“Isso parte meu coração”

21 de outubro de 2018. Performance Space New York

Marília Librandi:

Ontem, tive a chance de pedir a Donna Haraway (em entrevista via skype) algumas palavras sobre o Brasil. Reproduzo abaixo questão e resposta: Sou uma professora universitária brasileira, e estamos encarando agora um momento muito difícil, com as eleições presidenciais na próxima semana. Infelizmente,o candidato que lidera as pesquisas é contra os indígenas, os negros, as mulheres, as pessoas trans, gays e etc. É um momento horrível que estamos vivendo. Como professores morando aqui nos EUA, trabalhamos com esses temas, e estamos tentando reunir pessoas para ajudar de fora. Minha questão é: como se revoltar e sobreviver em tempos em que tudo fica verdadeiramente ruim… se você puder dizer algumas palavras para nos ajudar a pensar sobre isso….

Donna Haraway:

Esta é uma questão para todos nós. Porque se olharmos ao redor do mundo agora, a chegada ao poder e a consolidação no poder de franco-fascistas e assassinos autoritários: Duterte, nas Filipinas, Bolsonaro,no Brasil, Trump, nos EUA, e a lista continua, quase todos eles também são eugenistas, misóginos, racistas, anti-trans, anti-queer, adotando políticas anti-imigração, adotando políticas anti-aborto…  

O Brasil é, em alguns aspectos, um caso especial por causa da longa história de genocídio dos povos amazônicos e da contínua desapropriação por monocultura de vários tipos, as terríveis crises das cidades brasileiras,das terras do Brasil, águas, povos e corpos… Isso parte meu coração.

Eu acho que nós sobreviveremos nesses tempos por meio de um modo feroz de contar histórias, por meio de uma resistência feroz, da política, de um tipo de recusa a ir embora, do reconhecimento de que isso aconteceu antes,muitas vezes, e está acontecendo de novo, e de que nós simplesmente nos recusamos a ir embora. Que nós somos uns (com) os outros, que realmente podemos, e devemos apelar uns aos outros para termos força, o que inclui força e luto, cuidando das feridas de cada um. Eu, de certo modo, fui extraordinariamente ingênua, eu realmente não acreditava que fosse possível que as coisas desmoronassem de modo tão rápido, tão amplamente e de um jeito tão difícil, mas é a ingenuidade dos privilegiados, e eu acho que muitas pessoas neste planeta sabem de fato muito bem que manter a vitalidade uns com os outros está se tornando incrivelmente difícil, e de que se não continuarmos a cultivar a capacidade de rir e brincar uns com os outros, aí sim nós perderemos realmente. Insistir na criação de vitalidades, apesar dos novos tipos de opressão. Que não fomos derrotados, que não iremos embora. E contar histórias é uma das nossas capacidades mais preciosas.

ORIGINAL: Em conversa com Marilia Librandi

“It breaks my heart”

ML: I’m a scholar from Brazil, and we are facing now a very difficult moment, with the Presidential elections next week. Unfortunately, the candidate leading is anti-Indigenous, anti-Black,anti-women, anti-trans, gays, etc… It is a very horrible moment that we are living there. As scholars living here, we work with these topics, and we are trying to gather people and to help from outside. My question is: How to revolt and to survive in times when everything gets really bad,…. if you can say some words to help us think about that….  

Donna Haraway:

“This is a question for all of us.Because If we look around the world right now, the coming to power and consolidation of power by frank fascists and authoritarian murderers: Duterte,in Philipines, Bolsonaro, in Brazil, Trump, in the US, and it goes on, almost all of whom also are eugenists, misogynists, racists, anti-trans, anti-queer,adopting anti-immigrant politics, adopting anti-abortion politics… Brazil is,in some ways, a special case because of the long history of the genocide ofAmazonian peoples, and the ongoing dispossession through mono cropping of various kinds, the extraordinary crises of Brazilian cities, Brazilian lands,waters, peoples and bodies…. It breaks my heart. I think we survive in these times by a kind of ferocious storytelling, a kind of ferocious resistance,politics, a kind of refusal to go away, a kind of recognition that this has happened before, many times, and it is happening again, and that we simply refuse to go away. That we are each other, that we really can, and do call on each other for strength, including strength and mourning, looking each other wounds. I, anyway, was extraordinarily naïve, I really didn’t believe it was possible for things to fall so fast, so far, so hard, but it was the naivité of the privileged, and I think many people in this planet know very well indeed that somehow making a vitality with each other is ongoing stunningly difficult,and that, unless we continue to foster the capacity to laugh and play with each other, we truly will lose. Insisting on the making of vitalities in spite of new kinds of oppression. That we are not thrown, we are not going away. And storytelling is one of our most precious capacities. “

