Ángela Vela e Marleen Villanueva, lideranças indígenas norte-americanas

entrevista Ángela Vela e Marleen Villanueva

“Eu olho para tudo aquilo que nós temos que engolir, mas então me lembro de tudo que meus ancestrais tiveram que enfrentar: ‘Certo, esta é a minha batalha e eu não vou recuar’”

Ángela Vela e Marleen Villanueva são codiretoras, respectivamente, do Native American and Indigenous Collective (NAIC) e da Native American and Indigenous Peoples Association (NAIPA), organizações conformadas por estudantes indígenas da Universidade do Texas em Austin, Estados Unidos – a última, por alunos da pós-graduação. Ángela, 23, estuda Letras (Inglês) e Marleen, 27, está prestes a concluir o mestrado, em Estudos Culturais em Educação. Nesta conversa, ocorrida no campus, em 16 de novembro, as duas refletem sobre o papel das entidades estudantis em que atuam, os problemas estruturais que seguem impactando a presença indígena na universidade e as perspectivas de organização da juventudade. Sua narrativas – habitadas por ancestrais, lideranças indígenas contemporâneas e personagens não humanas – são atravessadas pela fronteira, por episódios traumáticos, por esforços para a construção de outros mundos e por potentes marcos políticos, como o movimento de defesa territorial recentemente desatado em Standing Rock, na Dakota do Norte. Com essas falas, Ángela e Marleen abrem uma janela para seus processos formativos como mulheres indígenas, estudantes e militantes.

Daniela Alarcon – Gostaria de ouvir um pouco sobre as trajetórias de vocês. Como foi crescer sendo indígena? Quero dizer, vocês tinham percepção de que eram indígenas desde pequenas ou isso veio com o tempo? Enfim, poderíamos começar conversando sobre suas origens, suas famílias, aquilo que vocês se sentirem à vontade para compartilhar.

Ángela Vela – Desde que eu era pequena, eu tinha bastante clareza de ser indígena. Porque, conforme eu ia crescendo, meu pai ia enfatizando a nossa identidade. Pode parecer estranho, mas, toda vez que nós víamos algo feito de penas, ele dizia: “Isso é parte do seu patrimônio”. Depois, havia o modo como a nossa casa era – e ainda é – configurada, em torno de um altar, com fotografias dos nossos parentes vivos e mortos. E nós temos um crânio de búfalo em casa. Não sei… Há certos aspectos do meu pai sobre os quais eu não sei muito. Mas o modo como nossa casa era configurada, com os altares e tudo, me fazia muito consciente desse pertencimento. Essa foi uma das formas pelas quais eu aprendi sobre a minha identidade. E eu era muito ligada ao lado paterno da família, à minha avó, que vem de uma comunidade conhecida como Las Minas, no sul do Texas. Essa comunidade não é reconhecida – é uma história muito complicada –, mas é a esse lugar que meu pai atribui boa parte de suas origens.

As coisas eram difíceis, também, porque a identidade hispânica é um componente muito forte da região onde eu cresci, por razões históricas. Em parte, era algo imposto, mas havia ocasiões em que a minha família se identificava voluntariamente como hispânica, por razões que… Então, eu sinto que sempre tive clareza sobre a minha identidade, mas, ao mesmo tempo, estava em conflito, porque não conhecia mais ninguém que se identificasse como indígena. Eu não tinha espaço para ser indígena para além da minha família, especialmente do meu pai e da minha avó, que iam me criando a seu modo e me ensinando como a vida costumava ser em Las Minas.

Eu sinto que agora me reconectei – não, não quero dizer que me reconectei, porque eu sempre estive conectada. O que acontece é que agora eu estou enfatizando essa parte de mim, o máximo possível, no meu modo de viver. Tenho feito muitas perguntas à minha avó e estou descobrindo muitas coisas que não sabia antes. Isso me fez perceber claramente que nossos modos de transmitir conhecimento não são ocidentais: os ensinamentos estavam sendo passados para mim e eu simplesmente não me dava conta de que isso estava acontecendo, porque meu pai e minha avó não chegavam, me sentavam em uma cadeira e diziam: “Agora, você vai aprender a ser indígena”. Era mais uma… Não sei descrever, só sei que eles me transmitiam o que precisava ser transmitido. Era assim que eles viviam e eles iam passando para mim os valores indígenas do equilíbrio e da reciprocidade. Eu sinto que minha avó e meu pai me influenciaram muito.

Marleen Villanueva – A colonização afetou minha família em cheio. Quer dizer, isso vale para todos os indígenas… No nosso caso, a coisa chegou ao ponto de perdermos nossas terras, que ficam nas montanhas, no México, no lugar hoje conhecido como San Luis Potosí. Foi ali que a minha mãe nasceu, em El Paraiso. Quando ela era criança, não havia eletricidade, não havia todas essas coisas, sabe… Então, começaram a aparecer pessoas de fora, batendo na porta e dizendo: “Sabe, vocês são pobres, vocês não têm educação, não têm eletricidade, vocês são pobres…”. Pobres em todos os aspectos da acepção de pobreza desse projeto de modernidade capitalista que colocaram em marcha. Então, minha avó começou a acreditar nisso, sabe? Não porque ela quisesse: foi algo imposto. Porque o fato de alguém ir até a sua casa, bater na sua porta e dizer que você não é nada causa danos psicológicos. Então, essas pessoas vinham com alternativas: “O que você pode fazer para melhorar sua vida é ir para a cidade. O que os seus filhos precisam é de educação e você não está dando isso para eles”. Educação queria dizer a, b, c, d, sentar-se em uma sala de aula, em uma carteira, ler, escrever, tudo isso que eles dizem que é ou deveria ser educação. Através desse processo, eles vão tirando nossa identidade e nos socializando para ser um tipo específico de pessoa. Essa gente de fora aparecia o tempo todo. Eles até criaram uma escola de educação básica nas montanhas. Aí, eles diziam: “Agora, vocês têm que ir para a cidade, se quiserem continuar a estudar. Se não forem, vão continuar pobres”.

Minha avó teve seis filhos. Meus tios e tias mais velhos não receberam educação formal. Eles logo começaram a procurar meios de trazer dinheiro para casa: viajavam para a cidade, para trabalhar, ou iam para a roça e vendiam a produção na feira. Quando começou a entrar algum dinheiro em casa, minha avó pensou: “Certo, talvez os mais novos possam ter educação”. Na época de os mais novos irem para a escola, eles se mudaram para a cidade. Naquele tempo, eles viviam em uma casa intergeracional: as crianças, minha avó, a sogra dela, meu avô, três ou quatro gerações na mesma casa. Então, minha avó disse: “Eu vou fazer isso pelas crianças”. A gente não pode culpá-la, certo? Havia um projeto para “desenvolver” as pessoas e, se você não o seguisse, continuava “pobre”. Minha avó começou a juntar dinheiro, encontrou uma casa e uma pessoa que a deixou ficar nessa casa até ela conseguir dinheiro para pagar – ela trabalhava para essa pessoa, em um tipo de trabalho análogo à escravidão.

Só que meu avô não queria ir para a cidade. E a mãe dele também não. Meu avô dizia: “Não, aqui é a nossa casa”. De fato, aquelas terras, especificamente, tinham sido entregues a famílias indígenas durante a Revolução Mexicana, com [Emiliano] Zapata e tudo. Então, eles não queriam partir. Mas minha avó disse: “Bom, eu estou indo”. Ela pegou as crianças e foi. Minha bisavó ficou: “Eu não vou, vocês não vão me tirar da terra, não vão me tirar de casa”. E então meu avô teve que ficar indo e vindo, entre a mãe e a esposa. Na cidade, a minha mãe começou a trabalhar em uma papelaria e a ajudar em casa – na verdade, foi ela que garantiu educação formal para a minha tia. Foi aí que a minha mãe começou a formar seus valores sobre a importância da educação, valores que ela transmitiria para mim. Passado um tempo, minha bisavó ficou doente. Então, eles a forçaram a se mudar para a cidade, eles a tiraram de casa. “Não, você não pode mais viver sozinha, você vem com a gente”. Na cidade, a casa já não era mais da minha bisavó, era da minha avó; a dinâmica mudou e a minha bisavó tinha um quartinho para ela. A mudança também serviu para reforçar um tipo de catolicismo muito pesado, que foi imposto sobre eles. Eles falavam para a minha bisavó: “Você não pode continuar fazendo seus rituais, vá para o seu quarto”. Minha bisavó ia para o quarto e fazia as cerimônias ali – seu altar era no quarto, seus rituais eram realizados no quarto. No altar, ela tinha um popóxcomitl, para queimar copal, que ela mesma tinha feito, de argila. Hoje, eu tenho no meu altar um popóxcomitl feito por ela.

Essa história, eu só aprendi depois, quando descobri a verdade. Porque eu cresci pensando, primeiro, que era hispânica. Depois: “Não, eu não sou hispânica, isso é um rótulo imposto de fora; agora, eu sou mexicano-estadunidense”. E depois: “Espera. O quê?! Eu não sou mexicano-estadunidense, eu sou indígena!”. Tentar descobrir quem eu sou tem sido um processo cheio de camadas. Eu gostei quando você falou, Ángela, que não está se reconectando, porque sempre esteve conectada. Isso é muito importante, é exatamente isso. E tem a ver também com o fato de que a própria categoria “indígena” só apareceu quando alguém chegou e nos disse que era isso que nós éramos. Entende? É um rótulo. Minha mãe tem muita dificuldade de lidar com isso. Ela diz: “Nós somos pessoas. Do que você está falando? Nós somos pessoas”. Se você olhar para as línguas indígenas, em toda parte, os etnônimos querem dizer “o povo”, “o povo verdadeiro”… É antes uma identificação com a espécie que com uma raça.

