O Estado Islâmico é a outra face do cenário sangrento da globalização

Myriam Benraad, especialista em estudos sobre o Iraque e sobre o mundo árabe, associada ao Centro de Estudos e de Pesquisas Internacionais (CERI-Sciences Po), autora do livro Iraque, a Vingança da História: da ocupação estrangeira ao Estado Islâmico (Ed. Vendémiaire).

Os atentados que causaram a morte de 129 pessoas em Paris neste 13 de novembro foram reivindicados pela organização Estado Islâmico. Por que fomos incapazes de impedir a ameaça terrorista?

Myriam Benraad – Em primeiro lugar, é preciso dizer sem hipocrisia que nós sabíamos muito bem que várias ameaças pesavam sobre a França há muito tempo. A forma como foi tratado o episódio anterior – o caso do trem Thalys – foi terrível nesse sentido. Foi preciso que civis aparecessem e ajudassem outros civis. Aquela crise colocou em evidência que o nosso governo – mas ele não é o único – não tinha nenhuma estratégia séria de luta contra o Estado Islâmico. O caso do Thalys traduzia a incapacidade de nossos políticos diante desta ameaça, e a crise do político em nossas democracias.

Também é preciso acrescentar a isso os erros que foram cometidos: o intervencionismo catastrófico no Iraque, a má gestão da crise síria e da crise iraquiana, a administração deplorável de nossas relações no Oriente Médio e com o mundo árabe… Não podemos ter políticas de luta contra o terrorismo eficazes enquanto não fizermos uma clara e honesta constatação da situação. Nossa parte de responsabilidade nesse desastre é enorme.

Conseguimos compreender a natureza da organização Estado Islâmico?

Myriam Benraad – No que diz respeito ao Estado Islâmico, há igualmente uma grande hipocrisia, pois sabemos muito bem que ele não se trata apenas de uma organização do Oriente Médio. É um fenômeno global, como mostram os ataques que se abateram sobre a França. É uma organização que quer se vingar do mundo inteiro e esta mensagem de vingança contra a “ordem mundial” toca muitas pessoas. Daí o recrutamento em larga escala que é feito pelo EI, recrutamento que também ocorre nos países ocidentais. O Estado Islâmico é a outra face do cenário sangrento da globalização.

Por que esta organização consegue prosperar?

Myriam Benraad – Se o EI é tão influente em todo o mundo – e não somente no Oriente Médio – é porque ele tem um discurso articulado, que ele difunde abundantemente na internet. É preciso compreender bem que o Estado Islâmico não é um estado religioso. A sua aparição nos é apresentada como um choque de civilizações, que colocaria em oposição o mundo muçulmano ao Ocidente judeu-cristão, mas não é este o caso. Ele é um movimento que é, ao mesmo tempo, terrorista e revolucionário. De crítica ao mundo. O comunicado emitido por eles a respeito do ataque de 13 de novembro é prova disso.

Por trás do aparato religioso que o envolve, há um discurso sobre a questão do capitalismo moderno, das desigualdades, do racismo, das discriminações em escala mundial e da crise profunda do multiculturalismo. Enquanto não tivermos coragem de dizer isso, enquanto esse movimento nos for apresentado como um movimento meramente restrito ao Oriente Médio e puramente religioso, estaremos passando ao largo da verdadeira questão.

Para você, é este discurso que explica a influência desta organização sobre uma parte de jovens?

Myriam Benraad – Vamos pegar o caso dos combatentes franceses na Síria. Que paremos de mentir para nós mesmos: eles não foram para lá porque são psicopatas. Eles foram para lá porque há uma crise da juventude na França. Eles são atraídos pelo EI porque é romântico, é aventura, é a revolução diante de condições que eles não aceitam mais. Os jovens que se tornaram radicais podem ser desempregados, pessoas em crise espiritual e que caem no islamismo radical, ou também pessoas que queriam aventura, porque se entediavam. 

O resutado do abandono do político diante de tudo isso é que, na França, centenas de civis morrem agora. É terrível como constatação, mas eu não acho que a gente possa continuar a mentir para nós mesmos sobre esta questão. Não será suficiente apoiar-se no Bachar para resolver o problema. Não estamos em uma terceira guerra mundial, mas este é o objetivo que o EI persegue.

Você acredita, como Jean-Pierre Filiu, que “os terroristas querem que nós matemos os muçulmanos”, e que procuram fomentar uma guerra civil?