October 21, 2018. Performance Space New York

À beira do abismo, os escombros

A poeta disse que vivemos “à beira de”. Um abismo. Penso sobre a excitação e a liberdade de viver na beirada. Poder olhar por cima da fronteira. Decidir se lá ou cá. Assim, a qualquer hora. Porque o precipício não precisa ser fim. Pode ser re-dimens(id)ão do mundo. Vertigem. de Desconforto. Deslocamento. O fascismo que bate à porta é precipício. Abismo. Notícia boa: A ele, nós sobrevivemos sempre. Diante do fim do mundo que espreita na esquina, nós. E nós sempre sobrevivemos. É do fim de muitos mundos que esse mundo nasce. Epistemicídio. Evocar o fim do mundo, rememorar a vida. Sobrevivendo. Em meio ao caos, lembrar de não ceder à pulsão de morte que fala a língua do denuncismo, da vitimização, da dor e do sofrimento. O luto é livre. O risco é de morte. Temos direito a ele. Mas se tudo o que conseguimos balbuciar é o vocabulário da denúncia, se tudo o que conseguimos fazer é portar-nos como vítimas, recuar, portanto, criando uma zona confortável de dor e sofrimento a qual habitar, em negação, aí sim morremos. Abandonamos a vida, deixamos de ser capazes de imaginar e produzir saídas. Gambiarra é a nossa fuga armada. É assim que nós, com o nosso jeitinho, cotidianamente, solucionamos a crise deles. E sobrevivemos. Sobrevivemos sempre. É o chá, a compressa ou o unguento que produz cura, sabedoria ancestral; é o quintal que provê o alimento que o dinheiro não alcança; é a panela que dá de comer a quantos forem os que tiverem fome; é o encontro que salva da loucura. Então, vamos habitar com inteligência e sensibilidade esse buraco em que nos enfiamos. Sem lamentações ou nostalgia. Investir numa pragmática especulativa para sair desse lugar. Movimento. Dançando nossa revolução, vamos ultrapassar, mais uma vez, o fim do mundo. O que podemos fazer hoje para sobreviver por mais um dia? Que estratégias adotar para proteger quem é alvo do ódio? Quais alianças? Que coalizões? Como a gente vai se cuidar? Qualquer coisa diferente disso é irresponsabilidade. Fugir do Brasil? Se exilar? Branquitude covarde e insolidária! Parem de dizer isso. Tenham vergonha. Ao lado do abismo, os escombros. E sobre eles, nós, invisíveis, sobrevivendo, fazendo comunidade.

Tatiana Oliveira

Foto: Bruna Piazzi (2018).

As pautas e os ecos de Junho de 2013

É comum ouvirmos que os manifestantes de Junho de 2013 não tinham pautas. Teria sido uma recusa em bloco ao sistema político, abrindo caminho para a crise de representação que estamos vivendo. Claro que Junho foi muita coisa, e as análises ainda dependem da geografia dos protestos. O Rio de Janeiro, talvez pela presença importante das obras da Copa e dos Jogos Olímpicos, é paradigmático de temas-chave abordados nas ruas. Em primeiro lugar, as grandes passeatas de Junho apontavam de modo unânime Sérgio Cabral como símbolo da insatisfação. Nenhum outro grito contra políticos era capaz de unir os manifestantes a não ser aqueles que se insurgiam contra Cabral. O governo federal era lembrado de modo vago e esparso, apenas na medida em que era aliado do PMDB no Estado do Rio de Janeiro. O slogan “Não vai ter Copa” precisa ser entendido nesse contexto.

Muita gente se sentia excluída do projeto hegemônico naquele momento, um projeto de crescimento sem povo, reforçado por conluios oligárquicos que atropelavam, literalmente, as casas das pessoas (como na Vila Autódromo). A insatisfação, contudo, não significava uma rejeição em bloco do que tinham sido as políticas dos governos petistas até ali. Bem pelo contrário, é possível dizer que Junho de 2013 foi um movimento por “mais”: mais serviços públicos de qualidade, mais mobilidade, mais direitos, mais participação, mais ações contra nossas desigualdades históricas.

Era essa a reivindicação implícita nos gritos por “saúde e educação padrão FIFA”. O movimento de jovens que se organizou por uma CPI dos transportes, chegando a ocupar a Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, identificava precisamente o problema da caixa preta dos ônibus, em grande parte controlados pela máfia de Jacob Barata em conluio com diferentes governantes fluminenses. A vontade de exercer o protagonismo na pesquisa dos dados dos transportes públicos e a identificação da concentração de poder em torno desse nome deram origem ao Casamento da Dona Baratinha, protesto performático em frente ao Copacabana Palace, onde a filha de Barata se casou.

As políticas dos primeiros governos Lula – em escala macro, mas também micro – tiveram efeito expressivo na produção de novos atores sociais e políticos. São exemplos: organizações autônomas da juventude, grupos culturais, coletivos de mídia e movimentos negros e de mulheres. Universidades mais democráticas exerceram um papel importante na politização dos jovens, pois fizeram emergir forças intelectuais constituintes de uma nova geração política. Ao inserir grande parcela da população nas relações produtivas que integram a sociedade do conhecimento, a democratização da universidade teve efeitos positivos além dos esperados. Outras medidas específicas, como os pontos de cultura, também agiram nesse processo. A participação na produção de cultura e o ingresso no ensino superior, somadas às transferências de renda, abriam a possibilidade para novas posições subjetivas. Isso tudo tornava as pessoas capazes de pedir mais e trazia à cena novas possibilidades de contestação.

