Do megaphone ao iPhone nas vielas da favela

Esses dias caminhando pelo centro do Rio me deparei com um morador de rua nada típico (bom, deixa eu tentar explicar) . Conheci o Elias em 2011, na época participava de uma oficina de multimídia realizada pelo Viva Favela e estava participando de um trabalho de campo na Cinelândia. Ele tinha uma espécie de carrinho de mão todo equipado com som potente de festa, o carrinho,os fios, a eletricidade, a acústica, tudo tinha sido feito por ele com materiais que encontrou nos lixos da cidade. Durante o dia, Elias trabalhava fazendo o papel de gari, catando papelão e latinha pelo centro, e a noite ele era o “DJ” dos bares. Parava nos restaurantes com seu som e tocava uma música, depois passava o chapéu. Anos se passaram e o reencontrei na Carioca, depois do horário de almoço, tirando aquele descanso deitado no seu carrinho de madeira, assistindo ao jornal numa TV de plasma 40 polegadas embutida em seu equipamento de trabalho.

Em volta dele tinha um monte de gente parada abismada, se perguntando como que um cara que mora e trabalha na rua podia ter aquela TV. E de certa forma incomodados de ter que estar trabalhando enquanto o cara descansava em pleno horário de trabalho, naquela confusão do Centro. Aquela imagem dele ali, descansando, enquanto todo mundo corria, me fez rir e me deu um pouco de inveja vendo ele aparentemente vivendo tranquilo, trabalhando, mas também curtindo o lazer, indo na contramão do que seria o sensato dentro do sistema e se apossando da estética do andarilho, daquele que só quer flanar pela cidade. Por outro lado, eu não conseguia deixar de pensar: “o cara mora na rua e tem uma TV?”, e a minha moral culpava a sociedade de consumo e de alguma forma achava aquela imagem bastante incoerente.

Continuei caminhando pela cidade e pensando no Elias, pensando na conversa que eu  tive com ele em 2011. Ele tinha projetado um aparelho de som bacana num carrinho de mão, levava a vida de forma digna, era super inteligente, entendia de mecânica, eletricidade, mas nunca tinha ido à escola. Ele mesmo tinha inventado seu modo de produção e trabalho nas ruas. E  agora eu estava ali, anos depois, pensando em como ele deveria gastar o dinheiro dele (me censurei na hora!),  e resolvi mudar o foco da pergunta: Até que ponto aquela TV também não tinha sido transformada num equipamento de trabalho? Antes ele tinha apenas um som, agora ele podia ter um karoke (pensei…). Junto com a minha breve “moral” querendo ditar as regras “de como um pobre e morador de rua deveria se portar” eu me lembrei das vezes que ouvi críticas aos leks da favela que tinham o melhor celular do ano, Iphone, computador em casa, mas moravam de aluguel, ou andavam por aí ostentando tênis de 300 conto e roupa de marca. E de como essas críticas me incomodavam em certo sentido. Por que eles não podiam?

Nos últimos 12 anos o poder de compra dos pobres aumentou. E aqui eu não estou falando de um número exato ou de uma pesquisa qualificada, mas de coisas que vemos no dia a dia. Lembro quando eu era criança/adolescente, computador em casa era coisa de rico, ter internet, então, nem pensar. Hoje a gente brinca que tem yogurt grego em casa, queijo bola, TV com assinatura, wifi, viaja de avião, um monte de outras coisas que só a classe média fazia. É claro que eu ainda dependo do sistema público de saúde que é uma merda. A escola pública continua sem estrutura, a vala continua na porta de casa, ainda ficamos duas horas dentro do ônibus para chegar no trabalho, você pode correr o risco de ter sua casa removida e, à noite, ainda dá de cara com a polícia e um fuzil regulando a sua vida. No dia a dia e nos serviços básicos o pobre continua sendo o pobre. Porém, eu me pergunto se a inserção do pobre na cidadania por meio do consumo só trouxe mais consumo ou produziu outros formatos de participação e representação dentro da cidade.