Eu sofri muitos traumas e violências. Em 2009, eu estava na graduação, passando por tanta coisa… Foi então que eu comecei a participar do Movimiento Estudiantil de Chicanos y Chicanas de Aztlán (MEChA), uma organização estudantil muito ativa, bastante radical, que se identificava como chicanx. Um dia, um dos membros do MEChA trouxe uma danzante para o campus, Laura Ríos. Ela começou a tocar o tambor – tã, tã, tã, tã, tã – e eu fiquei profundamente impactada. Era a primeira vez que o Dia dos Povos Indígenas era celebrado na universidade. Em 2009. Até então, isso não existia aqui. Em seguida, Laura convidou as pessoas para irem aos ensaios. Eu fui e encontrei esse grupo de danzantes maravilhosos, do Mexican American Culture Center [centro cultural situado em Austin, dedicado à conservação, produção e circulação de arte mexicana e de outros países latinos]. Só que eu estava tímida, não consegui chegar até eles. Em vez disso, decidi me sentar junto de uma árvore e simplesmente assistir. O tambor e o cheiro do copal me fizeram chorar… Eu ia toda semana, sem falta: sentava na árvore e chorava, chorava, chorava… Foi ali que as portas se abriram – na época, eu ainda era estudante de Medicina.

Foi nesse momento também que eu me aproximei de um curso sobre feminismos chicanos. Tudo aconteceu ao mesmo tempo. Eu li Borderland/La frontera, de Gloria Andalzúa, Cherríe Moraga, This bridge called my back [editada por Cherríe Moraga e Gloria Anzaldúa], Ana Castillo – todas essas feministas chicanas incríveis e fortes. Eu sentia tanta raiva – no bom sentido – e consegui canalizá-la para a militância no MEChA. Depois de um tempo, o MEChA já não era suficiente, então, eu ajudei a fundar La Colectiv@, que acabou sendo a primeira organização na Universidade do Texas (UT) criada por feministas imigrantes de primeira geração. Dali surgiria a Native American Students Assembly (NAISA), a primeira organização de estudantes indígenas do campus. Quer dizer, já existia o Longhorn American Indian Council (LAIC), mas nós não nos sentíamos representados, então, criamos o NAISA. Depois, da fusão do NAISA e do LAIC, surgiria o Native American and Indigenous Collective (NAIC), que existe até hoje. Essa é uma parte da minha trajetória…

Ángela – Enquanto a Marleen falava, eu fiquei pensando: “Eu também passei por isso”. Se possível, gostaria de voltar a alguns pontos, para estabelecer um diálogo. Eu passei por experiências muito similares. Ingressei na UT transferida de outra universidade – meus pais queriam que eu continuasse morando com eles e minha mãe queria que eu estudasse transtornos de comunicação, mas meus professores de inglês achavam que eu escrevia bem e… Isso provavelmente veio da minha avó e do meu pai, mas em certo sentido também da minha mãe. Ela não fala muito sobre sua criação, e ela tem seus motivos – eu amo a minha mãe e não tenho a menor intenção de desrespeitá-la, mas lhe ensinaram que ela foi indígena um dia, mas não é mais. Agora ela vê meu trabalho e me respeita por isso, o que é ótimo. Quando eu entrei na UT, fiquei sabendo do NAIC e que eles estavam organizando o Four Directions [evento anual de recepção organizado pelos coletivos indígenas e aberto ao público em geral], mas eu ainda me sentia… Eu não tenho um documento oficial de pertencimento a um povo indígena, eu venho de uma comunidade que migrou da fronteira do México – a migração é algo natural, algo que os povos indígenas fazem o tempo todo, como minha avó e meu pai sempre dizem. Mas eu não me sentia confortável, eu tinha receio de não ser acolhida, porque sei que eu tenho a pele mais clara. Isso não deveria ser uma questão, porque indígenas de diversos povos têm a pele mais clara, por razões coloniais. Mas eu pensava: “E se eu não for aceita?”. Então, eu me continha e não me envolvia.

Meu pai diz que descendemos dos Mexica, e, por parte da minha avó, dos Comanche. Ao mesmo tempo, ele localiza sua origem na comunidade trabalhadora do sul do Texas, onde meus parentes mantinham um modo de vida indígena. A avó do meu pai tentava lhe ensinar as coisas, mas, naquela época, ser indígena era um constrangimento. Quando eu estava na segunda série, cheguei a me fantasiar de peregrina [em referência aos colonos ingleses que, no século 17, estabeleceram-se no que hoje corresponde à Nova Inglaterra]; em algumas aulas, tínhamos que colorir desenhos de índios. Eu ficava animada, porque, com a minha cabeça de aluna da segunda série, eu pensava: “Estou aprendendo sobre mim no passado e vou começar a aprender no presente”. Então, perguntei à professora: “Quando a gente vai começar a aprender sobre outros povos indígenas e sobre como nós vivemos hoje?”. Ela respondeu: “A gente vai ver isso mais para frente”. Na terceira série, fiz a mesma pergunta – provavelmente, eu era a única que fazia essa pergunta. “Nós fizemos tal atividade ano passado. Podemos continuar aprendendo, por favor?” E eles diziam: “A gente vai ver isso mais para frente”. Na quarta série, eu concluí: “Eles nunca vão me ensinar”. Então, comecei a pesquisar por conta própria. Estava interessada no Día de los Muertos [celebração de origem mesoamericana], no povo Comanche, nas coisas que meu pai contava. Comecei a pesquisar e passava as informações para os professores.

As histórias que meu pai e minha avó me contavam me influenciaram a pedir transferência para a faculdade de Letras. E também havia meus professores, que viam meu potencial. Então, falei para a minha mãe: “Não vou mais estudar transtornos de comunicação, desculpa, vou me transferir para a UT”. Aí veio o NAIC, mas eu não me sentia confortável – nos dois primeiros anos, não procurei o NAIC. Eu pensava: “Eu preciso existir, só isso. Meu percentual de sangue indígena, meu reconhecimento étnico oficial… Não é assim que nós reconhecemos nosso povo”. Meu pai me fala isso o tempo todo. Porque eu me lembro de ter lhe perguntado uma vez: “Por que não estamos com nosso povo? Porque estamos sozinhos?”. E ele disse: “Não é desse jeito que nos reconhecemos uns aos outros. Não saímos atrás uns dos outros: ‘Vou pegar um papel e uma caneta e declarar que você é índio, para todo mundo ver’”. Para ele, isso não fazia sentido. Então, eu comecei um processo de aceitação, de mim mesma e da comunidade.

Marleen falou sobre o tambor e o cheiro de copal: isso me afetou também. Na nossa família, não usávamos tambores, mas meu pai e minha avó usavam muito incenso, e eu me sentia bem. Sinto que as palavras me escapam quanto tento descrever rituais – seja em espanhol ou em inglês, simplesmente não consigo, apesar de estudar Letras e saber descrever as coisas. Quando se trata dos rituais, se eu tento descrever como me sinto ou se alguém me faz uma pergunta, a resposta não sai do jeito que eu queria, e acho que há uma razão para as coisas serem assim. Eu só queria comentar isso, porque a Marleen me fez pensar… Enfim, eu estava tentando me encaixar na UT, tentando frequentar grupos hispânicos ou outros, mas não funcionava – e também há um motivo para isso. A questão dos espaços indígenas na universidade é uma luta, porque ainda somos invisibilizados – especialmente as mulheres indígenas. Nas disciplinas que eu curso, às vezes, sou a única mulher não branca da sala; em todas elas, com certeza, sou a única indígena.

Marleen – Quando a Ángela fala sobre não se sentir confortável por causa das políticas de identidade, eu me identifico muito. No começo, eu pensava: “Certo, agora preciso descobrir a que povo pertenço”. Naquele ponto, eu estava tão colonizada, que não conseguia pensar em identidade fora dessa caixa. Muitos de nós continuamos a sofrer com isso. Em alguns casos, eu entendo a necessidade de saber exatamente… Acho que há beleza e força no modo como esse conhecimento pode te impulsionar, mas ele também pode trazer consigo coisas muito negativas: “Eu sou puro, você não é”. Porque eu ouvi pessoas dizendo: “Eu sou 100% Choctaw” ou “Eu sou 100% isso ou aquilo”. Ótimo, que bom para você! Mas de que forma você diz isso? Insinuando que há algo errado com o outro? Afinal, o que você quer dizer com isso? De que modo acabamos, nós mesmos, perpetuando violências que foram impostas ao nosso povo durante tanto tempo? Isso é horrível, é muita colonização interna.

Acho que, com o passar do tempo e com ritual, consegui me sentir mais tranquila em relação a isso e me mover na direção do que diz María [Rocha, do Indigenous Cultures Institutes,organização criada pelos Miakan-Garza, do Texas]: “Saiba quem você é, porque ninguém saberá quem você é melhor do que você mesma”. Reconhecer que eu não preciso das palavras do branco para me dizerem quem eu sou, mesmo que se trate, por exemplo, de um etnônimo. Todas essas coisas… Sim, elas têm um propósito. Quanto às pessoas que têm o privilégio de saber exatamente quem são e de onde vieram, isso é ótimo. Agora, o que você vai fazer com esse privilégio? Porque se trata de um privilégio, me desculpe. Você vai construir solidariedade entre comunidades que viveram a colonização de maneiras diferentes, muito diferentes, todas igualmente dolorosas? Então, eu acho que é uma luta. Foi interessante escutar você falar, Ángela, sobre chegar e não se sentir confortável. Porque foi por isso que criamos o NAISA. Nós não nos sentíamos parte do LAIC, então, veio o NAISA. Escutar que o NAIC também reproduzia isso é interessante. Me faz pensar nas maneiras como as nossas organizações invisibilizam e reproduzem violências. O que podemos fazer para evitar isso? Que tipo de oficinas podemos fazer? Que tipo de informações podemos colocar nos nossos materiais a esse respeito?

