Dossiê: Vibrações do Inaudível

Biofilia: Um ritual autoetnográfico do desejo



Ao lado do abismo, os escombros. E sobre eles, nós, invisíveis, sobrevivendo, fazendo comunidade.


Tatiana Oliveira, 2018

Biofilia é uma ode desejante à vida. Biofilia é uma linha de fuga que irrompe o mundo a partir de UM ritual de canibalização de afectos que passam pela carne, pela raça, pelo gênero e pela subjetividade desta que vos escreve, ou seja, biofilia nasce a partir de uma cerimônia de antropofagia cujo banquete é composto pelas minhas dores, minhas memórias, meus sonhos, minhas experiências e meu desejo imanente de estar, existir e viver neste mundo cujas desterritorializações provocadas pelos modos capitalistas forjam grandes extremos que condicionam sobretudo nossos corpos-territórios. Biofilia não é sobre resistência, mas sobre um modo singular de mergulhar nas mortes cotidianas e no vazio dos romantismos para extrair partículas de potência vital que ultrapassem sobremaneira os horizontes de acontecimento e permita, deste modo, invadir o grande buraco negro do mundo. Há quem pense que há somente aniquilação e que nada escapa à força dos buracos negros, mas é a partir do mergulho desejante nele que podemos extrair as singularidades: é o limite que rasga os véus do mito racial e revela suas entranhas em um doloroso e violento processo de criação de si. A etapas da performance são inúmeras, passo a descrever efemeramente algumas que me vem à cabeça com seus movimentos aberrantes (LAPOUJADE, 2015) de invenção, não necessariamente na ordem em que ocorrem. 