Segundo uma pesquisa organizada pelo projeto Solos Culturais, vinculado a ONG Observatório de Favelas, em 2012, em cinco favelas do Rio de Janeiro: Rocinha, Cidade de Deus, Complexo do Alemão, Complexo da Penha e Manguinhos –  90% dos moradores entre  15 a 28 anos têm acesso à internet. Entre as redes mais usadas estão: Facebook e Youtube. A internet é usada por esses jovens tanto para baixar filmes e músicas como para veicular seus próprios vídeos, incentivando a transmissão e a produção cultural. O barateamento dos dispositivos eletrônicos nos últimos tempos fez com que a maioria desses jovens de origem popular acessem a internet de seus próprios celulares ou das lan houses – que foram apontadas em 2007 como  responsáveis por 49% dos acessos à internet no país,  assumindo importante papel no debate sobre inclusão digital no Brasil. O uso da internet e das novas tecnologias significa não apenas apropriação por parte dessa juventude favelada como também a possibilidade de ressignificar seu território, fortalecendo e dando visibilidade às suas práticas culturais.

O fenômeno do passinho é uns desses exemplos do fluxo que começou nos becos da favela e foi parar nas redes socias. Tudo começou quando  o jovem, codnome Gambá, da Ilha do Governador, morto tragicamente em janeiro do ano passado, conhecido como o rei do passinho e o jovem Cebolinha, de Cascadura, tido como um dos primeiros grandes dançarinos do gênero, gravaram vídeos com seus passos, postaram no youtube e começaram um duelo entre si que inspirou outros jovens a fazerem o mesmo. Desde 2008 outros vídeos com a dança começaram a proliferar no Youtube. Por meio das redes o Passinho ganhou projeção, disputou estética junto com outras linguagens da dança e mostrou que não era apenas uma modinha coreográfica, mas que estava ali para se afirmar enquanto cultura refletindo diferentes formas de existência e subjetividades.

Além de ser um dispositivo com inúmeras possibilidades de empoderamento e visibilidade, as novas mídias tem aberto também espaço para novos formatos de atuação política e militância na favela. Um dia desses, numa conversa com um amigo morador do Complexo do Alemão ouvi o seguinte:  “Durante muito tempo o que sabiam sobre a favela era só o que aparecia na TV, nós vivíamos a realidade daqui, eles só sabiam do que passava na telinha. Agora é nossa vez de fazer nois por nois”, desabafou Raull Santiago, cria do Complexo do Alemão e integrante do coletivo Papo Reto. Papo Reto é um coletivo de comunicação independente composto por jovens moradores do Alemão e da Penha e tem como principal foco a comunicação dentro do morro: eventos, protestos, reivindicações. O principal canal de divulgação do coletivo e seus fazeres é a página  no Facebook com mais de 3mil curtidas, além de um canal no Youtube e conta no Instagram. Tudo que acontece no território passa pelas lentes do Papo Reto que busca fazer uma cobertura diferente da mídia corporativa, uma espécie de: “do favelado para a própria favela” e “nois por nois”.  O grupo começou pós junho 2013 embalado pelos protestos no Complexo do Alemão e indignados com a forma que a grande mídia criminalizava os movimentos sociais, principalmente os de favela, associando manifestante com bandido  e manifestação na favela com quadrilha. Resolveram então fazer “NOIS POR NOIS”.