Daniela – Em outubro, aqui na UT, Pamela Palmater [advogada, professora universitária e militante Mi’kimaw, do Canadá] abriu sua palestra dizendo que as mulheres indígenas ainda são muito invisibilizadas, de diversas maneiras. Agora, vocês também mencionaram experiências nessa direção. Ao mesmo tempo, as falas de vocês duas são povoadas de mulheres, que parece que desempenharam papéis fundamentais nas suas buscas, nas suas caminhadas. Vocês poderiam comentar um pouco mais sobre as mulheres indígenas que têm inspirado vocês, sejam elas parentes, pessoas das suas comunidades, militantes, intelectuais?

Ángela – Definitivamente, minha avó Julia. Porque ela me criou durante os primeiros anos da minha vida, antes de eu começar a ir para a escola. Sinto que fui educada por ela, não tanto pelo sistema público de ensino – claro que a escola me alfabetizou, mas o modo como eu vejo o mundo deve-se inteiramente a minha avó. Ela é a primeira pessoa que precisa ser mencionada. Eu reparava em como ela se relacionava com a terra, cuidando das plantas e de tudo ao seu redor… Ainda que a gente não se veja todos os dias, ela continua me ensinando. Ela tinha um defumador e me explicou como usá-lo; também me ensinou a curar usando chás e incensos. Isso é meio tangencial, mas eu acho importante dizer. Já minha mãe foi socializada para falar que não é indígena, mas, mesmo assim, ela me impactou em relação à educação. Sinto que a minha inclinação para as narrativas e para a escrita vem dela também, porque nós sempre assistíamos juntas filmes de ficção científica ou narrativas distópicas, o que me influenciou muito. Atualmente, eu pesquiso a descolonização da teoria do trauma, recorrendo a epistemologias indígenas e incorporando narrativas orais da minha família. No mestrado, pretendo estudar ficção científica e literatura distópica chicanx, mexicano-estadunidense e indígena, debatendo a importância da decolonialidade na literatura americana. Outra mulher que me influenciou, com certeza, foi minha tia Dolores, porque ela vem procurando enfatizar e fortalecer suas conexões com sua avó e com seu patrimônio – sua avó era curandera.

E, honestamente, todas as mulheres indígenas que têm vindo à UT – sem dúvida, Pamela Palmater e LaDonna Harris [militante Comanche, dos Estados Unidos]. E também Winona LaDuke [ambientalista, economista e escritora Ojibwe, dos Estados Unidos]. Ainda que eu não a conheça pessoalmente, escutá-la defendendo os direitos dos povos indígenas em Standing Rock [mobilizados contra a construção de um oleoduto sob o rio Missouri, que impactaria território indígena, em Dakota do Norte] e ouvi-la falando sobre o trauma histórico sofrido por esses povos e comunidades me inspiraram a me tornar militante. María Rocha, do Indigenous Cultures Institutes,também me inspira muito. Na época em que eu estava sentindo dificuldades de pertencimento na universidade, encontrei-a no Four Directions e, não sei bem por quê, decidi conversar com ela. Ela me falou da necessidade de recuperar e enterrar os nossos ancestrais – a UT, sozinha, está em posse de mais de 2.400 restos mortais de indígenas. Nós conversamos um pouco e ela começou a me encorajar a me aceitar. Eu não precisava de um documento para provar quem eu era, estava tudo bem, porque muitos de nós viemos de pequenos grupos, de pequenas comunidades. Não é questão de provar nada para ninguém, mas de se aceitar, de olhar para sua família, de perceber as maneiras pelas quais a cultura sobreviveu, as experiências sobreviveram. Ela realmente me motivou a ser ativa na comunidade, mesmo que eu me sentisse estranha no começo, em função de como andava minha autoestima como mulher indígena.

Marleen – A primeira pessoa que vem à mente é a minha bisavó Gozita. Porque ela disse: “Não, eu não vou embora!”. No final, ela teve que deixar sua casa, mas ela continuou rezando no quarto, ela continuou com seu altar, ela continuou… É interessante o fato de que eu não ter conseguido encontrar o defumador da minha bisavólogo depois que ela morreu. Minha avó o utilizava também, especialmente no Día de Muertos, com cempasúchil [cravo-de-defunto] e copal – eu descobri isso depois que a minha bisavó morreu. Perguntei para a minha avó e ela: “É, eu uso no Día de Muertos…”. Mas ela não queria falar muito sobre o assunto. Então, eu disse: “Mas, vó, você é uma curandera!”. Ela nunca foi ao médico, resolvia tudo com hierbassobadascurar de susto e tudo mais. Agora eu entendo a cautela que ela tinha, porque, na geração dela, isso era razão para vergonha. “Não, não faça isso, isso é obra do demônio.” Com o tempo, eu entendi que, em vez de criticá-la, eu deveria dizer: “Vó, por que você não me ensina?”. Eu lembro que a minha primeira reação foi: “Como você tem coragem de mentir para mim?”. Na geração dela, ser índio não era “bacana”, saber de onde você vinha não era legal; você tinha que seguir o projeto nacionalista de se tornar mexicano. No caso da minha mãe, que imigrou para os Estados Unidos, tratava-se de seguir o projeto nacionalista de se tornar latina, sabe? Quanto mais se aprofundam esses projetos, mais você se afasta das raízes, de quem você é.

Voltando para a minha bisavó: minha bisavó era ótima, eu me sentia muito conectada com ela. Depois que meu avô morreu, minha mãe encontrou o defumador e me deu. Porque eu lembro que, depois que a minha avó o encontrou, eu pensei: “Ah, eu quero ficar com ele!”. Mas, durante anos, não pude achá-lo, ele simplesmente não aparecia! Eu perguntava para todo mundo! Foi preciso que a minha mãe o encontrasse e me desse. Esse objeto sagrado teve que ser transmitido matrilinearmente: ele foi da minha bisavó, foi usado pela minha avó e me foi entregue pela minha mãe. Ele fica ali e eu sinto que minha bisavó é, definitivamente, minha guardiã, sinto que ela me acompanha aonde eu vou. Então, quando eu percebo que estou me escondendo… Porque, às vezes, eu me escondo para fumar tabaco, para rezar, porque, você sabe… As pessoas chegam: “Você está fumando cigarro aqui?”. “Não, querido, não é isso que eu estou fazendo, é algo totalmente diferente.” Às vezes, eu me vejo procurando um lugar “adequado” para fazer isso, mas então eu penso nela e digo: “Não! Ela teve que se esconder, eu não tenho que me esconder agora”. Ela teve que se esconder para que isso continuasse, então é minha vez de dizer: “De jeito nenhum!”. Em espaços onde me sinto suficientemente segura para fazê-lo, eu faço.

Minha mãe. Minha mãe, por ter cruzado aquele rio [Bravo] até aqui. Porque foi preciso que eu nascesse fora daquelas terras, a primeira geração que não nasceu naquelas montanhas, que terminou no Texas… E estas terras… Yanawana, o espírito desta terra, o espírito da água, a comunidade Coahuilteca [etnônimo englobante para diversos grupos indígenas autônomos originários do território que hoje corresponde ao sul do Texas e a parte do México], especialmente o Dr. Mario Garza e dona María Rocha, com certeza… A mulher-água e essa comunidade espiritual me ensinaram tanto… O espírito desta terra, desta terra especificamente, as fontes de água mudaram minha vida. Então, eu vou incluir Yanawana nesta lista, como uma mulher, um espírito, que definitivamente continua a influenciar meu trabalho. Minha dissertação de mestrado é sobre Yanawana e seus impactos na descolonização da educação, de uma educação referenciada no lugar – é sobre isto que vou fazer meu doutorado, sobre como podemos pensar nos lugares de um modo muito sagrado, como honramos os lugares em que estamos. Aqui, eu sou alguém vindo de fora, meu povo não vem daqui. Então, é minha responsabilidade aprender sobre os espíritos desta terra, sobre os cuidadores desta terra, os guardiões desta terra. Por isso, a comunidade daqui tem sido tão importante para mim, para que eu saiba quem eu sou, reconhecendo que todas as águas estão conectadas, todas as terras estão conectadas.