Diante disso, é bastante surpreendente que quadros do próprio PT associem Junho de 2013 a um movimento de direita, dado que foi um produto positivo das políticas petistas. Fernando Haddad, por exemplo, em texto recente na revista Piauí, pergunta: “como explicar a explosão de descontentamento ocorrida em Junho daquele ano (…) O desemprego estava num patamar ainda baixo; a inflação, embora pressionada, encontrava-se em nível suportável e corria abaixo dos reajustes salariais; os serviços públicos continuavam em expansão, e os direitos previstos na Constituição seguiam se ampliando”.

Parte-se da premissa de que as pessoas só vão às ruas quando estão em má situação econômica. Pensamos o contrário. A estabilidade econômica, somada à inclusão de jovens urbanos em esferas antes restritas à elite e ao acesso a bens culturais, tornava as pessoas mais potentes, “empoderadas”, logo, em medida de pedir mais. Por outro lado, os protestos marcavam o esgotamento de um tipo de adesão ao projeto de desenvolvimento em curso. Parte do aparelho petista, em sua deriva burocrática, perdeu a dimensão de que politização tem a ver com aumentar a capacidade e a autonomia das pessoas comuns.

No livro Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-80, Eder Sader descreve os novos personagens que entraram em cena. Na época, eles acabaram se organizando no partido-movimento que foi o Partido dos Trabalhadores. Em 2013, esse partido não conseguiu entender quem eram aquelas novas personagens.

Não teria sido difícil, em diferentes esferas de governo, convocar os sujeitos sociais e políticos emergentes para formular políticas voltadas para setores determinados. Só para dar alguns exemplos: alternativas de comunicação capazes de compreender as dinâmicas das redes sociais e produzir maior participação; políticas públicas em diferentes áreas discutidas em fóruns nacionais já existentes; expansão da experiência dos pontos de cultura para outras áreas como processo formativo da juventude periférica; políticas para a educação básica, formação de professores ou produção de material didático, em articulação orgânica com as universidades e os institutos federais; mudança de nossa matriz energética. Em 2014, começa a haver um descompasso entre as novas personagens que surgiram das políticas petistas e o paradigma produtivo então em vigor.

Exemplo emblemático dessa nova dinâmica, em torno de outros personagens que emprestavam pela primeira vez seus corpos à ação política, se passou em uma noite fria de julho de 2013, no bairro do Leblon, um dos mais chiques e elitizados da cidade. Jovens militantes de Junho, oriundos de vários outros bairros, ocuparam a rua do prédio em que morava Sérgio Cabral. Foi dali que vimos chegar uma passeata de moradores das favelas do Vidigal e da Rocinha, vindo se juntar ao Ocupa Cabral, denunciando o desaparecimento de Amarildo, morador da Rocinha, que acabava de ser assassinado pela polícia. Começava a ressoar, em diversos cantos da cidade, a pergunta que não podia mais calar: Onde está o Amarildo? Todo mundo sabia que Amarildo estava morto, assassinado pela mesma polícia que batia nos manifestantes.

Mas não era uma pergunta retórica. Era uma mudança na relação entre visibilidade e invisibilidade que determina a fronteira entre asfalto e favela no Rio de Janeiro. Tudo o que se passa no Leblon vira notícia (ou novela). As vidas arrancadas nas favelas ganham linhas frias no jornal, em geral culpabilizando as vítimas ou mencionando o caos no trânsito. Naquela noite, porém, os moradores da favela chegavam com sua insistência, recebidos pela brecha que o Ocupa Cabral abria pela ação dos jovens que, um mês antes, tinham ajudado a fazer as ruas de Junho. Naquela mesma noite, parte dos manifestantes decidiu protestar em frente à casa do Secretário de Segurança do Estado, José Mariano Beltrame.

Perguntar incessantemente por Amarildo é resistir ao silenciamento das subjetividades políticas que a necropolítica brasileira não cessa de produzir, como modo de inviabilizar o processo democrático em curso nos últimos anos. Na contramão desse projeto de extermínio, essas novas personagens demandam cada vez mais participação política, intervindo inclusive na esfera da representação. Se a onda conservadora se fez presente em 2015, outras vozes com timbres bem diversos também se fizeram ouvir com força.

Em novembro desse mesmo ano, milhares de mulheres ocuparam as ruas do país para impedir que o PL 5069/2013, de autoria do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, fosse aprovado. O projeto de lei visava dificultar o atendimento de mulheres em caso de estupro, além de criminalizar profissionais de saúde que prestassem auxílio às mulheres no SUS. Para além da histórica luta feminista de respeito ao corpo das mulheres, insurgir-se contra Eduardo Cunha representava muita coisa.

Em síntese, pode-se dizer que o que estava em jogo era a afirmação da nossa existência plena, não abrindo mão do direito de participar das decisões que teriam impacto sobre as nossas vidas – sejam essas decisões de ordem subjetiva, econômica ou política. Lembrando que as manifestações de rua surgem no mesmo período em que invadem as redes sociais as campanhas virtuais de denúncias de assédio e de machismo cotidiano que muitas de nós sofremos ao longo da vida. Apontar Eduardo Cunha como inimigo das mulheres era também questionar o modo chantagista como o presidente da Câmara negociava as votações dos projetos de lei no plenário, e a lógica intrínseca que permite esse tipo de governabilidade, representando os interesses apenas de uma pequena parcela da população, depondo inclusive a presidente eleita.