Myriam Benraad – Sim, são pessoas que matam, só isso. Eles começaram massacrando populações civis na Argélia sob o manto do Islã. Eles continuam a excomungar, a declarar o outro apóstata para matar. São gangues criminosas, empresários da violência, que aproveitam os pontos fracos de nossas sociedades.

O que aconteceu em Paris é prova do fato de que o EI continua a progredir sobre a derrota do pensamento e da política. O EI foi apropriado desde o seu início por especialistas e responsáveis políticos que encontraram um filão neste fenômeno, por razões políticas ou econômicas. Eles difundiram um discurso enganador sobre ele, e nós pagamos o preço por isso.

Tradução: Marco Gérard
Entrevista original em: http://mobile.lesinrocks.com/2015/11/15/actualite/letat-islamique-est-lenvers-du-decor-sanglant-de-la-mondialisation-11788004/

Mulheres Negras na Tecnologia em Marcha

Entre os dias 6 e 8 de novembro aconteceu a TechSampa, em São Paulo. Fui a facilitadora de uma oficina de programação para meninas e mulheres, a rodAda hacker [1]. Um encontro de troca de saberes e experiências em tecnologia com uma metodologia pensada por mulheres para mulheres. A primeira vez que participei de um encontro assim foi em novembro do ano passado, em uma edição da rodAda especial para mulheres negras, na Arena Carioca Dicró, Zona Norte do Rio. De lá para cá a relação gênero, tecnologia e raça tem estado presente em minhas reflexões, já que a maioria das tecnologias que usamos são criadas por homens cis, brancos, de classe média. E geralmente para homens. Sempre penso no que pode ser diferente quando as tecnologias são desenvolvidas por mulheres e o que pode ser mudado a partir de outras visões de mundo atreladas às suas experiências, dando novos usos às ferramentas.

Algumas iniciativas, como a rodAda e outras oficinas e encontros que visam empoderar mulheres no mundo da Internet, das linguagens de programação e no desenvolvimento de novas tecnologias, realizadas por coletivos como o Minas Programam, PrograMaria entre outros grupos criativos e desenvolvedores, demonstram que mulher e tecnologia é uma combinação potente que gera soluções para problemas que são enfrentados na grande maioria por mulheres, como a questão do assédio sexual. Cada vez mais (e ainda bem) vemos novos aplicativos e sites desenvolvidos por mulheres com a função de combater a violência cotidiana que sofremos no espaço urbano, seja nos transportes coletivos, no trabalho, na rua e infelizmente muitas vezes dentro das nossas próprias casas.

Essa edição da rodAda aconteceu em seis lugares da capital paulista, para além de  espaços privilegiados de acesso à tecnologia e internet, como a Zona Oeste e Centro de São Paulo sendo organizada pelo Olabi [2] e parceiros. Nestes lugares a disputa de e por uma equidade de gênero no campo tecnológico já é uma meia realidade, ainda que com muita desigualdade. Decidimos então por expandir ainda mais as possibilidade de acessar outros públicos e chegar as periferias. Nesse processo de expansão chegamos ao Capão Redondo, espaço onde criei e construí as minhas referencias sobre o mundo, me reconhecendo como mulher, negra e periférica.

Fizemos uma parceria com o “Coletivo Rosas – Fala guerreira” que reúne minas de várias periferias de SP, que atuam no bairro do Jardim São Luiz, região vizinha do Capão, para que a rodAda acontecesse lá. Há algum tempo as minas estão nessa pegada de se fortalecerem e ocuparem juntas novos espaços de poder, disputando narrativas e fazeres sobre si e suas realidades. Recentemente elas lançaram a revista impressa “Fala Guerreira” com textos, poesias e ensaios fotográficos a fim de discutir outras formas de feminismo, sobretudo o feminismo negro, periférico e não central.

A experiência no Capão me trouxe outra dimensão do que é pensar inovação tecnológica hoje. A ideia de projeto das minas do Coletivo Rosas foi criar um mapa onde fosse possível identificar os lugares mais perigosos para as mulheres na região, já que o Capão é um lugar com alto índice de ocorrência de estupros, sugerindo rotas mais seguras. Outra ideia que surgiu foi a de um mapeamento de histórias “positivas” de luta e enfrentamento das mulheres, atualizando memórias que também são importantes.