Minha avó costumava ir a uma fonte – há uma fonte perto da nossa casa, no México, onde minha avó costumava ir. Havia uma pequena fonte no alto e um poço maior embaixo, onde todos iam nadar. Ela dizia: “Vem para cá!” Ela me trazia para a parte de cima, um lugar muito calmo, muito raso. E eu reclamava: “Quero brincar!”. “Espera! Primeiro, é preciso se curar, depois brincar.” Ela levava uma cadeira, se sentava, me pedia que esfregasse barro nos seus joelhos, nas suas juntas… Ela me fazia se sentar com ela e só depois eu podia ir brincar. Eu não me dava conta do que ela estava fazendo: ela estava dando oferendas para a água. Ela levava comida, frutas, copal, todas essas coisas; ela dava oferendas para a água e, em troca, a água lhe dava remédio, ela era curada. Então, o fato de ter essa conexão com aquela fonte e de viver em um lugar onde há quatro fontes sagradas, aqui no Texas… Quando eu converso com Yanawana, estou conversando com a água lá de casa. Os espíritos dessas águas estão conectados. E eu sei que os espíritos das águas lá de casa sabem que os espíritos das águas daqui estão cuidando de mim, estão cuidando do meu povo. Ángela, quando você falou sobre migração, sobre esse processo tão bonito de ter asas… É muito, muito triste que tantos de nós, do nosso povo, tenham suas asas cortadas. É disto que se trata: mais uma tática colonial para manter nosso povo oprimido, tenham essas pessoas ou não o privilégio e a beleza de reconhecer quem são. Adoro o fato de que o símbolo da migração é uma borboleta. Porque é disto que se trata: aves, borboletas. Temos asas, temos direito de migrar.

Então, sim, minha bisavó, minha mãe, minha avó, as fontes de água – as mulheres na minha vida são tão fortes! Olhando para trás, para a árvore genealógica que eu comecei a construir, para as linhagens tanto do lado paterno quanto do lado materno, não consigo achar brancos nas linhagens matrilineares de ambos os lados. Há um homem branco do lado da minha mãe e um homem branco do lado do meu pai. Na verdade, do lado paterno, era um garoto branco, que foi encontrado nas montanhas durante a Revolução [Mexicana] e acabou sendo adotado pela família. É interessante, porque esse sangue… Há tantas histórias sobre como essas coisas aconteceram…

Daniela – Nós falamos um pouco sobre as organizações estudantis indígenas e sobre invisibilização na universidade. Se possível, gostaria de continuar discutindo o modo como a UT tem lidado com a presença de estudantes e professores indígenas. Imagino que as coisas estejam mudando, mas que ainda haja muitos problemas. No site da UT, na seção dedicada às estatísticas relativas aos estudantes, está escrito: “Indígenas dos Estados Unidos: menos de 1%, Nativos do Havaí e das Ilhas do Pacífico: menos de 1%”. Achei essa redação, no mínimo, problemática: é possível interpretá-la como uma minimização da presença indígena. Como vocês veem isso? Vocês têm recebido denúncias de racismo? Que outros problemas veem? Sei que a questão é enorme, mas queria ouvi-las sobre como a UT está se saindo.

Ángela – Por onde começar? Eu fico muito feliz de termos um programa de estudos indígenas aqui [Native American and Indigenous Studies (NAIS), vinculado ao College of Liberal Arts da UT Austin]. E acho que seria preciso haver mais – isso não é culpa do diretor do programa, é culpa do nosso sistema de ensino. Fico feliz que tenhamos o Mexican American and Latina/o Studies (MALS) [também vinculado ao College of Liberal Arts]. Só que, no Departamento de Inglês, as aulas não levam em consideração as leituras indígenas. A Marleen estava falando sobre a água… Eu cresci perto do Rio Grande – minha família tem uma relação complicada com isso, mas eu sinto que tenho uma ligação com esse lugar, não importa. O modo como eu vejo a água é o seguinte: estamos todos conectados através dela. Só que não é dessa maneira que a maioria das pessoas vê e compreende a água. Na sala de aula, quando eu tento contextualizar a partir da perspectiva indígena um livro como The Scarlet Letter [de Nathaniel Hawthorne], criticando-o por ser anti-indígena, minha voz é silenciada. Quando nos davam para ler teorias ocidentais, escritas por homens, sobre a paisagem dos Estados Unidos, ou Turtle Island [expressão comumente utilizada por povos indígenas para se referir à América do Norte], eu procurava oferecer leituras alternativas, mas isso nunca era bem recebido. Eu fico frustrada, porque, do jeito que as coisas estão, isso vai continuar assim. Esse é um dos problemas, mas não é o único.

Há muitas maneiras pelas quais a invisibilização e a marginalização ocorrem. Frequentemente, as pessoas não respeitam meus limites, meu espaço. Por exemplo, alguns estudantes de jornalismo ou de outros cursos me pedem entrevistas e fazem perguntas, digamos, estranhas. Alguns não sabem como tratar os outros como pessoa. Eu não estou falando apenas da administração da universidade, mas do corpo discente também. Isso é outro problema. É muito difícil encarar isso por conta própria; a tendência é se sentir sozinho, mesmo que nunca estejamos sozinhos. Esses são apenas alguns dos problemas. Outro é a falta de representatividade nos níveis superiores da hierarquia acadêmica. Nós não temos orientadores ou conselheiros indígenas. Os eventos que a universidade organiza para que os estudantes conheçam uns aos outros não consideram os estudantes indígenas. Eu tentei ir a esses eventos, mas não dava certo, porque ninguém entendia como minha cabeça funciona, não levavam em conta que eu sofri trauma histórico, trauma colonial, então, não dava certo. Muitas dessas coisas são estruturais.

E há também o fato de que não se discute o suficiente o que significa ser indígena, como isso pode ser problemático e como fazemos para sermos inclusivos. Porque nós não estamos nos referindo apenas aos indígenas dos Estados Unidos; o NAIC e o NAIPA [Native American and Indigenous Peoples Association] são pensados para ser espaços para quem é indígena, seja de que comunidade venha. Eu acho que a incapacidade de reconhecer isso está presente na coisa do “menos de 1%”. Penso que muito disso remonta ao modo como somos socializados ou educados na escola pública, à forma como nos tornamos projetos coloniais. Isso vai perpetuando uma noção de “autenticidade”, de quem pertence e quem não, segundo o modo como nos classificamos. Falta discussão. Esses são apenas alguns dos problemas, não todos. Eu tenho muita dificuldade com o ambiente da UT, de estar em espaços em que sou a única pessoa que se identifica como indígena. É uma longa lista de lamentações, há muito a se melhorar.

Marleen – Eu cheguei à UT em 2008, como estudante de graduação, e fiquei até 2013; de 2013 a 2016, saí para dar aulas; e em 2016, voltei para o mestrado. Ou seja, desde 2008, tenho estado bastante na UT, mesmo nos três anos em que fiquei fora, porque as coisas continuavam acontecendo, continuávamos organizando atividades, os diretores do NAIC sempre me procuravam: “Ei, podemos conversar?”. Então, são quase dez anos de relação com a UT. Posso dizer que as coisas mudaram bastante – em 2008, 2009, eu nunca imaginaria a existência do NAIS, eu nunca imaginaria que poderia haver um espaço para os estudantes indígenas no SAC [Student Activity Center]. Eu jamais imaginaria ver pessoas não brancas sentadas naquele escritório, representando o NAIC; eu nunca poderia imaginar o NAIC ali. Então, sim, algumas coisas melhoraram, há muito mais visibilidade. No começo, éramos três. Quando assinamos os papéis para criar o NAISA, éramos três. Na época, nós localizamos uns aos outros por meio das organizações mais chicanas, mexicano-estadunidenses, latinas, organizações não brancas, esse tipo de coisa. Quando começamos a saber mais sobre nós mesmos, dissemos: “Certo, é isso que nós somos”. Esses espaços não estavam aqui, nós tivemos que cavá-los.

Mas, mesmo agora, a coisa é muito ruim… Seguimos sendo invisíveis, continuam não nos levando a sério, ainda somos estereotipados, continuamos fora do currículo. Espero que daqui a dez anos haja melhoras. E nos dez anos seguintes. E que continue melhorando. Fico imaginando o que aconteceria se as estruturas existissem, se eles dessem a mínima para a gente – porque eles não dão. Se nestes dez anos houve um monte de avanços foi porque as pessoas deram duro, de baixo para cima. Isso foi feito pelos estudantes, pelos professores que se identificam como indígenas – porque eles enfrentam todo tipo de merda, eles são invisíveis naqueles espaços, eles tiveram que enfrentar sabe-se lá o quê para chegar até ali. Os avanços se devem a pessoas que arriscaram seus empregos para nos orientar, que arriscaram muitas coisas para que esses espaços existam. Eu fico imaginando: e se tivéssemos o mesmo apoio que o time de futebol americano tem? Como seria se tivéssemos o mesmo apoio que o pessoal da Engenharia tem? Na Engenharia, eles acabam de conseguir milhões de dólares para uma espécie de fundo – acho que 25 milhões de dólares. Para Engenharia de Petróleo, para fazer exatamente o oposto do que estamos dizendo: “Parem de perfurar nossa mãe!”. Acho que esse é o melhor exemplo de como eles não dão a mínima – um exemplo entre muitos e muitos.

Então, eu não me surpreendo com o fato de eles falarem de nós dessa maneira ofensiva, eu não fico surpresa com o fato de o número de indígenas na universidade ser pequeno. Na verdade, fico até feliz que ele esteja perto de 1%, porque costumava ser zero vírgula alguma coisa. Eu sei que eles falam em menos de 1%, mas, se fosse mais perto de zero, eles colocariam algo como “menos de 0,5%”. Há muitas coisas acontecendo fora desta instituição predominantemente branca e que estão servindo para conscientizar as pessoas – por exemplo, Standing Rock. Mas nós continuamos invisíveis, nós não estamos onde deveríamos estar. Fico tão feliz com o fato de o Dr. Luis Cárcamo-Huechante [Mapuche, do Chile] ser o diretor do NAIS. Nunca, como estudante, tive tanto apoio por parte de um professor, de um diretor de programa – nunca. Então, foi algo como: “Nossa, é assim que se sente quem é representado! É assim que outras pessoas se sentem o tempo todo”. É tão bom saber que há alguém com quem podemos conversar e que essa pessoa vai fazer o que pode. Isso não existia dez, cinco anos atrás.