Outro integrante do coletivo,  Carlos Coutinho, fala que sua câmera fotográfica é sua arma. Eles fazem cobertura colaborativa, transmissão ao vivo,  produção de vídeos retratando a favela com o olhar de quem vive dentro e sabe suas alegrias, dores e conflitos.Todos os integrantes do coletivo possuem celular com android, a maioria tem máquina fotográfica profissional, tablet e conta no Facebook, Instagram e Twitter.  Eles estão narrando suas próprias histórias e do seu território, se denominam como ativistas, militantes, comunicadores populares e independentes e se sentem participando e atuando nos processos políticos da cidade. Todos são favelados, eles continuam pisando nas valas nas vielas da favela mas, na mesma hora, a indignação vai para o Facebook. Quando ficam horas na fila para serem atendidos na UPA a reclamação se transforma num twitter para o prefeito. O tapa na cara do policial agora tá gravado e postado no Youtube e Instagram. A rotina não mudou muito, mas o formato da luta sim e junto com ela uma gama de novas possibilidades de mudança. A classe C tá comprando Iphone (sim!) mas não deixou de reivindicar seus direitos. O megaphone na rua se transformou num dispositivo bem mais elaborado. As lutas continuam se dando nas vielas, mas é nas redes sociais que o jovem favelado as significa. É no teclado que ele fala o que sente e pensa, é produzindo um vídeo que ele encontra uma forma de denunciar a má conduta do policial. É justamente no fluxo das redes e nas ruas que a favela reinventa sua forma de participar e lutar nos muros da cidade.

Isolados ou cadastrados: os índios na era desenvolvimentista

“Dilma pensa que, para ficarmos bem, precisamos ter bens, chuveiro quente, casa de alvenaria. Nossa lógica e nosso modo de vida são outros: qualidade de vida para nós é liberdade, e liberdade é ter nossos territórios livres de ameaças e invasões para produzir sem destruir, como fazemos milenarmente.”

Sonia Bone Guajajara

Marinalva Manoel, índia kaiowa de 28 anos de idade, foi encontrada no dia 1 de novembro de 2014, morta a facadas na beira da BR 163, no município de Dourados, Mato Grosso do Sul. Ela acabava de voltar de uma viagem à Brasília, com outras lideranças guarani e kaiowá, para denunciar a situação dos índios e de suas terras naquele estado, e exigir a retomada, pelo (novo) governo, dos processos de reconhecimento e demarcação de Terras Indígenas no país. Como em outros casos de morte de lideranças indígenas, este assassinato não foi bem esclarecido. Divulgado somente nos sites de notícias dos aliados da luta indígena, logo caiu em esquecimento. A morte de Marinalva veio se somar às mortes indígenas que crescem a cada dia e que, no entanto, não parecem sensibilizar a opinião pública. O que se vê é uma crescente banalização dessa realidade, assim como acontece em relação as inúmeras mortes violentas que ocorrem nas periferias e comunidades pobres do país. 

Assiste-se impassivelmente a uma explosão de violência que atinge de forma cada vez mais direta e menos disfarçada os povos indígenas (é importante apontar que quilombolas, ribeirinhos e seringueiros, assim como pequenos agricultores que vivem nas fronteiras agrícolas do país tampouco são poupados), nos quatro cantos do país acumulam-se ataques como aqueles perpetrados contra a população Tenharim no Amazonas, quando os habitantes da cidade de Humaitá depredaram prédios públicos de serviços aos índios e ameaçaram invadir uma de suas aldeias; como os ataques e ameaças aos Tupinambá no sul da Bahia; como a desocupação pelas forças policiais do canteiro de Belo Monte no Pará ou da aldeia Maracanã no Rio de Janeiro e as desinstrusões truculentas operadas pela Polícia Federal e Força Nacional em terras retomadas por índios no Mato Grosso do Sul;  como as invasões de terras por garimpeiros e madeireiros nas terras Yanomami no Amazonas e Roraima, Munduruku no Pará e Kaapor no Maranhão; como a criminalização em série de lideranças indígenas (Tenharim, Tupinambá, e mais recentemente Suruí do Pará) etc. Sem falar das violações de direitos e ameaças das quais também são alvo os aliados dos índios, aqueles que lhes dão visibilidade (ONGs, jornalistas, pesquisadores, agentes da FUNAI e do MPF).