É simples perceber que os problemas e soluções tecnológicas trazidas por mulheres periféricas e negras têm potências políticas transformadoras para além do que os meios de comunicação e tecnologias tradicionais costumam pensar. É uma possibilidade de sair do senso comum e apostar no que vem a ser inovação social, onde a tecnologia contribui para  transformar a vida e as relações das pessoas em todos os territórios.

Diante do contexto político, em que os direitos das mulheres são alvos de retrocesso como propostas de leis que dificultam ainda mais os processos de cidadania de mulheres, sobretudo negras –  como o caso da PL 5069/213 – faz com que a gente inclusive pense tecnologia a partir de um viés excludente, muitas vezes sendo racista, machista e classista. É o senso comum fabricando um comum senso. Um ciclo que nós estamos quebrando. Por isso é necessário que estejamos dominando essas ferramentas, porque as nossas demandas só serão contempladas se estivermos com as mãos, os dedos, os olhos e a cabeça nisso, porque não farão por nós.

O processo de abertura desse tipo de código é capaz de promover transformações efetivas e nós, mulheres negras e periféricas, ainda ‘saímos na frente’ quando o assunto é violência em toda a amplitude que o significado dessa palavra tem. Mas isso vai mudar! Importante falar de mulheres negras que estão disputando espaços até então “não pertencentes” à elas, inventando lugares, participando dos debates e das discussões como Jenyffer Nascimento, Yasmin Thayná, Karina Vieira, Janaína Damaceno, Dai Ramos, Alessandra Tavares, Luana Dias, Thamyra Tâmara, Débora Marçal e muitas outras com seus textos sobre o primeiro assédio, ocupando colunas de homens na campanha #agoraquesãoelas e muito mais.

De alguma forma essas mulheres influenciam e empoderam outras minas que a partir de novas referências se sentem seguras para criar, e principalmente, para se reconhecerem e se unirem à outras mulheres. Isso demonstra que existe sim a presença de mulheres negras, periféricas e faveladas pensando novos arranjos e contribuindo para a transformação das relações em que o racismo e machismo sejam superados. Novas relações.

[1] A rodAda hacker ocorre desde 2012 iniciada por Daniela Silva, pesquisadora e realizadora do campo das novas tecnologias e já aconteceram em vários lugares do país. O nome com faz referência à Ada Lovalace, matemática que entre 1842 e 1843 criou o primeiro algoritmo lido por uma máquina, sendo a primeira programadora da história.
[2] Plataforma de inovação social, tecnologia e criatividade.

Marcha das Mulheres Pretas 2015

Na manhã de uma quarta-feira, 18 de novembro de 2015, mais de 10 mil mulheres pretas ocuparam as ruas da Esplanada dos Ministérios em Brasília em Marcha Contra a Violência, o Racismo e Pelo Bem Viver. No Brasil atual as mulheres negras ainda vivem um quadro bastante cruel. Mulheres negras perdem filhos, maridos, familiares, ano após ano. O Brasil tem quase 60 mil homicídios por ano, a maioria são jovens negros moradores das periferias do Brasil. Quem mais mata e quem mais morre são pretos. Mas quem aperta o gatilho todos os dias é o estado branco e racista que favorece um sistema de exclusão e desigualdade. Enquanto na universidade apenas 10% dos alunos são negros (isso depois do sistema de cotas que só avança), na cadeia 70% dos presos são pretos. Se os números não te assustam e se ainda assim você não acha que alguma coisa está errada, olhe ao seu redor. A maioria das crianças de rua é preta, a maioria das mulheres que morrem em decorrência de uma interrupção na gravidez é preta, a maioria das mulheres vítimas de violência doméstica seguida de óbito é preta, a maioria, dos trabalhadores em cargos subalternos e de serviços, é preta e provavelmente você já teve uma empregada preta. E se o branco de hoje não se sente responsável diretamente pelo passado escravocrata do Brasil, no mínimo todos nós devemos nos responsabilizar pelo o que aconteceu e buscar uma reparação histórica.