Então, as coisas melhoraram, mas há muito que precisa ser feito, em nível estrutural – especialmente de cima para baixo, porque, de baixo para cima, nós podemos fazer muita coisa sem depender dessa merda toda. Porque é isto: no fim das contas, temos que assistir aulas que não foram feitas para nós, cujo currículo não nos contempla, com professores que não se identificam conosco, que não reconhecem diferentes modos de saber e de existir. As pessoas estão mais conscientes, de modo geral – ainda não é o suficiente, mas está acontecendo. Enfim, eu olho para tudo aquilo que nós temos que engolir, mas então me lembro de tudo que meus ancestrais tiveram que enfrentar: “Certo, esta é a minha batalha e eu não vou recuar”. Pois eu estou aqui porque eles não recuaram: eles fizeram o que tinham que fazer para que nós continuássemos vivendo.

Ángela – Eu já passei por situações em que as pessoas dizem coisas como: “Vocês já receberam reparações. Por que estão reclamando?”.

Marleen – Você está falando sério? Você colocou isso no papel? Eles não podem dizer isso!

Ángela – Nós estávamos fazendo um exercício sobre estratificação racial, quando um homem negro virou para mim e disse que, para a comunidade afroamericana, as coisas eram piores que para os indígenas, porque nós já recebemos reparações. Em seguida, ele falou que estava mais informado sobre história indígena do que eu: “Bom, eu li sobre o Caminho das Lágrimas [referência a uma série de remoções forçadas de povos indígenas realizadas pelo governo dos Estados Unidos na primeira metade do século 18], eu conheço alguma coisa da história indígena”. Eu disse: “Isso aconteceu com cinco nações específicas, não com o meu povo”. Quer dizer, aconteceu com o meu povo, mas não com a minha comunidade, especificamente, para que eu possa dizer que é minha história. Sim, é parte da minha história, mas eu não posso reivindicar ter sido pessoalmente afetada por esses acontecimentos. Aí, ele continou: “Bom, eu sei um monte de coisas sobre os índios, eu conheci vários índios quando fui para uma conferência”. Na hora, não tive forças para dizer tudo que deveria ter dito.

Eu sou a única pessoa do meu trabalho que se identifica como indígena – há outras pessoas de origem indígena, mas eu sou a única a me autoidentificar. Naquele caso, eu senti que precisava manter um equilíbrio entre escutar o que o homem dizia – colocando-me como aliada – e me defender. Não foram muitos os que se colocaram ao meu lado naquele caso, mas algumas mulheres negras, sim, chamando a atenção para a invisibilização que eu e os povos indígenas de todos os lugares sofremos. Eu tive que me defender, e a coisa foi ficando cada vez mais agressiva. E isso continua acontecendo… Para mim, é difícil navegar nesses lugares, porque eu não posso falar em nome de todos os indígenas, eu falo por mim, mas eu sinto que faz parte das minhas obrigações… Eu não quero que essa visão seja introjetada na comunidade aqui em Austin.

Definitivamente, houve avanços, mas é preciso avançar mais. As pessoas precisam entender que não dá para dizer essas coisas, que não dá para pensar essas coisas. Em certos espaços que eu tenho que navegar nesta instituição, tem sido muito difícil. Mas eu tenho o Dr. Cárcamo-Huechante, o Dr. Dustin Tahmahkera [professor da UT, Comanche], que se colocam e me apoiam, seja como for. Eu não quero que indígenas – especialmente, mulheres, mas todos os indígenas e, na verdade, toda e qualquer pessoa – tenham que passar por essas agressões, por algo que  de certa forma é violento, e saber que ninguém vai te defender.

Marleen – Com certeza, isso é muito violento.

Daniela – Eu tenho procurado saber mais sobre Standing Rock e muito do que li destaca o papel da juventude. Sei que Standing Rock se tornou um símbolo e que tem tido o poder de afetar outros lugares, outras lutas. E também que aquele processo acarretou a criação de uma sede do International Indigenous Youth Councilem Austin. Ao mesmo tempo, nestes meses em que estou aqui, pude ver como vocês se engajaram no powwow [evento importante do calendário indígena dos Estados Unidos, marcado por competições de dança, rituais e outras atividades] de San Marcos, no de Austin, e como mantêm relações com organizações locais, como Indigenous Culture Institute Great Promise for American Indians. Me parece que o NAIC e o NAIPA não estão trabalhando só para os estudantes indígenas, mas têm servido para conectar os universos de dentro e de fora do campus. Não sei se é desse modo que vocês veem essas organizações, mas é a impressão que eu tenho: que o papel delas não se limita à UT. Isso faz sentido?

Marleen – Isso sempre foi importante para mim, pessoalmente. Toda organização com a qual eu trabalho tem que ter um componente comunitário, o reconhecimento de que nós não andamos sozinhos. Mesmo quando achamos que estamos andando sozinhos, nossos ancestrais estão conosco – nós não fazemos nada de maneira individualista. Eu não estou aqui apenas por causa das coisas que eu fiz, mas por causa de todas as experiências, de todas as interações e relações que eu tive. Então, a importância da comunidade é enorme. Desde que o NAISA começou, desde que eu comecei a me mobilizar… Eu comecei a me mobilizar bem jovem, organizei minha primeira marcha quando tinha 14 anos, ainda na escola. A questão é sempre a seguinte: como trabalhamos juntos? Em todas as instituições em que estive, esta é a questão: como atingimos as pessoas? Como podemos construir pontes de solidariedade com a comunidade, com outros grupos marginalizados? Como fazemos as coisas acontecerem, de modo que sejam produtivas e durem? Com o NAISA, uma das nossas determinações centrais era: se fizermos um evento no campus, temos que fazer um equivalente fora do campus. Com a gente, era assim. Não sei como as coisas foram mudando, mas eu ainda vejo certo equilíbrio nesse sentido.

Quando voltei, como estudante de pós-graduação, eu não sabia como ia ser o meu tempo e como poderia ser minha militância. Mas o que eu vi aqui não me pareceu suficiente, especialmente em relação aos estudantes de pós-graduação. “Por que diabos não estamos fazendo alguma coisa?” Então, vim com a ideia de colocar um tipi [tenda indígena] no campus. Eu não vou mentir: as pessoas achavam que eu estava louca. Mas eu disse: “Esperem e verão”. Porque não era eu sozinha: era a comunidade. Procurei o povo Lipan Apache, o senhor Richard [González] – antes de chegar até ele, tive que passar por toda uma série de lideranças, que foram me conduzindo a ele, até que ele atendeu ao telefone e disse: “Deixa comigo. E vai ser de graça”. “Por que de graça?” “Porque você é da comunidade.” Claro que nós ofertamos a ele uma joia e tabaco – é uma relação de reciprocidade, você recebe e você dá, é uma troca de energias, seja qual for a forma que ela assuma. O modo como procuro me mover em meio ao privilégio que tenho de estar neste espaço é tentando estabelecer pontes em direção a outras comunidades. Nós tentamos fazer os eventos fora do horário de trabalho, sempre de graça, se possível com comida e, claro, com espaço para as crianças. Porque essas coisas são importantes – estamos falando de pessoas que trabalham o dia inteiro, de pessoas com crianças. Não estou aqui por conta própria: estou aqui porque a minha comunidade acreditou em mim e me apoiou de várias formas. Como retribuímos e como mantemos essas relações? Você tem razão: há uma ligação.

Sobre o IIYC [International Indigenous Youth Council], nós fundamos oficialmente a sede do Texas em janeiro [de 2017], depois de termos ido para Standing Rock, em novembro do ano passado. Semana que vem, completa um ano de quando fomos para Standing Rock – a gente tem se lembrado tanto disso… Sabe o que nos levou até lá? As águas desta terra. Em setembro, eu sonhei que estava com um pote de água na mão, parada ao lado de um rio congelado. Eu pegava o pote de água e despejava no rio. Tive esse sonho em setembro; em outubro, participei de um ritual, e o fogo me disse: “Aquele rio é o Missouri, em Standing Rock. Você tem que pegar água desta terra e misturar com a água de lá. Porque as águas estão conectadas em oração”. A mensagem não era: “Você tem que ir”. Era: Aságuasquerem que ir”. Nós não tínhamos dinheiro, nós não tínhamos nada. Seis de nós queriam ir, decidiram largar tudo e ir. Então, saímos em busca de contribuições, de ajuda para alugar um veículo. Mas nós não tínhamos dinheiro. Três dias antes da viagem, recebemos uma doação, de um homem chamado Walter Benjamin, com a seguinte mensagem: “Soube o que vocês estão fazendo. Fico feliz que estejam fazendo isso. Espero que isso ajude”. Era uma doação de mil dólares. Isso cobriu o veículo, o combustível e nos ajudou com a lenha. Então fomos. Adivinha o que aconteceu? Os rios se misturaram exatamente como no sonho. O rio [Missouri] estava começando a congelar, fazia frio e eu carregava um frasco de Yanawana. Então, as águas se misturaram.