Outros modos de governar, mais democráticos, se fazem urgentes. Foi com essa premissa que as mulheres cariocas elegeram Marielle Franco com mais de 46 mil votos nas eleições de 2016. A eleição de Marielle foi – e ainda é – a afirmação do desejo de encontrar outros modos de fazer política. Seu assassinato mostra, contudo, o quanto ainda é difícil atravessar as barreiras do poder, da polícia e da milícia que caracterizam o cenário do Rio de Janeiro.

Nos cinco anos que separam os assassinatos de Amarildo e de Marielle, algumas coisas mudaram, outras não. Marielle era vereadora, com enorme votação, e porta-voz de uma geração das novas personagens que chegaram à universidade e ao poder político. Simbolizava a renovação da política tão desejada pelas ruas de Junho de 2013. Cinco anos depois do grito “Onde está o Amarildo?”, ainda queremos saber: “Quem mandou matar Marielle?”. A batalha não terminou e continua tendo que se dar em duas frentes: resistência e representação. Para que a potência das ruas possa ocupar a política, é preciso insistir nas perguntas que apontem para o aprofundamento de nossa frágil democracia, fazê-las ecoar, produzindo novos destinos.

Texto originalmente publicado na Revista Cult (junho/2018): https://goo.gl/XkdeXk

Foto: Mídia Ninja.

Marielle Franco: nosso fuzil é a palavra

Na noite em que a Mari partiu, choveu.

Não tinha chuva anunciada na meteorologia da cidade, mas choveu. Não o suficiente para ocupar os jornais do dia seguinte com histórias de casas que caíram e famílias que ficaram sem nada. Mas choveu o suficiente para gente se perguntar por que aquela água estava ali.

A chuva veio acompanhada de um vento tão forte que balançou as árvores, bateu nas janelas aqui de casa e entrou no quarto fazendo um zunido grande. Era um vento tão imponente que parecia reivindicar seu lugar. Parecia irado. Depois senti que o vento tocava a gente com paz, quase como se falasse que tudo seria resolvido. Nessa noite, eu e ele dormimos de mãos dadas na cama, embalados pelo barulho do vento. De manhã vi uma borboleta laranjada com marrom na porta: percebi que era sagrado.

Não precisava ser amiga da Mari para chorar sua partida. Todo mundo que sonhava por um mundo melhor sentiu bem fundo no peito sua esperança ir embora quando o jornal anunciava que de alguma forma eles tinham vencido. Ela era a mulher que acolhia a dor das mães que perderam seus filhos, a pessoa que lutava junto com elas. Aquela para quem você podia ligar a qualquer horário, que estaria ali para te ajudar.

Foi assim que nós, pretas e pretos, acordamos de banzo. Corpo doído, cabeça zonza, resfriado, febre, choro, dor, raiva, ódio, coração pequeninho. Como aquela sensação de nostalgia que os nossos ancestrais sentiram por estar ausentes de seu país de origem. Uma tristeza profunda.

Além de saudade da nossa irmã, era a revolta por saber que somos os corpos matáveis, que não têm importância na sociedade, os corpos que enterram outros corpos, que não têm nem o direito de ter o caixão aberto. Doeu e dói uma dor, que de tão seca, quase não tem lágrimas. Uma dor que já viu tantos irem embora, que desaprendeu a chorar e só sabe gritar. Porque a morte matada é sempre a mais doída, rasga o coração e tem quase sempre o mesmo endereço.

Marielle Franco não era apenas socióloga, ativista de direitos humanos, quinta vereadora mais votada no Rio e relatora da Comissão que acompanhava a Intervenção Militar no Rio de Janeiro. Ela era a Mari, mulher negra, favelada, filha da Marinete e Chiquinho, mãe da Luyara, companheira da Mônica, a mulher do sorriso mais lindo e forte que vi.

Ela era filha de Oyá, a senhora dos ventos, dos tufões, das nuvens, tempestades, das águas agitadas pelo vento. A morte e seus mistérios não assustam Oyá. Mãe dos eguns, Oyá gueré a unló, só mesmo você, Iansã, mãe do entardecer. Era tão ela erguer a saia, pisar no fogo e nos convidar a guerrear. Marielle ainda nos convida a guerrear e, depois que o luto passar, nós estaremos lá de punhos erguidos.

O luto. Não dá para esperar que transformemos a dor em luta a cada instante. Às vezes, é preciso o tempo: de chorar, do silêncio, da acolhida. Será que podemos darrepouso aos nossos em paz sem ouvir calúnias em cada esquina? Será que podemos cuidar dos nossos sem transformarem o luto em carnaval?

Porque quando um preto não está mais entre nós é preciso provar que ele era bom, que era gente como toda a gente. É preciso lutar para que sua partida não vire uma simples bandeira. Não precisamos de mais líderes negros mortos. A história já nos deu isso.

Deixa as nossas mortes serem sagradas, deixa se sentir no corpo.

Deixem os nossos vivos para que possamos recontar a história.

Ontem quando subíamos o morro, com o corpo moído e abatido encontramos outro irmão no caminho. Ele nos olhou e disse que tinha ficado em casa chorando, não teve forças de ir para as ruas. A gente se olhou e se abraçou por alguns minutos e percebi que só em outro corpo preto eu sentiria consolo e paz. A memória dela precisava ser honrada e seria por quem proclama Ubuntu. “Eu sou porque nós somos”.