  1. A incrível Bethânia, em seu Canto para Oxum, diz “quando eu morrer, voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar”. Biofilia é esse retorno pós mortem, não apenas a morte literal, mas aquelas pequenas e singulares mortes que cotidianamente insistem em nos aniquilar; como resistir? Não há resistência que não passe necessariamente por um processo de reinvenção. Nesse sentido, é possível afirmar que só pode haver resistência se houver necessariamente um processo singular de implosão das racionalidades que movem e outorgam o vivido (e seus modos de existencialização), com efeito, só há potência-(re)existência se formos capazes de agenciar uma máquina de guerra que irrompa processos de irracionalidades e destitua, deste modo, o velho modus operandi inaugurado pelo humanismo. É preciso uma indisciplina para não sufocarmos com a disciplina, não desejamos mais o humano demasiado humano (NIETZSCHE, 2000), mas somente compor por devires animais de toda ordem, devir-sankofa: é esse nosso (des)rumo. Cunhambebe disse no comecinho do século XVI: “eu sou uma onça, tá gostoso” (SILVA, 2018). Foi assim que ele foi muito maior que o alemão bisonho. 
  2. Biofilia é uma intoxicação (in)voluntária. É um ritual onde a Terapia Hormonal, levada às últimas consequências durante a adolescência, é ressignificada através de uma performance que busca destituir a necroestética que, por vezes, vaza os poros das pessoas trans. É verdade que nem sempre as teorias dão conta da vida, mas é verdade também que não pode existir teoria sem vida. Biofilia é uma tentativa de cartografar uma vida que se encontra sempre no limiar, nas beiras e assim faz pulsar as multiplicidades desse mapa. É um encontro dentro e fora dos encontros que faz nas beiras um agenciamento de beiras: o agenciamento trans-negro do mundo é “nas beiradas, sanguíneo nenhum pode ir lá” (ESTAMIRA, 2006). Uma pílula clandestina. Uma seringa com óleo. Uma força que extrai da força fraqueza. Biofilia não é sobre ser forte: é sobre como não deixar a força produzir os arrepios da dor e do cheiro da morte, a linha de fuga é a sutil delicadeza de um gesto de fraqueza. É porque o choro jamais deixou de conter a potência da força e o grito jamais deixou de fazer nossa carne vibrar. Este é o movimento intensivo da vida na morte.
  3. O bisturi que fez minha boceta é o resultado das dobras que levam ao infinito aquilo que antes me matou tantas vezes. Seria um paradoxo se não fosse a própria dor passível de desdobra. O bisturi que me fez sangrar quase até a morte, foi aquilo que me permitiu experimentar meu primeiro orgasmo ainda num leito de hospital. Mas eu já havia sangrado até a morte em meados da década de 1990 quando um homem tapou a minha boca e enfiou o pênis duro em meu ânus provocando minha dupla morte: a da minha alma e a da minha dignidade, conjurando o meu corpo. Eu nunca mais pude me recuperar. Eu já havia sangrado até a morte três anos antes quando outro homem enfiou seu dedo no meu ânus e me fez sentir a dor da vergonha se espalhar pela minha carne. Eu perdi a minha infância e as teorias edipianas jamais foram capazes de trazê-la de volta. Eu morri há muitos anos atrás muitas vezes. Nós morremos todos os dias de algum modo. Eu respirei por aparelhos toda minha adolescência em cada lata catada na rua, em cada papelão que dobrava, em cada riso que insistia em tirar de mim minha própria potência de sorrir. Biofilia não é boa – não se trata do dualismo bem contra o mal –, mas de um mergulho intensivo num plano de imanência que as teorias edipianas jamais foram capazes de proporcionar.  Biofilia é uma tentativa de resgate pelas sombras de um corpo, de uma memória estraçalhada nos escombros da minha própria vida.
  4. “Você nunca vai ser uma mulher”, gritava minha genitora com ódio, mas havia tanto amor emanando dos meus pequenos seios que cresciam, contra todas as expectativas, que mal ela sabia que eu era uma mulher molecular antes mesmo da primeira dose de hormônio. Cresciam como poesia. Regavam minha alma. Eu nunca tive dúvidas: o peito que brotava era como uma pequena e destemida flor que cresce nos cantos dos muros de concreto pelo mundo afora. Era vida na morte em meio ao turbilhão de morte na vida. Pura biofilia, um desejo único de querer descobrir até onde aqueles peitos iriam me levar. Me levaram para muitos lugares: meus peitos eram violência pura que o mundo não conseguia suportar, o confronto e o abalo à norma corpo-identitária. Eu venci o mundo com o amor revolucionário doado pelos meus próprios peitos. Mas o mundo não deixou de produzir trauma, o mundo jamais deixou de me contaminar. O mundo vive e morre em mim na mesma medida em que eu vivo e morro no mundo, não há mais separação. Com efeito, há apenas afectação sine qua non de multiplicidades.
  5. A boceta cirurgiada não é apenas um buraco, como ouvi algumas vezes, é um plano de imanência que me faz transbordar a cada dia a potência do vivido nos movimentos intensivos que aprendi a produzir. Na biofilia, ela é o território de esvaziamento do significado para, assim, desejantemente, construir um novo repertório de significação que passa antes de tudo pela enunciação de um porvir. A minha xana é um agenciamento coletivo de enunciação onde saber, poder e subjetividade se fundem para combater, paradoxalmente, os enunciados de outrora, produzindo fissuras no modelo que a constituiu. Trata-se de um movimento extra-pessoal, infra-pessoal e semiótico que, ao mesmo tempo, indivualiza os processos e os multiplica coletivamente. Os dildos, utilizados em biofilia – e fundidos na minha boceta (são um só e a mesma coisa) –, são ao mesmo tempo o aparelho de captura – que em certo sentido condicionam a vagina a um certo tipo de repertório corpo-identitário normativo – e a máquina de guerra que escapa da norma “capturante” num movimento singular do desejo. Não há mais linhas cronológicas, pois a experimentação de si é sobretudo acrônica. Ela faz da acronia um anacronismo estético desejante, isto é, o ritual autoetnográfico do desejo. Embora as virtualidades – as memórias em pulsação – não se dissolvam na atualização – movimento de acessar as virtualidades para reconduzi-las aos processos de diferenciação – provocada pelo desejo de fazer a vida explodir como o big bang criou o universo, ela é responsável por um movimento intensivo singular na dobra do movimento extensivo singular, ou seja, tempo é invenção e justamente por isso ele é um processo incessante de singularização. É através da virtualização dessas memórias em sua duração – que não possuem menos e nem se opõem à realidade – que a atualização instala um processo de diferenciação pelo qual algo difere de si mesmo e atinge uma singularidade (DELEUZE, 2018). Tal processo não se dá por semelhança, mas na diferença de si mesmo consigo mesmo. Enfiar um dildo nesta vagina cirurgiada, nesse sentido, não é repetição de um ato mecânico somente – para dilatação do corpo vaginal –, mas também um mergulho num processo outro na busca pela potência da vibratilidade do vivido como resgate de linhas ou fluxos do não vivido: uma experimentação orgasmática de si no mundo das mortes. Com efeito, é um eterno mergulhar no buraco negro do mundo.
  6. Biofilia tem músicas, poemas, imagem, performance, drama e alegria. Assim, a estética que ganha corpo não é mais a necroestética, mas a bioestética: uma política ritual como ode desejante da vida. Não para superar a morte, como uma leitura precipitada poderia indicar, mas para pensar com os processos de morte onde é que a vida escapa. As músicas são reportórios auditivos do ritual, os cravos e as rosas são repertórios olfativos do ritual, os movimentos através da penumbra são os repertórios visuais do ritual, o meu corpo e a água são os reportórios que se ligam ao paladar e, por fim, o repertório do tato é constituído pela conjunção dos objetos dispostos ao uso. Assim, os cinco sentidos são acionados durante essa performance. Eles correspondem às cinco dimensões que o desejo percorre e se conecta ao infinito. Há um agenciamento coletivo de corpos, emoções e sensações que não escapam ao ritual, nesse sentido, quem assiste a performance necessariamente está conectado ao banquete antropofágico – comendo ou sendo comido – servido e experimentado pelos cinco sentidos ou as cinco zonas de experimentação do desejo.    

Mas apesar disso tudo, Biofilia: um ritual autoetnográfico do desejo, não é a afirmação de uma suposta potência. Ao contrário, é uma incessante indagação ao mundo a partir de um certo território: o corpo de uma mulher transexual, negra e favelada. Se somos memórias contraídas no presente, ou seja, se a memória é de fato um ser em movimento molecular no presente, a pergunta que biofilia faz do início ao fim é: como conviver com a lembrança (trauma) em meio aos cacos da memória? É sobre isso de que trata biofilia: um resgate desejante de nós mesmos a partir dos escombros que o mundo nos deixou.

Bibliografia

Deleuze, G. (2018). Diferença e repetição. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra.

Lapoujade, D. (2015). Deleuze, os movimentos aberrantes. São Paulo: N-1 Edições.

Nietzsche, F. (2000). Humano demasiado humano. São Paulo: Companhia das Letras.

Oliveira, T. (10 de Outubro de 2018). À beira do abismo, os escombros. Acesso em Abril de 2019, disponível em Revista DR: http://revistadr.com.br/posts/a-beira-do-abismo-os-escombros/

Prado, M. (Diretor). (2006). Estamira [Filme Cinematográfico].

Silva, M. R. (2018). Corpos antropofágicos: supermáquina e interseccionalidades em cartoescrita de fluxos indisciplinares. Manaus: UEA.


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