Quem nos hospedou em Standing Rock foi o IIYC. Nós não tínhamos onde dormir: íamos dormir no veículo. Imagine, nós somos do Texas: não tínhamos roupa de inverno, só levamos nossas cobertinhas. “Não sei o que fazer, acho que vou vestir dez meias ao mesmo tempo, não sei.” No caminho, uma das nossas companheiras trocou mensagens com um cara de Chicago. Nós o tínhamos conhecido em um ritual em Dakota do Sul, no verão anterior. Aí ela perguntou para ele: “Você sabe onde poderíamos ficar?”. “Claro! O IIYC é maravilhoso! Vou contatar meu amigo Carlos [Terrazo] e, quando vocês estiverem lá, procurem o Carlos, procurem o IIYC, digam que são meus amigos – quando vocês chegarem lá, eu já terei falado com ele.” Chegamos lá, andamos pelo acampamento, até encontrar o tipi da IIYC. E lá estava Carlos. “Sua amiga disse que talvez pudéssemos pedir para dormir aqui…” “Claro! Não se preocupem: quanto mais gente, melhor; quanto mais gente, mais quente. Venham!” Nós ficamos com eles.

Enquanto estávamos lá com eles, sabe o que fazíamos todas as noites? Cantávamos, compartilhávamos conhecimentos, cantos, rezas, teorias, tudo. Porque, pela primeira vez nas nossas vidas, nós sentimos… Eu não sei se você está sentindo o mesmo que eu, Ángela, mas, conversando com você agora, fiquei com vontade de te conhecer melhor. A gente percebe quanta coisa temos em comum. Foi assim durante todo o tempo em que estivemos lá. Pudemos ver como eles estavam organizados e ficamos admirados com isso. No último dia, demos um pouco de Yanawana para cada um, um pouco de água – porque nós levamos a água até lá. Nós lhes demos um pouco de água e eu perguntei ao Carlos: “Como se cria uma sede do IIYC?”. Ele respondeu: “Achei que você nunca ia perguntar!”. Eu não ia perguntar, eu achava que era uma dessas coisas em que você precisa ser convidado. Naquela altura, havia uma sede em Denver, uma em Chicago e outra em Standing Rock. Ele disse: “Fiquem em contato. Continuem fazendo o trabalho que vocês já vêm fazendo”. Porque nós estávamos lutando pelas águas aqui havia anos.

O IIYC está acontecendo. Standing Rock está acontecendo. Há gerações. Eu sinto que, agora, ele se tornou um símbolo da unificação das lutas, de unificação das rezas, de unificação… “Caramba, você está vendo o mesmo que eu? Lá na Austrália? Você está vendo o mesmo que eu aí do Canadá?” Foi algo como: “Nossa, nós todos estamos tendo a mesma visão!”. E o que nós víamos? A água. O elemento que nos dá vida, o primeiro elemento com o qual nos conectamos na barriga das nossas mães. Esse lindo elemento foi o que nos reuniu. Como eu disse, as pessoas já vinham fazendo isso desde sempre. E Standing Rock se tornou uma visão de unificação. Esse efeito de multiplicação é aquilo de que você está falando. Quando [as forças de repressão] atearam fogo ao acampamento, um dos anciões disse, olhando para as chamas: “Se ao menos eles soubessem que o que fizeram agora foi espalhar o fogo…”. Isso significa que todas as pessoas que chegaram a Standing Rock, não apenas fisicamente – porque você pode chegar a um lugar sem sair fisicamente de onde está, não estamos falando da noção ocidental de “chegar” –, qualquer um que se solidarizou, que mandou boas vibrações, que enviou doações, que fez o que quer que fosse para chegar lá, em troca, levou cura para casa.

Nós estamos nos organizamos de outros modos agora. Há mais processos de organização em marcos de descolonização, por causa de Standing Rock. Muitas coisas boas vieram de lá, sabe? Então, em janeiro, nós criamos a sede do IIYC no Texas. Estamos conectados a todas as outras sedes do país, de toda parte – esperamos nos tornar mais internacionais, começando pelo México. As seis pessoas que foram para Standing Rock se tornaram, de certa forma, o núcleo duro do IIYC Texas. De janeiro até agora, estivemos pensando em como nos tornarmos uma organização em maior escala. Estamos refletindo sobre como envolver mais membros. Mas seguimos muito cuidadosos, porque sempre há pessoas com más intenções. Estamos discutindo todas essas camadas: como você protege esses conhecimentos e esses modos de ser e, ao mesmo tempo, se abre para pessoas que estão tentando aprender, pessoas que estão tentando se curar e crescer. Quatro de nós somos daqui da UT. E foi assim que a IIYC se envolveu com o campus. Não é uma organização estudantil oficial, um espaço institucional. Por isso, ela tem muito mais margem para ser radical, em certo sentido, e pode construir laços de solidariedade com o NAIC e o NAIPA, estendendo mais uma ponte para a comunidade. Não sei se respondi.

Daniela – Sem dúvida. Eu queria continuar conversando por horas. Muito do que vocês falaram se comunica diretamente com processos de luta que estão acontecendo no Brasil.

Marleen – Posso te contar uma história que eu escutei? Em abril do ano passado, sete jovens pediram a um ancião para erguerem uma tenda para a realização de ritos de purificação. Ali, eles rezaram para que as pessoas escutassem o chamado, para que as pessoas fossem a Standing Rock, fossem para aquela terra e ouvissem a mensagem que eles tinham sobre a água. Sete jovens. E eles começarem a realizar os rituais naquela tenda regularmente. De abril a novembro. Quando nós estivemos lá, em novembro, havia mais de dez mil pessoas. Eu queria compartilhar isso. Aqueles sete são os fundadores do IIYC. Isso dá uma ideia do poder da juventude, sabe? O poder da reza, o poder dos conhecimentos e rituais intergeracionais.

Foto das entrevistadas: Daniela Alarcon

Fotos de Standing Rock: Marleen Villanueva

Maria Galindo

María Galindo é uma militante anarcofeminista, psicóloga, locutora de radio e já foi apresentadora de TV. Fundou o movimento feminista Mujeres Creando na Bolívia, uma associação de mulheres de diferentes identidades sexuais, classes e condições para enfrentar o machismo e a homofobia. Suas ações performáticas chegaram a levá-la diversas vezes à prisão.  Autora dos livros: No se puede Descolonizar sin Despatriarcalizar, 2013 e (com Sonia Sánchez); Ninguna mujer nace para puta, Edición ilustrada de Lavaca Editora, 2007.

Mujeres Creando é um movimento feminista anarquista que já existe há mais de 20 anos. Reúne mulheres de diferentes setores sociais, diferentes idades, diferentes culturas, diferentes opções sexuais e que se encontram em diferentes momentos existenciais.

Entrevista realizada na Casa do Povo, na cidade de São Paulo. Com apoio do PACA (Programa de Ações Culturais Autônomas), que organizou a visita de Maria Galindo a São Paulo.

Conta um pouquinho sobre o Mujeres Creando, a ação do movimento, como começou… A atuação política de vocês…

Claro! Mujeres Creando é um movimento de mulheres feministas. Nós temos uma visão anarquista do poder e somos autônomas com relação aos partidos políticos, às igrejas, às ONGs e a qualquer governo, de esquerda ou de direita. Não é que somos autônomas em relação a um governo de direita, mas não em relação a um governo de esquerda… Nós reivindicamos a necessidade histórica da autonomia política do feminismo em relação a qualquer governo. Lutamos muitos anos com diferentes instrumentos e de diferentes formas, pois o movimento passou por uma longa história, mas, basicamente, reivindicamos a necessidade de construir um movimento feminista heterogêneo. Essa homogeneidade dentro do feminismo latino-americano, em geral, de mulheres jovens brancas, profissionais, de classe média, é uma homogeneidade que nos entedia, que nos incomoda e que não nos interessa. Então nós construímos um movimento que cultiva as alianças insólitas, quer dizer, formas de aliança política entre mulheres com quem é proibido fazer aliança. Temos uma metáfora muito interessante: somos índias, putas e lésbicas, juntas, revoltadas e “hermanadas”. Isso expressa o tipo de aliança que Mujeres Creando constrói no interior do movimento. E não é só uma metáfora, é uma realidade, as pessoas mais novas no movimento devem ter ao redor de 18, 19 anos e as pessoas mais velhas devem ter ao redor dos 70, temos companheiras lésbicas, não lésbicas, um pouco de tudo, e também diferentes mundos sociais: há mulheres intelectuais, profissionais, como também há mulheres desempregadas, autodidatas. Defendemos que o cenário político mais importante para o feminismo é a rua e trabalhamos partindo da rua. Nós convertemos a rua, fizemos da rua nosso fórum político principal, e por isso nossa ressonância é muito forte na Bolívia. Porque não é uma voz emprestada que temos, não é um espaço emprestado, não é através do parlamento ou através das leis ou através dos meios de comunicação. Não, é através da rua. Há um conceito interessante que criamos que é o da “política concreta”. Várias de nós vínhamos da esquerda e questionávamos muito o fato de que os diferentes movimentos, seja ecologista, seja feminista, sejam outros movimentos de esquerda, são movimentos muito discursivos, poucos movimentos souberam traduzir o discurso em forma de prática concreta, então nós trabalhamos com o conceito de “política concreta”: oferecer serviços às mulheres sem despolitizar esses serviços. Oferecemos serviços a partir de uma visão feminista, mas sem a gente se institucionalizar, essa é a política concreta.

Por exemplo?

