência e representatividade?

Som e luz se acompanham numa progressão que causa estranhamento, surdez e cegueira. Ambos elementos se impõem e volume e intensidade desde a voz mimicamente “clara”, instrutiva e racional de Mattiuzzi até o grunhido eletrônico ensurdecedor, acompanhado de um aumento da incidência dos feixes de luz branca no corpo da artista. O desconforto é intenso e persiste. Mas a “clareza” e racionalidade de uma retórica pausada, de uma sintaxe iluminada, compreensível, didática e “bem articulada” não deveriam acalmar os ânimos, por seguirem a lógica de quem fala e de quem fala “bem”? Acontece que o movimento da palavra é aqui a própria poética afrodiaspórica, que contradiz o racismo (a cegueira da luz) e reverbera (po)-éticas negras em trânsito, traduzidas e em transe. Transe parece ser um acionamento da performance que paulatinamente inunda os sentidos do público com audibilidade-barulho, clareza-cegueira, lucidez-alucinação.

Os usos dos elementos sonoros em “A Dívida Impagável” geram um tensionamento gradativo junto à simultaneidade e efeitos de versos quebrados e palavras repetidas. A voz distorcida do final contrasta com a lucidez das palavras no início, bem como o tom didático-irônico-pedagógico dos sons das palavras que “caem da boca”, contrastam com seus efeitos, pois as palavras caem como bombas, “doa a quem doer”. Simultaneamente aos sons, há uma gradativa chuva de raios de luz branca, que gera o desaparecimento relâmpago do corpo da performer: primeiro quando a luz se apaga e depois, pela exacerbação dessa luz incidindo no corpo da artista e no ambiente. Mesmo quando a imagem do corpo ao centro some, a voz continua dando a sensação, muitas vezes, de não prescindir do corpo, já que as palavras são também de outras, são também nossas, frutos de longas, intensas e silenciosas elaborações. Palavras atemporais e coletivas.

Em certo momento da performance, mesmo sob a descarga intensa de luz branca e o estardalhaço eletrônico, a voz de Mattiuzzi não perde audibilidade e seu corpo ergue-se acima do feixe de luz, se equilibra e brinca – de pé no banco – com a gravidade.

 […] Talvez devamos discernir nessa poética uma vontade permanente de conjurar a morte, prolongar a vida ad infinitum pela interação simultânea da voz e do corpo montado periodicamente em uma pluralidade que é reconfortante porque promete a imortalidade. (YAI, 1986 p. 99). 

Minha tradução – reverberada na cena de Mattiuzzi – são tributos às que já viveram, viverão e vivem. Uma forma de dar sentidos à presença do passado, do presente e do futuro (não devidamente nessa ordem) em nossas vidas e de lidar com os persistentes nascimentos e assassinatos de nossos próprios corpos. Foi lendo e traduzindo ancestrais, assistindo à performances e também performando que algo que eu já sabia há muito tempo tomou conta dos meus pensamentos: nós compartilhamos uma língua, construída dos gestos de re-criar os cacos históricos, linguísticos, físicos de nossas existências, de nossas alegrias. Para Carrascosa (2018 p.81) “Os gestos performáticos configuram um canal estético-corporal-vocal para traduzir a realidade cotidiana opressiva (corporal e mentalmente), alterando sua ordem simbólica na série histórico-social.” Assim, a criação e acionamento de memória, produção intelectual-artística e projeção de narrativas presentificadas em “A Dívida Impagável” nos permite ver o sujeito negro onde as lentes brancas convencionais acreditam ser impossível, isto é, na produção epistêmica, na arte, na tradução, na Alemanha, de pé, vivo! e principalmente fora de seu feixe de luz, seja em sua faceta visibilizadora (espetacularizante) ou necropolítica. 2 lados da mesma moeda, mas que finalmente – como bem manifesto na performance – ineficazes para apreender esse corpo que se levanta, que desvia, que foge.

As palavras ditas na performance e oriundas de elaborações forjadas no acúmulo da experiência diaspórica, parecem tensionar os limites da escrita e da oralidade, da audibilidade e da noção de esclarecimento. O corpo e voz de Mattiuzzi em performance degustam palavras viajadas e traduzidas, que sobrevivem à morte de quem as escreveu e ao próprio encarceramento da escrita:

[…] 

as grafias são grades

os pontos são começos

em cada disparate rebenta

uma ilusão

a jaula tem um porta

enquanto isso prefiro

estar excluída

prefiro

não estar

incluída. [3]  

may ayim (1990) 

