Dossiê: Subjetividades, Política e Mídia

Os novos movimentos se constituem a partir de diagramas (e não de programas)…

Os protestos urbanos dos últimos anos irromperam, se irradiaram e se multiplicaram de modo diagramático. Não passaram por um programa político — consciência política ou representação — passaram muito mais por uma dimensão micropolítica, afetiva, existencial.

Não se trata somente de uma ação espontânea. Houve a acusação de que os movimentos de junho não tinham pautas, o que sequer é verdade. Redução das tarifas, mais direitos e serviços públicos e desmilitarização da polícia são só alguns exemplos.

Tudo começou por causa de 20 centavos. E foi uma reivindicação vitoriosa, sem que houvesse um programa por trás, reconhecido como tal pelas organizações tradicionais, os partidos ou sindicatos. Aliás, programas estão em desuso, basta constatar sua total irrelevância nas últimas eleições.

Será que, diante disso, seria o caso de clamar por programas mais claros e definidos, como aqueles que delimitavam um campo de lutas há tempos atrás? Não sem atribuirmos uma nova significação política a tais programas. O diagrama é uma tentativa nessa direção e parte da constatação de que o capitalismo atual funciona como regime semiótico.

O capitalismo hoje investe pesado na produção de signos e na constituição de um sistema expressivo. O poder das marcas é um exemplo. E as marcas não são somente aquelas que expressam nitidamente o poder do capital, das grandes corporações e tal. Estamos imersos em um processo de produção de signos: nós também produzimos marcas, logos e palavras de ordem.

O diagrama é uma maneira de pensar a repartição entre expressão e conteúdo sem passar pela representação, não apenas no nível político, mas no próprio âmbito da linguagem. Quando dizemos algo (por exemplo, “Não vai ter Copa!”) somos imediatamente interpelados a responder o que isso quer dizer. “Isso quer dizer aquilo” é um modo de repartir a expressão e o conteúdo. Um modo que toma o enunciado como mediação, nada além de um meio para alcançarmos o significado: “aquilo” que queremos dizer. Ao adotarmos esse regime expressivo, subscrevemos um mecanismo de representação. 

Não importa, em um primeiro momento, o que o “Não vai ter Copa” queria dizer. Idem para o “não nos representa”, “indignados”, “somos todos x ou y”, e tantos outros enunciados produzidos nos últimos movimentos ao redor do mundo. São expressões que produzem elos, que ligam pessoas (virtual ou fisicamente), que produzem mobilizações e protestos.

Esses elos, pontes, conexões, são produtos de ações diagramáticas, que se dão em uma dimensão invisível. Aqui, os estratos corporais e semióticos ainda não foram separados.

O diagrama ignora a distinção entre conteúdo e expressão. Falamos (e como!), produzimos uma infinidade de enunciados. A relação entre um enunciado e o que ele quer dizer depende da situação micropolítica em que tal enunciado se expressa.

O diagrama diz respeito a graus de intensidade que pilotam a constituição de uma situação real. É impossível saber o que algo significa sem estar dentro da situação. Hoje, estamos atentos quando um homem vem dar lição de moral sobre movimentos feministas, um branco se posiciona contra uma luta dos negros, um hetero avalia as pautas LGBTs etc. O lugar de fala já é visto como algo importante. E há muitas variações, dependendo de casos ainda mais singulares. As feministas mostram os peitos e escrevem “somos todas vadias” sobre o próprio corpo. Entendo plenamente o sentido dessa inversão, que acho potente. Mas há mulheres negras que contestam sua universalidade, pois não reconhecem em sua afirmação como vadias um movimento de emancipação em relação ao lugar que lhes é atribuído.

Claro que qualquer enunciado está inserido em um contexto, parte de uma posição social. Isso já sabemos. O que dizemos aqui está em uma dimensão ainda mais micro, mais sutil. Normalmente não prestamos muita atenção a este âmbito de coisas, no qual a subjetividade ainda não está formada, no qual o indivíduo não é uma unidade de conhecimento ou de afeto. Uma dimensão pré-individual.

A lógica e a linguística escolhem bem seus exemplos para que essa dimensão fique em segundo plano. Se digo “tenho fome”, claro que isso quer dizer algo, parece bem simples de entender. Mas há enunciados que não são tão claros: se alguém diz “você está diferente…”, o que essa pessoa quer dizer? Que estou gorda? Com rugas? Não é possível saber antes de uma conversa (uma DR!). Nem seria preciso tomar uma fala tão subjetiva… Mesmo quando afirmamos que “a água ferve sempre a 100 graus”, estamos diante de um enunciado tornado relevante por uma certa visão de mundo, aquela que instaurou a ciência tal como praticada até hoje.

Não há nada que “queira dizer” algo sem que se passe por agenciamentos, por relações de força, que esclarecem ou obscurecem o que é dito, que tornam o enunciado relevante ou sem importância. São essas relações de força que fazem com que a significação funcione, não há nada de arbitrário nesse processo. A diagramática é uma recusa de rebater a enunciação sobre os enunciados, requer uma atenção constante às relações de força que estão em jogo, aos agenciamentos, às ligações que se produzem.

O diagrama é um mapa das relações de força que se encarnam em situações concretas. Ordenar, aconselhar, prometer, dar a palavra, elogiar, levar a sério ou na brincadeira, tirar sarro, são ações diagramáticas que fazem com que a máquina expressiva se coloque em marcha. Essas ações conectam, ao mesmo tempo, as expressões e os corpos.

Os enunciados (em palavras, imagens ou o que quer que seja) são flechas lançadas ao vento. Digo algo e isso me aproxima (ou me afasta) de alguém. Um acontecimento se produz tanto na dimensão da expressão quanto na dos corpos, ao mesmo tempo. E assim captamos o sentido daquilo que é dito.