Por exemplo, lutamos contra a usura bancária. Na Bolívia, não sei como acontece aqui, mas lá o desemprego atinge as mulheres de forma massiva. Então, cada mulher desempregada, no lugar de buscar um trabalho que nunca vai encontrar, o que ela faz é pegar um empréstimo. E quando não podem pagar esse empréstimo, fazem outro empréstimo para pagar. E isso vira um processo de sobre-endividamento aterrorizante, uma forma de usura bancária muito forte porque as instituições bancárias sabem, conhecem a situação dessas mulheres e as pressionam muito. Nós temos gerado, então, outras formas de negociação com o banco, nas quais nos colocamos do lado dessas mulheres. É um serviço concreto, de política concreta anti-neoliberal. Tem ainda a questão da violência machista. Trabalhamos muito com ação direta, no caso da violência machista. Tudo isso se aglutina dentro do conceito de política concreta, que é uma forma de aliança, podemos chamar assim, ou de vínculos, estabelecer relação com amplos setores, setores massivos da população, mas não através da ideologia, e sim por meio de serviços.

Assim vocês conseguem quebrar essas barreiras entre diferentes tipos de mulheres, de classes sociais diferentes? Porque essas barreiras são reais… Como quebrá-las?

São reais! Quebramos pela luta, pela luta concreta. Por exemplo, vou te contar. Nós somos totalmente anti-institucionais, mas formamos uma associação muito grande de mulheres em situação de prostituição que estão definindo o prostíbulo como cooperativa. Nesse caso, já não é o proxeneta que é dono do prostíbulo, mas elas mesmas. Essas mulheres aliadas, às vezes três ou quatro, são pequenos grupos, mas aliadas montam pequenos prostíbulos. Fizemos, então, uma associação de prostíbulos e, como elas querem ser clandestinas, nós emprestamos nosso nome legal. Essas são coisas concretas, há também a questão do feminicídio, que na Bolívia é muito forte, e nós vamos através dessas lutas construindo alianças.

No Brasil há instituições pelos direitos das mulheres, mas a luta feminista propriamente dita, os grupos feministas, aumentaram bem recentemente…

Sabe o que aconteceu? E eu acho que em toda América Latina, o feminismo sofreu, nos anos 80 ou 90, um forte processo de “ONGuização”. As ONGs substituíram o movimento, suplantaram o movimento e terminaram estrangulando e fazendo desaparecer o movimento feminista. Essas ONGs se transformaram em instituições que ofereciam serviços, mas com relações hierárquicas verticais, clientelistas, colocada a serviço de uma agenda política internacional que era totalmente neoliberal. Então as feministas deixaram de ser feministas e se transformaram em funcionárias das instituições, com um trabalho de oito horas, com um escritório: você está daquele lado e eu estou deste lado. Foi aí que a agenda política feminista desapareceu e apareceu, no lugar, uma agenda de gênero neoliberal. Isso aconteceu em toda a América Latina. Desde o principio, Mujeres Creando foi muito clara ao questionar tudo isso. Questionamos a forma como, a partir da categoria de gênero, se fez uso do potencial e das necessidades das mulheres para salvar, ou melhor, para gerar um colchão social para o neoliberalismo. Porque claro, com o neoliberalismo há níveis de desemprego muito grandes, aí que se dá todo o ajuste estrutural, então era preciso um grupo humano capaz de se sacrificar mais do que o conjunto dos trabalhadores, a fim de amortecer a crise, e esse grupo humano fomos nós, as mulheres! Nós questionamos tudo isso. Neste momento estou apresentando uma tese nova, que é a tese da despatriarcalização, está no meu livro A Despatriarcar. É uma teoria que defende, de maneira muito crítica, que essa agenda de inclusão não roube o conteúdo subversivo do discurso feminista, que nosso horizonte de luta não seja roubado, senão para que nos organizamos? Para nos convertermos em clientes do Estado? Lei para cá, lei para lá, funcionárias públicas… Tanto que na América Latina chegamos a ter três presidentas, não é? Cristina Kirchner, Dilma Rousseff e Michelle Bachelet. E atrás delas uma grande massa de mulheres que entraram na gestão estatal e que foram totalmente absorvidas pelo caráter patriarcal do Estado.

Mas essa crítica valeria para todas as lutas das ditas “minorias”… Não poderíamos dizer o mesmo para o caso do movimento negro? Aliás, essa é uma crítica que se faz contra as cotas, que seria só para inserir no sistema neoliberal.

Olha, eu te diria que não. Não estou completamente certa porque, primeiro, nós mulheres não somos uma minoria, mesmo sendo catalogadas como uma suposta minoria, nós somos a metade da população humana, somos a outra versão do humano, não é? Então,  primeiro, não somos uma minoria e nas cotas estamos reduzidas a uma condição biológica, porque a cota não permite um imaginário político por fora do existente, senão um pertencimento ao existente, pela condição biológica de mulher. É a negação do sujeito político, das mulheres enquanto sujeito político, e eu acho que isso é grave. Eu não diria que há uma forma de crítica exata para os indígenas, para os negros, para os gays. Há um elemento comum que é o da inclusão. Você pode fazer parte do sistema, o sistema quer que você faça parte, porque quando você faz parte do sistema, se você é gay, se você é negro ou se é mulher, você fortalece o sistema, você não o debilita, pois faz parte dele, e vai ter um pensamento próprio. Essa é a crítica, denominador comum de todas essas coisas. No entanto, acho que há diferenças importantes no caso das mulheres. Primeiro, a diferença quantitativa, somos a metade da humanidade, não somos uma minoria. Segundo, acredito no feminismo como teoria política. Dentro da pluralidade dos feminismos, gerou-se uma teoria política muito importante, que não necessariamente outros sujeitos políticos desenvolveram. Uma teoria política com um potencial muito grande, então foi muito útil desvanecer, neutralizar, aniquilar, minimizar essa teoria identificando-a à mera condição biológica. Por que? Porque o feminismo é um imaginário político que trabalha o público, mas também o privado. Nem os negros, nem os indígenas, nem o mundo gay colocavam a questão do cotidiano como político, do privado como político. Esse é o potencial mais subversivo, mais importante do feminismo, isso sempre ficou de fora do imaginário patriarcal. Então neutralizar o feminismo foi uma arma importante para neutralizar todos esses outros discursos, o do negro, o do índio, o ecológico…

Aqui no Brasil, nos movimentos feministas mais recentes há uma disputa muito grande entre correntes distintas. Esse feminismo de ONGs já vemos pouco, agora existem muitos feminismos que disputam discursos. Também fazem muita coisa na rua, mas em atos, não ações contínuas. Há grande fragmentação das correntes, quem segue o feminismo radical, as teorias queer, bem fortes por aqui… De nosso ponto de vista, isso enfraquece um pouco a luta porque produz muita divisão.

Interessante o que você está dizendo. É verdade que a onda das ONGs é dos 80 e dos 90, que a essa altura está muito enfraquecida. No entanto, a agenda neoliberal de equidade de gênero segue absolutamente vigente. Nesse sentido, acho que é muito necessário continuar lembrando de onde vêm todas essas políticas de endividamento das mulheres, das mulheres como cota política, do “empoderamento” das mulheres. Tudo isso é parte das políticas neoliberais, porque o neoliberalismo na América Latina não está em crise, o neoliberalismo está absolutamente vigente. Acho que é muito necessário, portanto, continuar falando disso, pois o colchão humano do neoliberalismo é formado por nós, mulheres, nas nossas sociedades, através do trabalho precário, através das formas de busca de subsistência, etc, etc, etc…

O trabalho reprodutivo, os cuidados também…

E através da migração, que é um exílio econômico. A migração é uma expulsão. Falo sempre das exiladas do neoliberalismo. O Brasil absorve muitas exiladas bolivianas para o trabalho precário em oficinas têxteis. Esse exílio econômico das mulheres é também parte desse colchão do neoliberalismo. O neoliberalismo sempre pode baixar os custos baixando o custo da mão-de-obra e essa diminuição de custos é feita com o exílio econômico das mulheres, que estão dispostas a fazê-lo porque são as que menos têm oportunidades de trabalho em suas sociedades de origem. Tem também a questão dos cuidados que você dizia. A precarização do trabalho de cuidados, baseado na exilada do neoliberalismo, é o que permite à mulher de classe média, branca e profissional se achar emancipada, mas porque está deixando parte do trabalho dos cuidados nas mãos de uma mão-de-obra barata e sobre-explorada, que é uma mulher pertencente a outra sociedade. Uma boliviana, uma equatoriana, uma paraguaia… Então, tudo isso é muito importante porque isso vem da agenda de equidade de gêneros das organizações internacionais assumida pelas ONGs.  

Agora a respeito da movimentação queer, eu, pessoalmente, respeito muito intelectuais como Beatriz Preciado ou Judith Butler. As respeito muito como intelectuais, trazem um aporte interessante. Mas, muitas vezes, nós fomos batizadas como queer e nós não somos queer, nós somos feministas, com pensamento próprio. Muito da onda queer chega na América Latina completamente distorcida, e por que? Primeiro porque é uma teoria política sumamente complexa, que só pode ser traduzida, interpretada ou absorvida em espaços acadêmicos, os espaços acadêmicos que traduzem, lêem essa teoria são espaços de classe média e de classe média alta, não são os espaços que partem da rua, que partem da prostituição na rua, que partem do travestismo da rua de prostituição, são espaços de elite, é uma teoria política sumamente complexa, desde seu manejo de categorias. Então eu acredito que na América Latina a teoria queer em geral, na minha percepção, é uma teoria para elite a partir das elites que termina perdendo seu conteúdo subversivo e conseqüentemente com uma série de práticas que eu não as vejo como interessantes, eu, pode ser que eu me engane, eu não as percebo interessantes. A movimentação transexual na América Latina, como eu a vejo, a partir dessa movimentação que poderíamos chamar, entre aspas, “proletária”, não é uma movimentação que parte do queer, é uma movimentação a partir da discussão sobre a prostituição e sobre o corpo, que é outra coisa. Então, sobre o fenômeno queer em geral, eu acho que é preciso discuti-lo, e sobre a fragmentação e a fragilidade dos pequenos grupos, não sei, eu tenho bastante esperança. Onde há um pequeno grupo de mulheres que se organiza, que faz algo concreto, me parece ser um fenômeno interessante, porque é uma espécie de segunda, terceira, não importa, quarta, décima onda. É um renascer, é um renascer de mulheres jovens que querem fazer algo a partir de si mesmas, que não querem ser chefas, que não querem ser lideres, que não querem carregar o peso do aburguesamento de muitos feminismos, muito pesados, muito imóveis, e que sem grande bagagem, saem para fazer algo. É um principio, eu acho, fabuloso, positivo. Agora, também se corre o risco de que se está fragmentado, de que pode ser fraco e de que pode ser um entusiasmo que logo morre. Mas a principio eu o vejo muito bem.