Ao recitar traduções (escritas) de poemas (orais), a performer faz crítica oral. Olabiyi Yai (1896) nos alerta sobre o paradoxo da crítica de poesia oral ser comumente feita no ocidente de modo escrito. A performance “A dívida impagável” de Michelle Mattiuzzi compõe e atualiza todos esses processos po-éticos e críticos não previstos pelo ocidente. Yai (1986, p. 96) cita sociedades Gẹlẹdẹ para demonstrar como a performance é elementar em suas práticas regulares e cíclicas de re-criação, e como “a crítica da performance está ligada ao modo de produção e existência da poesia oral”, destacando que “no modo Efê como realizado na Yorubalândia Ocidental, a crítica da performance acontece coletivamente.” Deste modo, seria interessante compreender nossas práticas artísticas negras contemporâneas como práticas, cuja “peculiaridade […] é justamente o fato de ser[em] concebida[s] como exercício comunitário, como produção coletiva” (YAI, 1986, p.97) em constante renovação e reinvenção de nossas vidas na Diáspora.                                                                        

A performance de Mattiuzzi pode ser compreendida, nesse sentido, como resultado e como provocadora de produções que nos movem. A obra engendra futuro(s), ao corroborar e potencializar um projeto mitopoético comunitário transnacional, que é onde insiro minha prática tradutória. 

Eis a rede de poetas-performers-tradutoras-teóricas-pesquisadoras-artistas afrodiaspóricas (se) movimentando (através da) a palavra que enxergo in formation no círculo onde Michelle Mattiuzzi está em sua performance-crítica-tradução. Gosto de pensar que, ao contrário do que se forja, a Diáspora Negra não se resume à separação e ao apagamento, mas é recriada em e recriadora de encontros. Nós temos nos AQUILOMBADO em rodas ou semi-círculos que giram em sentido anti-horário há muito tempo. Fazemos isso também através de traduções crítico-criativas, de traduções performativas, de performances de traduções, de registros escritos de oralidades, de oralização de escritos, etc., etc., etc. Para Yai (1986 p.96) “Para ser capaz de compreender a poética oral da poesia oral, devemos descartar qualquer teoria que apresente essa poesia como um “produto” ou um “trabalho” que tenha as características de finitude e fechamento como implicadas por esses conceitos. Em vez disso, deveríamos falar em “produção” ininterrupta.

A performance “A Dívida Impagável”, gira palavras traduzidas e viajadas, impulsionando não apenas essa crítica escrita, mas também outros processos performáticos subsequentes. Como por exemplo,  a Leitura Dramática do texto traduzido do alemão “AFROKULTUR: O Espaço entre o Ontem e o Amanhã”, de Natasha A. Kelly. Nessa ocasião, no âmbito do FIAC (Festival Internacional de Artes Cênicas)[4] em Salvador recitei poemas de may ayim e tive a alegria de dividir o palco com duas grandes artistas da cidade de Salvador: Sanara Rocha e Mônica Santana, além da colega e professora de alemão Ivanete Sampaio. Assim e aqui, a circularidade de nossas críticas performáticas se completa, mas não se fecha nem finda, pois nossas palavras são imortais.
                             

Referências Bibliográficas

CARRASCOSA, Denise França. CRÍTICA PERFORMATIVA. fólio – Revista de Letras, [S.l.], v. 10, n. 2, fev. 2019. ISSN 2176-4182. Disponível em: <http://periodicos2.uesb.br/index.php/folio/article/view/4744>. Acesso em: 03 mar. 2019. doi: https://doi.org/10.22481/folio.v2i10.4744.

Da SILVA, Denise Ferreira. A dívida impagável: lendo cenas de valor contra a flecha do tempo. Disponível em: < http://www.buala.org/pt/mukanda/a-divida-impagavel-lendo-cenas-de-valor-contra-a-flecha-do-tempo > Acesso em 02 de mar. 2019. 

PINHEIRO, Diego. Questões sobre a arte contemporânea negra. In: Revista Barril. Vol 10 – março de 2017. Disponível em: < https://www.revistabarril.com/questoes-sobre-arte-contemporanea-negra/ > Acesso em 03 de mar. 2019. 

YAI, Olabiyi. Issues in Oral Poetry: Criticism, Teaching and Translation. disponível em:< https://repository.library.georgetown.edu/bitstream/handle/10822/555479/GURT_1986.pdf?sequence=1#page=109 > Acesso em 26 de fev. 2019.

Notas

[1] Conferir o documentário “Audre Lorde – The Berlin Years: 1984-1992”, de Dagmar Schultz

[2] Conferir: http://riscofestival.com/2018/estreia-risco-em-processo/

[3] Todas as traduções contidas nesse artigo foram feitas por mim.

[4] Conf. http://fiacbahia.com.br/espetaculos/afrokultur-leitura-dramatica/

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