Apesar de sua gravidade, acontecimentos deste gênero não costumam ser divulgados pelos grandes veículos de comunicação, ficando restritos a especialistas, apoiadores e simpatizantes da luta indígena. O desinteresse manifesto da grande mídia, sobretudo das redes de televisão, pelas questões de terra e populações tradicionais remete a disputas econômicas. O índio que aparece, muito esporadicamente, é o índio “isolado” (aquele que recusa o contato com a sociedade nacional) ou de “recente contato”, que não tem chances de perturbar a ordem política e econômica do país e que atrai audiência pelo seu exotismo e pela imagem construída de espelho da nação, como se fossem os “verdadeiros” brasileiros, os únicos a quem se deve “preservar”.

O aumento da violência direta e indireta contra os índios vem sendo denunciada sistematicamente pelas lideranças indígenas e por seus aliados. Não há como deixar de notar que esta violência tem como causa e consequência a invisibilidade, o isolamento e o silenciamento histórico impostos às populações indígenas. Isso é diretamente apontado pela socióloga e militante aymara Silvia Rivera Cusicanqui “as formas mais brutais de racismo quase sempre são guardadas, há formas sutis que se podem detectar na linguagem, no gesto, nas coisas relacionadas com a invisibilidade”.

A ideia de invisibilidade não é nova, traduz a imposição colonial que, ainda hoje, os povos indígenas estão tentando romper. Não é preciso um grande esforço para perceber como ela é alimentada pela mídia e pelo próprio Estado.  Através da escola, dos manuais didáticos que expõem aos alunos uma imagem genérica de índio, enquanto suposto “componente” da democracia racial brasileira, a diversidade indígena é apagada, restando em seu lugar uma imagem pálida e própria ao desaparecimento. Além disso, é principalmente nos discursos e através das próprias políticas públicas que são desenhadas em função do mesmo formato genérico e uniformizador de alteridade que essa invisibilidade se acentua. A invisibilização da luta indígena e a violência consequente consolidam um desconhecimento que produz a indiferença generalizada em relação a essas questões. Isso tudo não é novidade, é apenas uma atualização do modo histórico de se tratar a diferença no Brasil.

Os povos indígenas enfrentam, hoje, duas guerras entrelaçadas: a que mata na floresta e a que se trava nos corredores do Planalto. A violência ligada aos conflitos de terra e ao preconceito contra os povos indígenas, cada vez mais descarada, caminha junto com os retrocessos legais promovidos no âmbito do legislativo e do judiciário, isso é atestado pela quantidade crescente de processos, tentativas de projetos de lei e de emendas à Constituição que visam subtrair direitos adquiridos. Esses retrocessos também são conduzidos pelo executivo interessado em viabilizar e agilizar os grandes empreendimentos desenvolvimentistas do PAC, apresentados invariavelmente como incontornáveis e prioritários (usinas hidrelétricas e estradas, exploração de petróleo e gás, mineração, construção de novas usinas nucleares etc). A questão é: por que impactar a todo custo as terras indígenas para viabilizar um projeto nacional quando seria possível evitá-lo ? Essa pergunta vem sendo colocada pelos índios e por pesquisadores de várias áreas desde o caso mais gritante de Belo Monte e voltou a ser posta recentemente pela ex-presidente da FUNAI em relação à hidrelétrica de São Luiz do Tapajós (que vai alagar a terra indígena Munduruku, PA) ao explicar os motivos que a fizeram pedir exoneração do cargo.

A única resposta possível é a de que, do ponto de vista do Estado-Nação, isso sequer parece ser uma questão, é como se os índios não fossem pessoas, povos, sujeitos com direitos e fundamentalmente com direito à diferença. Silenciados e invisibilizados são dessubjetivados e, assim, acabam sendo objetificados, i.e. passam a ser percebidos como “coisas”, meros “obstáculos” para o desenvolvimento. Com isso, lhes é vedado ocupar a posição de sujeitos e abre-se assim a possibilidade desenfreada das violações, desrespeitos e preconceitos de que são alvo. Há aqui uma afinidade com o movimento produzido na mídia,  um processo duplo, de dessubjetivização das minorias, por um lado, e de apagamento de suas diferenças e particularidades, por outro.