A mari, a nossa Mari se foi tão cedo. Foram três tiros na cabeça e um no pescoço. Três tiros no seu Ori. Eu me pergunto por que a cabeça? Queriam silenciar sua voz. E a voz dos seus ancestrais. A voz do povo negro, a voz das mulheres, a voz dos pobres. Eles só não sabiam que para nós a morte não é um fim em si mesmo. Ela vive em nossos corpos. E nós continuamos armados com a palavra.

Marielle, presente!

Valeu negona!

Texto publicado originalmente em 17/3/2018, na Revista Calle 2:  https://calle2.com/marielle-franco-nosso-fuzil-e-a-palavra/

Foto: reprodução Instagram.

Se existe floresta em pé, é porque nós ainda existimos

Nós, Povos indígenas, somos os guardiões dos bosques, das águas, dos mares, dos rios e do ar. Se existe floresta em pé hoje é porque nós ainda existimos. Estamos sendo brutalmente atacados pelas forças e ganância do agronegócio e do modelo de desenvolvimento econômico que foi inventado aqui no Reino Unido. Vocês precisam entender que se não há florestas não há economia que resista.

À violência que tentou nos extinguir, pelo crime de genocídio, nós resistimos. À violência que tentou destruir nossa cultura, nossa forma de viver, nosso sentido de existência, nós enfrentamos o etnocídio. 

Desviamos das balas dos pistoleiros, e mantemos a nossa cultura com a força dos espíritos. Mas querem destruir a vida toda que nos cerca, a vida com a qual convivemos e nos permite viver: o crime de ecocídio deve ser previsto em lei, e seus autores devem ser punidos.

E tudo isso tem a ver com a sua forma de consumo.

A carne que você come na sua casa vem dos conflitos e assassinatos contra nosso povo;

A ração do seu cachorro vem da soja produzida com agrotóxico nos Territórios indígenas;

O delicioso chocolate tem sabor de sangue porque custa vidas nos confrontos nas fazendas de cacau.

Não falamos mais só da violência contra humanos, o genocídio e o etnocídio. Mas também da violência contra a vida de outras espécies que fazem possível a nossa vida existir, a violência contra os ambientes que impedem a vida de quem convive com esse ambiente. 

A destruição do Rio Doce não foi um acidente. Foi um crime, e não foi o único: o crime de ecocídio, o crime de matar toda a vida e a possibilidade da vida. 

A Terra Indígena Pankararu e Entre Serras, esta do Povo Pankararu, em Pernambuco, está em grave conflito com pessoas que indevidamente ocupam esse Território em descumprimento à decisão judicial, o que tem colocado em risco a vida dos indígenas. 

Neste fim de semana, um jovem e uma criança Pataxó na Bahia foram mortos e um foi baleado em conflito pela disputa de Terra.

A Terra Indígena Jaraguá do povo Guarani teve sua demarcação anulada pelo presidente Temer. A atual destruição do planeta nos remete à brutal destruição da humanidade que chocou o mundo depois da Segunda Guerra Mundial. Para combater tudo isso é preciso que a Comunidade Europeia e as instâncias internacionais:

1 – Reconheçam e adotem os Direitos da Mãe Terra, considerando os Direitos originários dos povos indígenas. Não é possível existir florestas se não tiver Demarcação Já!!

2 – Embargos econômicos às empresas que produzem produtos que acabam com o meio ambiente e com as nossas vidas;

3 – Reconhecimento do crime de ecocídio. Aquele que desmatar, poluir rios, lagos, mares e oceanos, construir hidrelétricas sem consentimento e vendidas como energia limpa, e práticas de incêndios florestais, deve ser punido por crimes contra a humanidade.

Sônia Guajajara – APIB

Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)

Declaração da Aliança dos Guardiões da Floresta

Aurora e o muro

Um país andino, subúrbio de capital, manhã de julho. Faz frio. A humidade é cortante. A ideia é subir um morro, até um muro. Imenso. Que divide e rasga a paisagem, atravessando vidas, montanhas, separando ricos e pobres. Não conheço o lugar. Curiosidade antropológica, sempre no limite da indiscrição, curiosidade pelo muro, pela gente, pela vida que agita o lugar. Que o lugar apaga.

O muro. Sem sombra.

Subida. Dizem que nessa época o céu é sempre cinza. Difícil enxergar vida onde céu e terra se confundem. Uma cor só, bege, cinzenta, infinita, parda, uníssona. Um morro alto. Os cerros. O deserto. Casinhas que se amontoam, algumas coloridas. Nem todas, mas a maioria. Azul, verde, amarelo, branco, vermelho. Nenhuma cor dissolve o mar de lama cinza que cobre tudo, inexoravelmente. Nem as roupas no varal, nem a chuva que nunca chega, nem as cisternas de plástico azul plantadas cá e lá. 

O cachorro magro. A lama.

A morte. Como será a vida aqui? Sem água. Sem luz. Sem árvore. Sem pássaro. Apenas um único tom de cinza cobrindo tudo. O ar, a terra, o céu, os cachorros, o esgoto, as valas, o lixo, o cemitério. 

