Dossiê: Situar/Mover - Corpo, território, política

Do campo violado, mulheres e povos ensaiam ações de resistência

A colonização brasileira fez das mulheres indígenas e negras corpos disponíveis para o trabalho e o gozo. Desde que o mundo é o mundo do desenvolvimento, do patriarcado capitalista, usou-se da mulher como quem se dispõe da própria terra: um corpo-campo existindo para que dele se extraia. O campo e suas mulheres é o que foi deixado para trás, como atrasado e anacrônico, dele saindo apenas o necessário para o mundo que se criava.

No Norte de Minas Gerais, de onde escrevo este texto, e em muitos territórios campesinos, esta violência colonialista e patriarcal não acabou. E se renova sempre, constante ameaça: é o que vivem as mulheres nortemineiras quando suas comunidades são invadidas por mineradoras transnacionais, que, com a desculpa de geração de empregos e circulação de capital/mercadorias, violentam recursos naturais, aumentam índices de violência sexual e prostituição, e, findo o trabalho, abandonam o pedaço de chão como quem larga um corpo após se saciar. Estas mesmas mulheres que aprenderam com suas mães (que, por sua vez, aprenderam com as mães de suas mães) ofícios e práticas de curandeiras e parteiras, mas são desprezadas em detrimento de um saber técnico científico que as vê como pitorescas ou impostoras. Mulheres que do café ao jantar se dobram em cuidados para o marido que vai cedo trabalhar na roça, e precisam ouvir que seu trabalho reprodutivo não tem nenhuma relação com o trabalho do homem, que “realmente” gera renda para a família enquanto elas ficam lá, “sem fazer nada”.

É certo que todas as mulheres, apenas por carregarmos nosso corpo e nele uma identidade e uma história, levamos o território mínimo a ser explorado, a qualquer momento e de qualquer maneira, pela violência sexista. Mas aquelas inseridas em situações específicas vivenciam vulnerabilidades que só elas conhecem; e é o caso das mulheres que dependem financeiramente do marido, que não tem seu trabalho reconhecido, que sofrem com baixa auto-estima, tem sua atuação política cerceada e ameaçada. Em pesquisa realizada pela CONTAG e pelo IPEA com mulheres que participavam da Marcha das Margaridas em 2011, 55% disseram já ter sofrido violência moral e 25% violência física. A divisão sexual do trabalho, que destina ao feminino o espaço doméstico de invisibilidade e silenciamento, mina pouco a pouco a valorização da mulher do campo, e o que começa como palavras de humilhação  vindas do parceiro não tarda em evoluir para ameaças e agressões físicas.

Pergunto para Maria Lúcia Agostinho, geraizeira e agricultora, qual é a diferença de ser uma mulher no campo. Ela me responde sem medo: “é essa questão de não ter o dinheiro dela, né. Fica mais difícil pra mulher encarar o marido violento”. Maria Neuracy de Sá, sua amiga, complementa: “E além disso, quando faz um serviço na casa ou na horta, [o marido] fala que tá só ajudando. Não é ajuda não, é trabalho!”. Há quase dez anos, as duas participaram da criação do Coletivo de Mulheres do Norte de Minas, que surgiu como “uma rebelião das mulheres para ocuparem mais espaços”, como elas mesmas contam. Hoje, o Coletivo está em mais de 30 municípios, anima grupos produtivos de mulheres e participa da Marcha das Margaridas, Marcha Mundial das Mulheres e do GT Gênero da Articulação Nacional de Agroecologia.

Os grupos de mulheres são hoje espaços de resistência à violência de gênero no campo. Aos poucos, mulheres agricultoras vão exercendo a poderosa subversão de se encontrarem, ainda que seus parceiros e famílias nem sempre apoiem as reuniões. “O meu mesmo é muito machista”, diz Maria Lúcia. “Tem muito marido que não deixa a mulher sair, falar… e tem violência pior que essa? Mas eu vou do mesmo jeito, participo de todo encontro”. Assim, ao mesmo tempo em que se organizam para produzir polpas de frutas ou hortaliças, estas mulheres começam a falar de suas vidas, partilhar histórias que percebem tão parecidas, e desta forma compreendem o que já diziam as feministas dos anos 60: o pessoal é político. Mulheres reunidas falando sobre algo que alguém não quer que elas digam é sempre um ato revolucionário, e para a realidade do campo este ato significa agricultoras assumindo vozes de denúncia e criação. Elas falam sobre suas vidas, tomam decisões, criticam e exigem. Saem do doméstico e do privado para adentrar na esfera do espaço público, participando de organizações de representação coletiva e defesa de direitos.

São estas mulheres, assim como povos e identidades que resistiram à margem desta civilização fundada pela violência, quem hoje ensaiam as respostas para a crise de um mundo para o qual nunca foram plenamente convidados – respostas que nunca seriam capazes de formular aqueles envolvidos demais com sua lógica colonialista, patriarcal e capitalista. Estas mulheres se organizam em iniciativas de economia solidária e feminista, experimentam dinâmicas de Bem Viver, ousam saberes descolonizadores de produção através da Agroecologia. Se não fogem à DR, empoderam seu estar-no-mundo, e exigem de outras pessoas que sejamos mais respeitosos e feministas. Quilombolas que batem forte no peito e nos tambores, agricultoras que usam plantas medicinas e sementes crioulas, indígenas que vão para a linha de frente. Parteiras, rezedeiras, curandeiras, jovens, mães, avós, com forte vínculo afetivo ao que não é apenas terra, mas território: chão de afetos, saberes e belezas pelos quais toda a luta vale a pena.

E todas elas me lembram que também sou um território a ser defendido.

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Edição 3