Isso não se dá por acaso, uma vez que a opção política dos últimos governos é a de transformar a questão da diferença e do direito à terra e à autodeterminação em um problema de desigualdade social. Neste âmbito, o problema se resolveria com políticas públicas de assistencialismo e combate à pobreza através da inclusão dos índios em programas sociais (Programa Bolsa Família, Auxílio Maternidade, Programa Luz para Todos, Programa Nacional de Habitação Rural) e sua consequente transformação em potenciais consumidores.

Na medida em que a política de demarcação de terras vai sendo abandonada, sobretudo a partir da segunda gestão do governo Lula, sobram aos índios estes programas assistencialistas, com visada universalista, que drenam sua população para as cidades e para a economia de mercado. O resultado disso é um crescimento da dependência socioeconômica dos povos indígenas em relação ao Estado e ao capital e, consequentemente, uma crescente intervenção dos governos nas dinâmicas sociais internas das aldeia. É o caso, por exemplo, das inúmeras questões relativas à infância guarani e kaiowá no Mato Grosso Sul, que hoje acabam sendo tratadas pelos assistentes sociais do governo cujo preparo é nulo para lidar com questões interculturais.

A criminalização de lideranças indígenas que mencionamos acima participa do mesmo processo de neutralização da diferença. Criminalizando a luta dos índios e a ação de suas lideranças, o Estado e a grande mídia anulam sua especificidade e seu teor político. Assim, capturada pela lógica do Estado, a luta indígena é transformada em um movimento “criminoso” qualquer, banalizada, silenciada, dessubjetivizada, podendo ser mais facilmente retirada do cenário para abrir espaço ao desenvolvimentismo. 

Nessa longa história de violências, os anos 80 significaram uma vitória sem precedentes para a luta indígena, que se deu principalmente em prol do reconhecimento e da garantia de sua diferença, materializando-se com a inclusão de um capítulo na Constituição Federal que lhes garante direitos fundamentais. A partir desse momento, o Executivo passou a demarcar as terras indígenas, assegurando aos índios uma melhoria na sua qualidade de vida e relativa segurança enquanto povos autodeterminados.

Um dos efeitos da segurança alcançada pela posse da Terra Indígena foi o crescimento da população indígena, fato que, por sua vez, pressionou diretamente interesses econômicos locais ligados à terra e à produção agropecuária, provocando nestes setores uma reação desmedida, que passou a se valer da desigualdade de forças para garantir seus privilégios. São esses interesses contrariados que, a partir dos anos 2000, vão mobilizar sistematicamente a mídia e os poderes do país contra os índios. Um exemplo cabal desse tipo de violência é o leilão, destinado a comprar armamento e contratar seguranças privados, realizado por fazendeiros em Campo Grande (MS), em 2013, contando com o apoio de dezenas de deputados estaduais e federais, do senador Ronaldo Caiado (DEM-GO) e da senadora Kátia Abreu (PMDB-TO), atualmente ministra da agricultura do governo Dilma Rousseff.

Para garantir sua sobrevivência enquanto povos, os índios enfrentam hoje uma luta em duas frentes: por um lado, continuam fazendo face ao processo de invisibilização e de silenciamento para poder se afirmar como povos detentores de direitos diferenciados; por outro lado, lutam contra o projeto do Estado que visa transformar a diferença em desigualdade. 