A porta do cemitério é verde. 

Señor de los Milagros. Talvez a morte é que seja colorida aqui. 

Crianças correm ao pé do muro. Na quadra cinza, jogam bola. O frio penetra, implacável, nos meus ossos. Nenhum sol desponta, nada. Só os gritos das crianças. As risadas. Do outro lado do muro outras crianças talvez estejam jogando outro futebol, num clube, no condomínio, entre outros muros, a salvo. Talvez elas riam também. Talvez. Mas não importa, porque o muro se ergue e corta. Frio, cinza, com as garras de arame para fora, vigiando do alto as crianças daqui, a bola furada, as risadas, o futebol, o céu. O cachorro. A ferida. 

Houve um tempo em que se derrubavam os muros. Agora só nos resta o estancamento abrupto dos fluxos e das conexões. 

Estancar relações. O corte. A surdez. A separação. O silêncio. A indiferença. 

Os muros. 

Aurora, 90 anos. Surge no caminho, subindo. Passo a passo. Uma alma ao pé do muro. Carrega uma sacola colorida: “eu junto garrafas”, ela diz. “Todo dia subo e desço, e junto garrafas. Esse é meu trabalho. Não trabalho do outro lado, moro aqui embaixo”. O muro. 

“Que muro? ela pergunta. “Não vejo nenhum muro”, clama alto, virando as costas para ele. 

A cegueira momentânea de Aurora. 

“Esse muro ali? É dos gringos, não é nosso”. Ela ri. “É que eles têm medo”. O riso explosivo contagia. 

O riso de Aurora. Colorido.

A resiliência. E o humor. 

O muro. 

Cicatriz trinchando a alma e o território. Cicatriz de guerras perdidas, faz tempo.

O riso de Aurora, para sobreviver. A resistência. E o movimento (sempre o movimento) que permite sonhar, de pé, e de costas para um mundo mutilado. Para os muros dos outros. Dos que levantam muros. 

Lidar com aqueles que erguem os muros de cada dia. Na política, na vida, nas relações, no nosso dia a dia surdo e tagarela. 

Lidar com o medo visceral que assola os que levantam os muros, escondidos nos condomínios particulares de seus desafetos. Protegidos. Pelas guaritas. Pelas cercas. Pelo encastelamento das fragilidades. Cultivando a indiferença, silenciando. De preferência, abruptamente. Num corte que desarma toda a potência afetiva alheia. 

Assim nascem os muros. 

Erguem-se muros pra não “sustentar” relações. Nenhuma delas. 

Aviso: “Este muro foi construído para a segurança dos condôminos

Está claro. Cultiva-se a indiferença como qualidade, o desapego como virtude, a segurança como horizonte. O desprendimento. Sempre mais confortável que a coragem do vínculo. Do acolhimento e da escuta. Da palavra.

Dona Aurora se despede: “agora vou visitar mis amiguitas, nos vemos no ano que vem, ou outro dia, quem sabe?”. Gargalha e segue. No caminho. 

A lama cinza que escorre. Ladeira abaixo. O medo. A muralha. 

Desabamentos. 

O riso das Auroras. Trombetas que fazem ruir muralhas. Luz.

Jericó

Constantinopla

Sete vezes

Derrubar os muros erguidos sobre os escombros da (in)diferença. Demolir. 

Invadir. 

Escapar, pular os muros (exercite-se sempre), dinamitar o silenciamento. 

Executar os que erguem os muros. Executar o medo. 

Num paredão, de preferência. 

  Desenho de Oiara Bonilla “Aurora va de visita”, Pamplona Alta (2017)

Minha cantiga

Chico foi por muito tempo a imagem do homem que entende as mulheres. O que salva. De tão escancarado nessa música nova, o mito derrete. Deixamos o lenço caído e quem sabe, um dia, aparece o homem por quem sempre estivemos esperando. Finalmente aquele que fica cada vez mais feliz mesmo com “nossas manhas”. Que vai fazer a cama, botar pra dormir. Largar mulher e filhos quando meu vigia (!) der bobeira. 

Suspiros. De nostalgia, mas também de enfado.

Precisamos fazer o luto do amor romântico. Mais esse. Mais um luto a fazer. O amor tá de pé – o amor-do-jeito-que-der. Mas desse jeito aí da canção, na boa. O cara mais perfeito do mundo – o Chico – vai acabar te chamando de “minha nega”. 

Chico é poeta e sabe disso tudo. Talvez até tenha feito de propósito. No final ele deixa escapar: quando eu não estiver mais aqui. Não está. Esse sonho de homem aí já deu. No mais é a lida, encontros e desencontros de sempre. Adeus, Chico. 

P.S. Essa melodia é mágica e o compositor diz que se inspirou da música que Bach fez para Anna Magdalena (dizem as más línguas que ela era, de fato, compositora de muitas das músicas do marido). Tem uma conspiração no ar que a música capta. Por isso também que ela gruda desse jeito. A relação que não é mais possível com o Chico torna-se possível com a cantiga: segredo, feitiço, delicadeza, sedução e irritação. Tudo junto e misturado.

