Dossiê: Falas e falhas da Universidade

O negro e a Universidade: o que posso falar disso

No que diz respeito ao nome, Universidades seriam uma comunidade multidisciplinar, que além da ampla abordagem temática, objetivasse a diversificação entre seus discentes e docentes. Porém, o que se apresenta realmente nas grandes universidades brasileiras é um grande meio elitizado, branco e cis. Identificar isso não é generalizar, é “ir na ferida” e expor que, quem está nesse ambiente detém privilégios. Claro que hoje, com cotas e programas como FIES e PROUNI, os rostos detentores de diplomas em formaturas vêm aos poucos mudando, mas essas pequenas mudanças são acompanhadas de grandes manifestações racistas, desde trotes que acorrentam, dão plaquinhas chamando de “Chica da Silva” e pintam alunas de negro, até perseguições de alunos, com direito a armários pichados, como aconteceu comigo.

“Dorothy Counts foi a primeira estudante negra admitida numa escola pública americana (de brancos). A fotografia retrata seu primeiro dia de aula na Universidade de Harry Harding, na Carolina do Norte (EUA), em 4 de setembro de 1957.O vestido de Dorothy foi feito por sua avó especialmente para seu primeiro dia de aula. Cuspiram nele.Centenas de alunos seguiram e acompanharam sua chegada à escola. De vez em quando alguns jogavam coisas em sua direção enquanto outros faziam gestos obscenos. Os estudantes gritam para ela voltar para casa. Dorothy foi em frente sem reagir. Este absurdo momento de violência prosseguiu nos dias seguintes. Foram 4 dias de perseguições e insultos. Jogavam lixo durante a sua refeição e seu armário era saqueado. Depois surgiram ameaças telefônicas agravando ainda mais a situação. Por fim, os seus pais consideraram que a sua vida poderia estar em risco e optaram por tirá-la da escola.Pode parecer pouco mas os quatro dias em que Dorothy tentou frequentar a Harry Harding High School foi de grande importância para o Movimento dos Direitos Civis e fim da segregação racial nos Estados Unidos.”

Retirado da página: As Minas na História.

A minha vida inteira estudei em escolas públicas, me destacando nas Olimpíadas de Matemática, tirando altas notas no Saresp e passando em primeiro lugar nos vestibulinhos para cursos técnicos. Por incrível que pareça, mesmo sendo negra e nunca tendo sido cobrada diretamente pela minha mãe a ser melhor que todos por ser negra, fato que é comum entre negros, eu me autocobrava para ter boas notas, ser uma ótima aluna e me destacar.

No fundo minha autoestima, abalada por me considerarem feia, via no destaque no meio acadêmico a saída. E assim foi até 2011 quando entrei no terceiro ano e via minhas amigas falando que precisávamos fazer cursinho para o vestibular e me vi presa em inúmeras inseguranças — queria ser universitária, mas como chegar nisso?

Fiz uma prova e ganhei uma porcentagem de bolsa de estudos no cursinho Etapa e conciliei estudos do final do ensino médio com cursinho, pois sonhava em passar em Arquitetura e Urbanismo.

No primeiro simulado que fiz, a coordenadora do curso me chamou numa sala e disse que meu desempenho tinha sido satisfatório, e que eu tinha que manter aquela média se quisesse passar em Arquitetura e Urbanismo, já que esse era um dos cursos mais concorridos. Eu tentei.

Eu tentei manter minha sanidade mental não abalada naquele espaço, onde eu percebi o quão distante minha realidade estava de quem pagava 700 reais para ficar o dia todo decorando qual alternativa merecia o X certo.

Eu comecei a questionar meritocracia e a ler textos com discurso de esquerda aos 17 anos pois eu estava frustrada sabendo que eu não iria poder competir com aquelas pessoas, então quando começou 2012 e eu consegui uma bolsa pelo PROUNI para fazer Arquitetura e Urbanismo, na PUC – Campinas, eu considerei que eu tinha vencido, afinal eu estava na UNIVERSIDADE.

Acho que Dorothy a moça do começo desse texto pensou o mesmo, afinal na minha família eu sou a primeira mulher negra a estar nesse espaço e numa PUC, num curso elitizado que vai ter esse diploma e todo os privilégios de ter estudado naquele lugar.

Entretanto ser uma mulher negra na universidade está muito próximo ainda da realidade de Dorothy.Por mais que em 10 anos com as políticas afirmativas, o número de negros do espaço universitário tenha triplicado aqui no Brasil, quem está nesses ambientes elitizados de grandes universidades públicas e particulares sabe que é nos dedos de uma só mão que conseguimos contar nossos semelhantes.