Há uma percepção generalizada de que o Brasil está revivendo uma onda bandeirante. Mas, hoje, o bandeirismo tem uma cara nova, continua considerando os índios como um empecilho ao desenvolvimento, mas o lugar que lhes concede dentro dessa ordem social é o de pobres comuns, jamais o de povos singulares e autodeterminados. Até aqui, estamos na mesma lógica que atravessou séculos, aquela que ao empobrecer e espoliar os índios de suas terras destinou-lhes apenas o estatuto de miseráveis. O Estado de hoje apresenta uma nova polarização às já bem conhecidas “cristão vs. pagão” e “civilizado vs. primitivo”, mais “sutil” que as políticas do passado, para ele parece haver duas únicas posições possíveis: o “índio isolado” e o índio do “Cadastro Único” (cadastro do Ministério do Desenvolvimento Social que “identifica e caracteriza as famílias de baixa renda”) . O destino desta posição é o da “inclusão social” cujo efeito inexorável é o do apagamento de suas diferenças e singularidades em benefício de uma nacionalidade-cidadania atrelada a uma condição social pré-definida.  

Colocando-se de forma assertiva como sujeitos e posicionando-se frente à indiferença paternalista dos governos e dos brancos, os índios rompem a invisibilidade e o silêncio aos quais estão confinados e exigem que sua posição de sujeito seja claramente enunciada. As retomadas de terras, as ocupações de oficinas em Brasília, de estradas, de canteiros de obras, do próprio Congresso Nacional, são meios para romper essa invisibilidade. Em setembro de 2013, os Guarani-Mbyá de São Paulo bloquearam a Rodovia dos Bandeirantes que atravessa suas terras, para exigir o reconhecimento legal destas e a suspensão de um projeto de revisão de seus limites. Simultaneamente, divulgaram um vídeo-manifesto no Youtube, realizado por jovens da aldeia onde  explicam: “Fizemos isso, para vocês brancos, saberem que nós existimos!”. Em novembro de 2014, os Munduruku, ameaçados pelos projetos hidrelétricos do governo no rio Tapajós (e sistematicamente ignorados ao longo do processo), iniciaram a auto-demarcação de uma de suas terras que aguarda regularização há mais de 13 anos. 

Retomando e ocupando espaços, se apropriando de novas tecnologias e recursos midiáticos, adotam uma estratégia de des-invisibilização.  A luta é por ter sua dignidade reconhecida, para que se possa enfrentar o inimigo, i.e., todo aquele que propõe e age ativamente para a eliminação dos modos de existência que não se enquadrem na ordem econômica, social, política e ambiental da chamada sociedade ocidental. A luta dos povos indígenas (assim como a das comunidades ditas tradicionais – quilombolas, seringueiros, ribeirinhos etc) é por garantir um espaço aberto à existência de modos diversos de ser e de estar no mundo.

As demandas da luta indígena devem ser ouvidas não somente porque a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) preconiza em seu preâmbulo que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”, mas principalmente porque as populações indígenas estão sendo/ou serão afetadas por um modelo de desenvolvimento com o qual não estão de acordo, um modelo que impõe a predação do meio ambiental e que, com a lógica do consumo econômico nele embutido,  leva à degradação do meio social.

Viver, existir, para as populações indígenas é não separar cabalmente a natureza da cultura, é por isso que a terra é um valor tão importante. Essa noção surge nas várias versões daquilo que se chama de “bem viver” ou “viver bem”, um conceito que se apresenta de modo forte entre os povos dos Andes (cujo termo vem do aymara, sumak quamaña, e do quechua, sumak kawsay), mas que é comum a diferentes saberes e tradições indígenas e que, no entanto, carrega uma multiplicidade de sentidos. Se não se pode separar a natureza da cultura, o humano tampouco pode reinar absoluto sobre a natureza. 

O “bem viver” é um ataque direto ao antropocentrismo da ontologia ocidental e ele não pode existir sem garantia da terra. A deslegitimização da luta indígena por meio da invisibilização e da criminalização de suas forças políticas não é novidade nem surpresa para ninguém, o que é novo aqui é a ação do Estado que, preocupado em tratar a pobreza como um problema e um conceito universal, termina por neutralizar a diferença e a diversidade, transformando-as em mera desigualdade social. A invisibilização somada à neutralização da diversidade favorece os esforços daqueles setores econômicos para quem a terra é, como diz Davi Kopenawa, “apenas um lugar do qual se arranca riqueza”.