‍Crédito: Página Marcha das Mulheres Negras 2015

Se existe um Devir Mulher Negra ele provavelmente vai muito além que um feminismo branco. Se mulheres são afetadas diretamente pelo machismo que perpassa suas relações afetivas, de trabalho e em todos os níveis, as mulheres negras, além do machismo diário que enfrentam dentro e fora de casa, sofrem com a opressão racial. Elas são as maiores vítimas de feminicídio, vivem em condições degradantes de trabalho, passaram de mucamas e amas do Brasil colônia para arrumadeiras, cozinheiras e babás. Além de ganhar menos do que homens e mulheres brancas. Resumindo: estamos na merda! E Essa luta que se fez em Brasília com mulheres de todas as cidades do Brasil se faz todos os dias desde muito tempo atrás. Ela acontece com minha avó, aconteceu com sua mãe. Na verdade começou bem antes disso com Dandara, Anastácia e outras guerreiras negras que apesar de marcarem seu nome na história não estão nos livros didáticos. Não ouvimos sobre elas nos livros infantis, nos desenhos animados, na novela, no cinema, na televisão. Antes que a violência física mate uma mulher preta já chegou a violência simbólica. Aquela violência que destrói sua autoestima, que transforma sua visão sobre si mesma da pior forma possível. Todas essas histórias distorcidas que ouvimos sobre nós pretas, sobre nossa cor de vadia, nosso cabelo crespo ruim, nossa boca e nariz grande feio, sobre não sermos boas para casar, para amar. Talvez isso tenha nos destruído antes de tudo.

Crédito: Página Marcha das Mulheres Negras 2015

Nenhuma mulher branca, por melhor intencionada que esteja, pode entender completamente a dor de uma mulher negra. Porém isso não quer dizer que não é possível estar juntas. Apesar de não ser possível nos identificarmos totalmente com o outro, é possível ter empatia pelo outro. É possível encontrar um ponto COMUM que nos una a um Devir maior. Talvez Deleuze chame esse Devir maior de um Devir minoritário universal. O Devir das minorias? Talvez. Talvez o que possa nos unir seja essa luta maior, esse desejo por uma sociedade igualitária e democrática que está ali, em algum lugar, em alguma montanha. Na qual corremos e corremos e não alcançamos. Talvez esse Devir Maior seja simplesmente uma célula, um pontinho, uma semente que plantamos diariamente nessas micro revoluções do cotidiano. Mas talvez esse devir seja simplesmente o Devir do AMOR.

O corpo e a voz – quem fala, quem pode falar, quem grita?

Hoje eu consegui chorar pela primeira vez. Meu corpo, em convulsão silenciosa na última semana, conseguiu dar algum destino para as micro explosões que se sucederam, milhares por segundo, desde que tomou conhecimento da aprovação do Projeto de Lei 5069/2013. Esse projeto que dificulta o atendimento às vitimas de estupro no SUS, obriga as mulheres estupradas a irem antes na delegacia se submeter a um exame de corpo delito para poderem ser atendidas no Sistema Único de Saúde. 

Minha primeira reação racional de revolta foi criar um evento público no Facebook, chamado Mulheres Contra Cunha, para que pudesse aglomerar mulheres conhecidas e pensarmos juntas em alguma atitude contra o autor desse projeto, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que na última semana além do PL 5069, aprovou também o relatório da PEC 215, que tira do executivo o poder de demarcação das terras indígenas, revogou o estatuto do desarmamento e aprovou a Lei antiterrorismo que criminaliza movimentos sociais (de autoria do Partido dos Trabalhadores!)

O evento rapidamente se alastrou indo muito além do universo de “mulheres conhecidas”. Em algumas horas já tinha mais de 3000 confirmações. E nessa abertura, o primeiro confronto. Eu havia escolhido como foto de capa da página, uma foto de uma passeata contra a censura de 1968, cuja linha de frente era formada exclusivamente por mulheres brancas. Muitas mulheres chamaram a atenção para o racismo da foto. E essa constatação era tão evidente. Deveríamos todxs saber que as mulheres que morrem realizando abortos clandestinos tem cor e endereço, e a exclusão da foto dessas mulheres, sua invizibilização era mais uma violência. Eu que tanto critico o “esquerdomachismo”, tive que me deparar com meu “esquerdoracismo” e diante dele fiquei pensando se ainda podia falar, qual a legitimidade da minha voz. Me sinto nesse momento como os homens que insistem em se pronunciar sobre os relatos do meuprimeiroassédio, e que me irritam com a sua impossibilidade de deixar de lado o protagonismo das lutas, do discurso.