O racismo institucional ainda é a realidade do ensino de qualidade no país. Essas grandes instituições de ensino, além do pouco número de alunos e docentes negros, o segundo em menor número ainda nesses espaços, não propiciam um ambiente agradável e acolhedor para alunos negros. Paralelo a isso, cresce o número de faculdades particulares com cursos com preços mais acessíveis que vão de alguma forma contemplando o anseio de alunos pobres e negros de estarem no ensino superior. Contudo isso não só vem, infelizmente, criando uma lógica onde o aluno de escola pública paga pelo ensino de faculdades particulares com privações não encontradas nas grandes universidades, que continuam mantendo a hegemonia de alunos em sua maioria brancos e de classe média alta.

Criam-se pequenos paliativos para que não se enegreça os centros de ensino da branquitude, essas bolhas de privilégio que, por sua vez, seja pela a falta de moradia, de restaurantes com preços acessíveis, de bolsas para transporte, alimentação, creches e até a ausência de debates sobre a questão racial feito com alunos e docentes, acabam ainda sendo um dos ambientes onde a desigualdade racial fica mais evidente e a forma como ela será mantida também.

Estamos vivendo um momento que para além da discussão em cima de cotas, que já foram implementadas em federais, mas não em algumas estaduais como a USP (Universidade de São Paulo), é necessário debater as políticas de permanência para que alunos negros que ingressam no meio acadêmico não parem seus cursos no meio deles, ou que não passem por um processo de agressão a sua saúde mental.

Em 2013 os alunos da minha faculdade, como já disse, picharam meu armário com a  frase: Não ligamos paras as merdas que você posta no seu Facebook.

Desde então, aquele tornou-se um ambiente hostil, o processo de empoderamento que eu tive enquanto mulher negra na sociedade machista, racista e elitista, foi paralelo ao desconforto dos demais alunos para com a minha presença e discurso. Então as “merdas” que eu falava não eram nada além de um discurso feminista e contra o racismo. O cabelo crespo que eu usava na faculdade, que era um dos únicos crespos dali, foi zoado pelos alunos de engenharia enquanto eu caminhava de volta para casa. Alguns professores que deveriam ser os que me passariam conhecimentos plenos e gratificantes me ensinaram, por exemplo, que “mesmo com a minha cor escurinha eu conseguiria ver as nuances de diferentes cores de luz”, ou que “é desnecessário que haja instalações de água quente no térreo de um edificio, afinal o porteiro no barraco dele nem água deve ter”. Com um dos meus amigos mais próximos na universidade eu aprendi que mesmo sendo negra eu “não cheirava mal que nem os outros negros”.

A universidade me mostrou que para além de lutar para ter o mesmo desempenho que pessoas que detém recursos financeiros bem maiores que os meus, acessos a livros e a conhecimento mais facilitado, tenho que disputar contra o racismo e a forma como ele me adoece quando mostra todo seu ódio contra mim.

Eu estou cansada.

Por mais que eu tenha encontrado na arquitetura e no urbanismo um grande amor, ele veio junto com uma depressão que ainda estou aprendendo a lidar.

Mas além de ser uma cotista deprimida, eu sou uma mulher negra que está ocupando um espaço que negras geralmente não estão,  um meio onde existem poucos negros (no país ao todo só temos 70 professores universitários negros) mas muitos na faxina.  Às vezes estar na universidade acaba não sendo nem um pouco revolucionário ou contestador, quando ela acaba espelhando essa sociedade segregadora, oriunda de mais de 300 anos de escravidão.

E reverter essa lógica não é tornar o negro tema de trabalhos de TCC, mestrados, ou doutorados, mas sim incluí-los no meio acadêmico, como forma de empoderamento e de dar voz ativa em suas lutas e causas. Ou seja, incluir o negro requer muito mais que cotas, é preciso que matérias façam recortes, que as universidades proponham atividades. É necessário que a manutenção do aluno negro ultrapasse apenas a situação financeira, através de bolsas de estudos, mas com sua saúde psicológica garantida e isso requer que o meio seja acolhedor.

Como não é possível tolerar trotes racistas, também não se pode aceitar que alunos negros sejam minorias em salas de aula, num país onde mais de 50% da população tem nossa cor.

E recomendo que muitos negros tentem gozar desse privilégio de estar na universidade, mesmo sabendo que os vestibulares são catracas racistas, que a permanência é complicada e adoece, nós negros precisamos estar nesses espaços. Não quero que se um dia eu tiver um filho, ele sendo negro, seja o único do ano dele como eu sou. E o processo de mudança infelizmente parece andar a passos lentos. Num momento da história, Dorothy não pode concluir seus estudos, agora eu estou perto do fim dos meus. E talvez no começo de uma carreira intelectual.

A Universidade precisa aprender uma lição que não está nos livros de filosofia ou nas grandes teses, ela precisa saber o que é ser negro! E só nós podemos ensiná-la.

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Edição 2