Carta aos broxas

Quase todos os homens que tive nos últimos muitos anos eram, de um modo ou de outro, broxas. A broxice é lato sensu. Queria dizer uma coisa para vocês: não liguem. O patriarcado está em crise. A relação de um homem com a dureza do seu próprio pau é de uma fragilidade tremenda, quase comovente. 

Arriscaria dizer que o patriarcado foi inventado para mascarar essa fragilidade. Então, a coisa mais normal do mundo é que, com o patriarcado em crise, a primeira coisa a cair seja o pau. Não liguem! Para nós, mulheres, a esta altura da crise do sexo hétero, não faz tanta diferença. Mandem ver nas chupadas, nas lambidas, nos dedos. Aprendam a chupar bem uma buceta. Deixem entrar o dildo, os vibradores tudo – não como um concorrente, mas como um aliado. (Quem sabe isso não ajuda até pra outras coisas da vida, não é mesmo?). 

Podem ter certeza: pra gente, uma trepada assim pode ser muito melhor do que um pau meia-bomba, uma foda de coelho ou um exibicionismo qualquer. Aproveitem que ele já tá mole mesmo e esqueçam dele. Esquecer o próprio pau. Taí um exercício que vale a pena. Pensar no pau mole, no que causou o pau mole, no que os outros vão pensar do seu pau mole é ainda tentar salvar o patriarcado. Vamos deixar ele morrer. Se o pau ficar mole no processo, que fique. Faz parte. 

Esquecer do piru vai fazer o mundo ficar melhor.

Nós, da DR.

sobre a loucura. a mulher. em relação.

esse texto reage, impactado, sobre o evento de ontem com a Silvia Federici. e parte das interpelações da Giovana Xavier e da Sandra Benites. elas foram de uma importância descomunal. exatamente para podermos colocar em perspectiva as necessárias inflexões no eixo do pensamento sul/norte e no sul/sul.

isso é uma das condições primordiais – a meu ver – para a composição das forças do feminismo no Brasil hoje.

estou ainda muito tocada por um ponto específico levantado pela Sandra – que aproxima-se frontalmente de toda a minha trajetória intelectual.

ela contou-nos que na filosofia guarani nhandeva – de sua origem, a noção da saúde da mulher é totalmente dependente da saúde da cabeça. diria, com minhas palavras, que a saúde do corpo da mulher é sobre determinada pela saúde da cabeça. quer dizer: a cabeça é corpo nessa economia ‘imuno-afetiva’ da mulher.

mas ela ainda foi além e disse que ninguém fica louco sozinho. que a loucura nunca é ali entendida como um acontecimento que acomete o indivíduo. isso porque entende-se que se ‘alguém’ enlouqueceu foi porque outro ‘alguém’ o enlouqueceu. pautando na relação entre – e com tudo o que há no mundo – o acontecimento da loucura.

mais longe: responsabilizando ‘aquele’ que está na relação aonde se dá o acontecimento da loucura como feixe de forças primordial da própria loucura que acometerá ‘aquele’ que adoece – Van Gogh foi suicidado (segundo Artaud)…entendam a dificuldade para ‘traduzirmos’ isso!!! [Gullar traduziu Van Gogh o suicida…].

essa noção guarani nhandeva da loucura é altamente sofisticada. ela retira a primazia do individuo, e por conseguinte as ações de isolamento, exclusão, traição e abandono que sucedem sempre ao indivíduo que adoece.

mas e sobretudo – tal sofisticação exige colocar no centro do debate sobre a saúde (física ou mental) as relações.

de fato nós brancos e ‘civilizados’ vimos fazendo das nossas relações o poço onde colocamos: a exclusão, o racismo, o preconceito, o medo, a competição, o ódio, a traição e a inveja. até mesmo o amor está hoje ‘naturalmente’ tingido por essas disputas.  não digo que não haja isso aqui ou acolá. e que o paraíso está no Mato Grosso. nós já contribuímos o suficiente até para a destruição dos nossos pequenos ‘paraísos artificiais’.

mas o que me parece muito tocante nisso tudo é que tomar a primazia da relação e não a do sujeito, ou das novas subjetividades ou dos velhos indivíduos iria no mínimo nos exigir interrogar a nossa potência afetivo-muscular para inventar novos pactos relacionais. novos contratos. novos modos. que vistos assim deveriam ser sempre relacionais e não mais subjetivos. postos em relação esses pactos, contratos ou modos exigem serem trocados. intercambiados. exigem serem ditos. devemos poder falar deles. saber quais são.

certamente não teria me relacionado com inúmeras pessoas  – em todos os âmbitos da vida [do íntimo ao profissional] – se o pacto tivesse sido mais frontalmente assumido e discutido. negociado e/ou verbalizado.

o silêncio relacional indica o grau de abuso da/na relação.

nota-se que o silêncio masculino nas relações é, sob essa perspectiva, usufruto do privilégio dos homens. garantido nas relações com as mulheres. nós entendemos. ou devemos entender. mesmo que ele não fale…ele não ‘precisa’ falar…

a necessidade de falar, nesse caso, aponta justo para a saída de uma posição privilegiada. só não precisa falar quem já tem. e já usufrui. de tudo o que tem.

ainda muito importante: não confundir potência e primazia da relação com criação de patota. esse modo gregário de identificação é justo o que enlouquece e exclui o outro. ele estava na base do pacto fascista. entre iguais. ele não para de proliferar hoje. entre nós.