Foto: Matias Maxx 

Troquei a foto, pedi desculpas, mas algo em mim se abriu irremediavelmente, incontornavelmente. O que abriu pra mim foi o mapa da cidade, do Brasil, do mundo, no qual eu me vi localizada em um lugar estranhamente privilegiado e que sustenta esse privilégio as custas de uma brutal violência policial que mata e silencia pobres, negras, negros e toda a população indígena, todos os dias. A abertura desse mapa dentro de mim é algo sem volta, daquelas experiências subjetivas que te arrancam dos lugares conhecidos, te impossibilitam de falar, de criar uma narrativa coerente, de se colocar no lugar da autoridade. E pela primeira vez eu entendi com a minha carne, o silêncio do Blanchot. Desse crítico que havia namorado o fascismo na sua juventude e que procurou durante a vida um modo de falar que deixasse de dizer eu. Não que seja fácil. Não que seja possível. De certo modo a existência mesma desse texto e sua publicação já contradiz tudo isso. Mas não escrevê-lo era ainda afirmar muita coisa. As vezes o silêncio se constrói com palavras. Não sei. De todo modo, esse é o último texto que público na tentativa de explicar alguma coisa. De ter alguma coerência. O racismo da expressão esclarecer. Ainda a se pensar.

O evento se alastrava durante a semana com mais força, coincidindo com a explosão de relatos do primeiro assédio. Fomos todas assediadas. Todas! Construimos dessa forma nossa relação com nosso corpo, nossas relações sexuais e afetivas.  Cresci a vida toda com uma vergonha profunda do meu corpo, por ele não ser suficientemente atrativo para agradar o desejo masculino. Leio em revistas as manchetes “seu corpo está pronto para o verão?” e me contraio em vergonha, há muitos anos, pela constatação de que ele não está, não estará e nunca esteve pronto para esse verão que não chega. Sou incapaz de olhar meu corpo no espelho. Ele não vai agradar. Mas há força aqui porque sei que meu corpo não quer agradar ninguém, apesar dessas vozes de comando normativo que saltam das bancas de jornal.

 Os relatos dos assédios invadindo as redes como uma tsunami abriram todas essas feridas em mim. Não para sangrá-las, mas para transformá-las em fogos de artifício, o corpo todo em explosões invisíveis. 

As vozes saíram das telas dos computadores e invadiram as ruas.  Já na reunião de organização do ato, dois dias antes, 66 mulheres, de todas as partes, com o corpo inteiro para que tudo que parecia normal fosse desnaturalizado, enfrentado, transformado. Fomos as ruas, e pela primeira vez na vida não tive medo. Não porque não pudesse haver conflito. Mas pela sensação que tive pela primeira vez de que não estava só. Não estamos sós. Estamos juntas.

Freedas Crew: mulheres livres para pintar

Faço parte de um grupo de mulheres grafiteiras e o relato a seguir diz respeito a essa experiência.  O tema da minha pesquisa de mestrado em Antropologia, na Universidade Federal do Pará, me deu a bela oportunidade de me aproximar do fazer graffiti e do universo em que ele se insere, além de conviver, a partir de então, com algumas mulheres grafiteiras em Belém. 

Conheci a artista plástica e grafiteira Michelle Cunha em uma exposição na casa-ateliê da artista, logo após a indicação de um amigo, quando esse soube do meu interesse em pesquisar o movimento do graffiti paraense entre mulheres. Naquele dia houve uma programação voltada para a temática feminista com exibição de documentários e um bate-papo com um grupo de meninas ativistas. 

Alguns dias depois, Michelle divulgou uma oficina de graffiti para mulheres pelas redes sociais. Era uma oportunidade e tanto, já que eu tinha uma proposta também de experimentação do graffiti, mas não sabia como faria isso até aquele momento. Meninas de diversas idades, bairros, expectativas e histórias se apresentaram. Muitas se inscreveram, algumas não participaram, outras não foram até o fim, mas as que permaneceram formaram então as Freedas Crew. E o que seria uma Crew afinal? É um grupo de grafiteirxs que saem para grafitar juntxs, que assinam um nome em comum, que planejam muros juntxs; muitos acreditam que uma crew é uma espécie de família. 

Foto: Michelle Cunha

Tanto a oficina quanto a formação do grupo foram idealizadas por Michelle que via naquela ideia um incentivo para que mais mulheres se aventurassem na arte de rua e pudessem buscar o empoderamento, ocupando espaços públicos reconhecidos como espaços majoritariamente masculinos. O impulso surgiu quando percebeu que a masculinidade dos eventos e da cena do graffiti fazia com que muitas mulheres talentosas ficassem à margem. Era preciso movimentar a cena e fazer com que mais mulheres participassem desse espaço.