Pois bem, finalmente, começo a falar da relevância política disso tudo… Acredito que uma reflexão desse tipo é necessária se quisermos pensar os novos tipos de organização capazes de reconstruir a luta política (em crise). E principalmente se quisermos entender os modos como o capitalismo se insere (sorrateiramente) nos próprios movimentos que desejam combatê-lo.

Parece impossível, hoje, não questionar por meio de qual recorte podemos definir o antagonismo das lutas. O recorte de classe parece não dar conta (ao menos não por si só) da definição do sujeito revolucionário. Por outro lado, há inúmeros movimentos sociais, movimentos de minorias que parecem potentes, mas muito fragmentados. As divisões chegam a assustar, dentro de uma mesma luta de minoria há fraturas que parecem irreconciliáveis.

Por isso, insistirei sobre o tema das conexões, a necessidade de um cuidado das conexões. E claro que aqui não se tratam das conexões com fio ou sem fio que estabelecemos todos os dias pela rede. Falo dos laços que ligam movimentos de tipos diferentes, organizados a partir de interesses e problemas diversos.

Uma maneira pela qual o capitalismo codifica as formações sociais é o corte entre o individual e o coletivo. Um movimento se constitui a partir da recusa de interiorizar essa divisão, pois todo o incômodo que parecia emergir do individual (familiar, conjugal, psíquico) passa a se ligar a outras questões nada individuais (étnicas, raciais, sexuais, estéticas).

Há, contudo, uma outra maneira pela qual o capitalismo codifica as formações sociais de modo a integrá-las em sua própria dinâmica: por meio da produção do isolamento e da fragmentação. O capitalismo pode até tolerar a dimensão coletiva e política das questões que preocupam uma minoria, contanto que ela não se conecte a outras minorias, a coordenadas transversais, ou seja, a lutas que parecem estrangeiras a uma determinada minoria. Isso leva alguns grupos a enxergarem suas reivindicações como parte da esfera interna, como problemas que só concernem àquela comunidade. O capitalismo lida muito bem com demandas minoritárias que sejam bem estabelecidas, que possam ser codificadas, que tenham um estatuto particular.

Claro que não mobilizaremos nenhuma força subjetiva renunciando à singularidade de cada grupo social. Mas também não dá pra combater o cinismo capitalista entrando no gueto, falando somente uma língua particular. É sim, usando muito do gueto, de sua sensibilidade e seu dialetos próprios, mas para conectá-los, para ligá-los a outras lutas. Talvez só assim consigamos inventar um devir autônomo imprevisível, passando por conexões transversais entre atores diferentes, lutas transnacionais. Uma nova internacional.

Depois de junho, os momentos de maior potência dos movimentos foram aqueles em que diferentes lutas se encontraram, produzindo mobilizações imprevisíveis (professores e black blocs; garis e movimentos culturais). 

Precisamos urgente de novos parâmetros para avaliar, de modo imanente, a efetividade das lutas e das organizações desse ponto de vista. Que modos de existência elas propõem? Que modos elas encarnam? Qual o potencial de conexão dos problemas que colocam e das reivindicações que trazem?

O critério dessa avaliação é a aptidão para conectarmo-nos com outras lutas, para ligar nossos problemas aos problemas de outros, ainda que muito distintos do ponto de vista das identidades. Não dispensamos sequer uma boa DR: “não foi bem isso que eu quis dizer” é a fala recorrente em uma boa discussão de relação, na qual os lugares se rearrumam, os elos (porventura machucados) se recompõem. 

Falar outra língua, não só a nossa. Manter uma variação contínua que não pare de ultrapassar o padrão majoritário. Criar uma figura universal da consciência minoritária, uma nova internacional, de tipo diagramático. Linhas e traços que constituem o que há de minoritário em todo mundo, em oposição aos princípios majoritários de funcionamento do capitalismo.

Incrível como deixamos de lado o antagonismo em relação aos mecanismos sutis do capitalismo (como se fosse uma fatalidade intransponível) e, ao mesmo tempo, reforçamos os antagonismos entre as diferentes formas de luta. Estamos sempre na defensiva…

O capitalismo tem uma vontade deliberada de fixar, de barrar os fluxos, de substituir seus princípios de funcionamento às ações diagramáticas que procuram escapar, fugir pelas beiras. Tal seria a função de uma política diagramática: operar por relações transversais entre problemas distintos, a fim de barrar o modo como o capitalismo codifica as relações sociais para integrá-las, para fazê-las funcionar ao seu modo e para os seus interesses.

Trabalhar em termos de diagrama é desenvolver uma heterogeneidade de posições. Posições de grupo, posições sociais e mesmo posições em relação a si mesmo.

A dimensão diagramática é a dimensão do possível que emerge de uma ruptura política. O que vivemos em junho pode ter sido dessa ordem, o desbloqueio de um possível. Como o possível nunca está dado de antemão, não se exprime pelas forças políticas existentes, é somente um começo, algo que modifica a subjetividade, faz-nos vislumbrar novos caminhos, ainda que a sociedade e as instituições continuem as mesmas. O próximo passo é saber como esta mudança pode mudar também a sociedade, e aqui o problema do programa e do projeto aparecem novamente, mas inseparável do regime diagramático. 

Que movimentos e que novas formas de luta seremos capazes de criar? Nenhuma instituição existente pode ajudar a responder. Nenhum governo ou partido. Só um trabalho constante pela constituição de máquinas revolucionárias, políticas, teóricas, libidinais, estéticas…

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Edição 1