também não estamos todos juntos. já perdemos essa também. aquele pacto proposto e falido da e pela ‘humanidade’ do homem.

tampouco estamos fechados no nosso grupinho de mãos dadas. eu não estou. nesse falso convite de que estamos juntos. entre alguns. estou como Sandra Benites disse: “sem lugar”.

não me sinto representada hoje em [e nem por] nenhum lugar aonde no entanto estou.

entendi que a primazia da relação é aquilo que poderia nos deslocar disso aí. tanto do sem lugar. quanto desse histórico lugar ‘só para alguns’ ou da falácia do ‘para todos’.

nem política nem logicamente conseguimos ainda vislumbrar esse outro lugar. tal como o suicidado ele também não se ‘traduz’ ainda entre nós.

para mim fica apenas essa indicação: a potência e a primazia da relação exige-nos deslocar em relação ao outro. isto é: em relação aquele / aquilo que não conhecemos. deslocar como ir em direção à.

potência afetivo-muscular.

talvez a proliferação dessa perspectiva relacional da vida esteja na base disso que ainda tanto assusta quanto resiste a ser codificado –

das bruxas à multidão.

ainda não sabemos o que podemos – se nos colocamos verdadeiramente em relação!

Publicado originalmente no blog Mar da Carne, de Ana Kiffer https://anakiffer.blogspot.com.br/2017/07/fulminado-2.html

sobre o meu anti-intelectualismo

Ainda vou escrever mais sobre como tenho aprendido o que é ser mulher. Aprendido porque por razões distintas à minha geração de mulher branca faltaram leituras de autoras. De pensadoras mulheres. Faltaram as mulheres unindo-se. E um poder-dizer juntas. Aliás acho até hoje mais difícil a mulher branca se unir. Como se a identidade branca (com seus privilégios, seu medo de perde-los, seu modo de controlar, de excluir, de classificar, de estratificar, etc.) ficasse todo tempo maior do que a possibilidade de união da mulher. Porque de fato é. Em termos lógicos é assim que é: esse elemento majoritário dominando. Entranhando. Determinando os nossos modos de relação. Rapidamente em defesa da família. Logo: dos maridos. Dos homens. Do poder. Nada disso nos empodera. Nunca empoderou. Mas continua aqui. Agora. Traçando os modos. Os comportamentos competitivos. Excludentes. Sorridentes. Civilizados. [Essa deve ser uma questão a ser colocada constantemente pelas mulheres brancas dentro da estrutura racista e sexista deste país]. 

Vou escrever também sobre como adentrar a madureza do tornar-se mulher em meio à cultura eternamente jovial da universidade. E dos braços do biopoder. E como essa dupla -jovialidade-biopoder- depende e sustenta a cultura sedutora do homem que “ensina”. E como sobreviver mulher nesse meio acadêmico. Que “ensina”. Depois de um tempo que já conta uma trajetória. Intelectual. E anti-intelectual. Vou ainda escrever. Sobre o anti-intelectualismo na literatura. Seus sintomas. E um algo de sua genealogia. Um marco dela: o texto de Ana Cristina César “Os professores contra a parede”. Tentar dizer. Para que o poder-dizer valha algo. Para mim mesma. E para qualquer outra. Para que muitas não sigam. Um anti-caminho. Feito da minha deambulação. Entre áreas. Gêneros. Gerações. Para que a mim e porventura a elas não acometam mais. Os ‘meus’ silêncios. 

Para poder-dizer que até hoje são as mulheres negras. As que habitam a minha vida. As que insurgem em minha vida. E as que eu leio. As intelectuais negras. As que mais me ensinam o que é ser mulher e intelectual hoje. Que é mesmo quando as leio que entendo os meus traumas. E também o que nunca sobre o qual pensei. Mesmo quando sentia. E que isso é enorme. Já que passei anos dedicada a pensar. Com todas as diferenças e com muito respeito. Estou certamente ao lado delas. São elas que me autorizam finalmente dizer que não estou ao lado dos homens que me formaram. E cada vez menos. E que isso é um fato. Um fato político-físico-afetivo-psicofísico-afetivo-político. Porque é sobre o corpo que se inscrevem as desvalias. A das negras objetificadas em todo mundo branco como mero instrumento sexual. As mulheres belas-erotizadas-feitas de seus desejos. Desqualificadas no meio intelectual. Burras. Objetos constante do assédio. E posterior desprezo. E, sobretudo, de uma das regras que o determina: a separação radical entre o intelectivo e o sensível. O intelectual e o sensual. O corpo e o pensamento.

Assim é. Aí estou: “Embora hoje haja sem dúvida muito mais negras acadêmicas elas são na maioria das vezes anti-intelectuais (uma posição que é frequentemente consequência do sofrimento que suportaram como alunas ou professoras encaradas com desconfiança e desprezo por seus pares)”. [HOOKS, Bell. Intelectuais Negras. In: Estudos Feministas Ano 3, num. 472]

Repito: encaradas com desconfiança e desprezo por seus pares. 

Publicado originalmente no blog Mar da Carne, de Ana Kiffer
https://anakiffer.blogspot.com.br/2017/06/fulminato-2.html