Freedas Crew também foi um nome pensado para simbolizar resistência, superação e a liberdade de mulheres artistas. O nome da crew é um anglicismo, com a junção da palavra free com o primeiro nome de Frida Kahlo, nossa principal inspiração. As Freedas são mulheres livres para pintar.

Falar de graffiti não exige obrigatoriamente que a pessoa suje suas mãos de spray, porém devo confessar que acompanhar as meninas nesse aprendizado e me tornar integrante de uma crew, não só me trouxe uma vivência que eu não teria simplesmente com a observação, como também me proporcionou sensações e ensinamentos de uma arte que está intrinsicamente ligada ao “saber fazer”. São elementos que transcendem a observação do fazer artístico e o seu estudo em textos acadêmicos. Uma crew, além de uma reunião de pessoas em sintonia, possibilita a construção de afetos. No caso das Freedas, esses afetos são fortalecidos por serem mulheres que passam juntas pelos perigos inerentes à rua, por estarem expostas à intervenções policiais, e às variadas formas de machismo que acompanham muitos dos passantes. O graffiti é arte que vê na rua a chance de existir e levar com ele todo o sentimento e a criatividade de quem faz. Tornar a rua uma galeria democrática de arte e de formas de comunicação inusitadas. 

Quando relembro o primeiro mutirão (é a junção de várias crews ou grafiteirxs independentes para a criação de um graffiti coletivo) percebo que só naquele momento é que ficou clara a necessidade da criação de um grupo. Não que isso já não fosse previsto, mas o pintar junto, a parceria no processo criativo do graffiti, a mobilização de cada menina para a efetivação do muro foi determinante para a concretização das Freedas. 

 O muro foi negociado pela Walquíria, professora de Arte na Escola pública Antônio Gomes Moreira Junior. Ocorreu em parceria com o colégio que viabilizou tintas PVA (é uma tinta a base d’água usada para diversa superfícies e são muito utilizadas para fazer a base dos graffitis) para a preparação do muro, que seria a parte frontal do colégio, a qual foi realizada pelos alunos do colégio no dia anterior. Os alunos juntamente com a professora passaram a PVA no muro utilizando diversas cores, divididas em blocos de parede. Isso faz parte do preparo prévio do muro. 

O mutirão foi organizado pela Walquíria e mobilizado por Michelle através das redes sociais. Michelle preparou um flyer do evento convocando grafiteiros para participarem. Walquíria mobilizou alguns professores para oferecer uma feijoada no final da atividade. 

Ao chegarmos, ficamos sem saber por onde começar, pois seria a primeira vez em que praticaríamos o graffiti em um mutirão com grafiteiros experientes na arte de rua, tínhamos acabado de conhecer técnicas básicas, mas precisávamos passar por este ritual, pois é na rua que o graffiti torna-se graffiti. 

Foi realizado um encontro dias antes do mutirão, para definirmos o que faríamos no muro do colégio. Então, pensamos em uma temática representativa do feminino, ou melhor, ficaríamos focadas em rostos de mulheres. Com um esboço do desenho em mãos, iniciamos o graffiti. Utilizamos giz de cera para fazer o rascunho na parede, de tempo em tempo, conferíamos a ilustração de uma certa distância, para assim, visualizarmos as possíveis imperfeições, torturas e falta de simetrias no desenho. Após o rascunho, utilizamos a PVA para a base dos rostos. Só assim percebemos o quanto se agigantavam suas dimensões. E o muro a cada traço se mostrava desafiador. As Freedas nasceram depois de alguns dias.

Foto: Thayanne Freitas

Nesses nove meses de existência conquistamos espaços, parcerias e muros em branco. Deixamos a cidade um pouco mais colorida com nossos traços que dizem muito e demonstram a pluralidade que é a crew. Somos mulheres diferentes, com sonhos variados e perspectivas e ideais múltiplos. Aprendi com as meninas que não é necessário homogeneizar o grupo para que ele funcione: a crew reflete a diversidade político-estética de todas. Unimo-nos pelo desejo de pintar e de ressignificar o espaço da rua, muitas vezes tão cruel para todas nós.

E questões passam a surgir: Por que mulheres pintando nas ruas? De short curto? Sem técnica definida? E esses personagens “fofinhos”? Estamos nas ruas para responder a essas questões. Porque lugar de mulher é onde ela quiser! (frase muito usada por uma de nossas integrantes – Ester) E acrescento: como ela quiser.

Mutirões, rolês e parcerias foram feitas. Mas isso fica para outra história.