Como podemos transitar entre uma possibilidade de feminismo mais crítico, com ações diretas partindo de fora das instituições, de fora do Estado, e um feminismo mais de dentro do cotidiano, dentro das relações cotidianas, das relações de poder cotidianas? Como podemos combinar as práticas muito radicais com práticas mais cotidianas, de mais baixa intensidade, a partir do subterrâneo? Esse conceito de subterrâneo que você cita.Não podemos pensar em algo partindo de dentro, através das brechas institucionais?

Não gosto, em geral, de pretender que temos uma receita, mas nós fazemos exatamente isso. Então, eu pessoalmente acredito que é preciso construir tecidos sociais. O que quer dizer tecidos sociais? Muitas vezes quando dizemos “movimento” de que estamos falando? Estamos falando da soma de mulheres, muitas ou poucas, que se reúnem em seu tempo livre – conseguir tempo livre é muito difícil. Enquanto as mulheres que pertencem aos setores mais altos da sociedade têm algum tempo livre, as que pertencem aos setores mais populares têm bem menos tempo livre. Então, como você constrói movimento? Penso que é preciso construir tecidos sociais mais que movimento. O que quer dizer? Gerar espaços de construção coletiva da cotidianidade. Nós, em principio, gerimos nossa cotidianidade. Não é um feminismo de fim de semana, não é um feminismo de cada 15 dias, não é um feminismo de 8 de março, de 25 de setembro. Dia 8 de março, normalmente, bebemos e dançamos e não fazemos mais nada. Mas nós gerimos um refeitório popular, gerimos uma rádio, gerimos algumas cooperativas, gerimos nossa vida cotidiana. Se você é minha companheira e está doente, eu sei disso. Gerimos uma poupança coletiva, que é uma poupança onde nós mesmas podemos nos emprestar dinheiro para saúde ou para qualquer coisa. Então estamos gerenciando até o interior de nós mesmas, produzindo um tecido social. Agora, esse é um trabalho muito duro, muito longo, não é um trabalho fácil, simples. Supõe formas de solidariedade e de conexão muito demandantes. E supõe questionamentos, por exemplo, do individualismo de cada uma. Estamos absolutamente convencidas de que esse discurso de “eu vou resolver minha moradia, minha saúde, minha educação, meu trabalho sozinha” é um discurso falso que o neoliberalismo inseriu na gente. “Se você é boa, se você é inteligente, se você é bonita, você vai resolver e se você não resolve é porque você é feia, burra, incapaz”. Ou seja, temos que lutar também contra essa noção que está fortemente inserida nas mulheres, porque tudo nos custou muito. Terminar a escola nos custou muito, conseguir um trabalho nos custou muito. Então, uma vez que você consegue algo, você defende isso fortemente. Nós estamos construindo um movimento que constrói tecidos sociais, um movimento que diz: você não vai resolver nada sozinha, não vai resolver moradia, trabalho, educação, saúde, liberdade, dignidade, felicidade. Não podem resolver sozinhas. Ou procuramos gerir esses temas coletivamente ou não vamos fazer nada que tenha alguma profundidade.

Mas como vocês conseguem construir as condições para ter essa disponibilidade? Porque é algo muito demandante mesmo e o neoliberalismo faz com que tenhamos cada vez menos tempo, menos disponibilidade para algo que não tenha “retorno”, é só trabalho!

Bom, nós fomos fazendo muito pouco a pouco, em muitos anos, buscando resquícios. Por exemplo, lembro quando começamos, eu havia voltado do exílio com um dinheiro que havia conseguido, então consegui comprar uma casa na periferia, que se tornou a casa do movimento. Com o tempo, fomos construindo pequenas cooperativas. Fazemos tudo em cooperativas, tudo o que fazemos é em cooperativas, desde o filme até os livros etc. Três companheiras se juntam em uma cooperativa e contribuem com algo para uma poupança comum. Tratamos de desburocratizar, não se institucionaliza nada e cada cooperativa vai comprando coisas que precisam. Por exemplo, temos uma cooperativa de comida muito boa que foi comprando cozinha por cozinha, ou seja, agora é uma grande cozinha, mas começou do zero, com um pequeno forno artesanal fazendo comida para as feiras e, pouco a pouco, fomos somando.

E as mulheres que têm filhos?

Há muitas mulheres que tem filhos! Questionamos a maternidade como um mandato, mas respeitamos totalmente a vida de cada uma. Então há muitas mulheres que tem filhos e também há muitas mulheres que trabalham fora, jornalistas ou advogadas etc. Em seu tempo livre, elas se somam ao movimento, mas o núcleo das mulheres do movimento é das  mulheres que fazemos cooperativas. E fazemos sempre discussão política, discussão política permanente, você não pode pertencer a um movimento se não fizer discussão política! Esse é o mecanismo para pertencer: participar de discussões políticas concretas. São 25 anos de trabalho. Começou como vocês, que estão começando com essa revista, que já tem dois números. Da revista podem passar ao papel, mas sem institucionalizar, tratando de gerar formas de economia coletiva e de gestão coletiva.

Não temos dinheiro, então às vezes temos esse problema de não ter dinheiro para fazer algo… Como é essa questão do financiamento pra vocês?

Em alguns casos, aceitamos. Nas esferas que não são autogestionárias, como nossos serviços de proteção à violência (um de La Paz e outro de Santa Cruz), as companheiras recebem um salário, porque são muitas horas de trabalho. Além disso, elas têm que ser sempre as mesmas para um bom seguimento. Para esses trabalhos optamos por usar fundos. O que é importante é que temos uma metodologia própria de trabalho.

Você pode falar um pouquinho mais sobre a situação política da Bolívia atualmente? Você disse que há uma mistificação muito grande em torno do governo Evo Morales. Há conflitos entre o governo e vocês?

O governo boliviano reivindica, faz um discurso de que gerou um modelo social que não é neoliberal, mas isso é simplesmente uma piada, uma mentira, porque na Bolívia o neoliberalismo está vigente e muito forte. Especialmente em torno do trabalho, mas também em muitas outras coisas. A educação é mercadoria, a saúde é mercadoria. Todo o discurso de direitos é absolutamente neoliberal. As formas de representação não mudaram nada. Na Bolívia o que está acontecendo é uma democracia liberal hipócrita. Hipócrita porque diz que é uma democracia participativa, plurinacional, e não é. É uma democracia liberal como sempre a conhecemos. De cara, tem a questão das mulheres. A coisa é muito complicada porque estamos diante de um governo com um perfil de muito controle sobre a sociedade. Esse é um governo que vem da esquerda, que vem dos movimentos sociais e que sabe que os movimentos sociais e o tecido social são uma força muito importante, muito poderosa. Então, um dos seus objetivos principais foi controlar, vigiar, dividir, debilitar, estar presente nos movimentos sociais, mas para cooptar todos os movimentos sociais por meio de políticas clientelistas. Nossa situação como feministas não é fácil. O governo tem um discurso extremamente machista, patriarcal. Há um movimento social muito grande que está com eles, o movimento de mulheres camponesas. Mas esse movimento, que se chama Bartolina Sisa, também está envolvido em relações muito clientelistas. Então essas companheiras são uma espécie de círculo do altar caudilhista do presidente, mas são mulheres. Então representam o apoio das mulheres camponesas indígenas, o apoio de Evo Morales. Tudo isso foi muito duro para nós, porque também tínhamos alianças importantes com mulheres Bartolinas, no entanto, perdemos essas alianças. Muitas delas abandonaram seu próprio movimento e foram fortemente hostilizadas. O espaço para um discurso feminista autônomo na Bolívia é muito difícil. Agora nós temos muita força. Há três semanas, fui citada em um julgamento e quase fui presa. A acusação era de destruição da riqueza nacional por ter feito um grafite. Foi muito divertido porque eu fui disposta a ir para a prisão, mas não se atreveram, porque daria mais força pra gente. Então, estamos resistindo, temos uma rádio que nos dá muita força, é uma rádio legal, uma rádio que não é só online é em cadeia aberta. Precisamos vender publicidade para pagar a rádio e nenhuma empresa estatal contrata publicidade conosco. Nós temos um refeitório muito eficiente e com o refeitório temos que sustentar a casa e sustentar a rádio. A ideia é asfixiar toda dissidência. “Se você não está comigo, então é de direita”. Mas essa é uma polarização absolutamente falsa! Nós questionamos as bases neoliberais do programa de governo de Evo Morales. Há um manuseio comunicacional para difamar, muito grande.

Sim, aqui acontece o mesmo. Nos interessa o discurso que vocês fazem sobre o trabalho, a visão de que o trabalho das mulheres tem uma especificidade na sociedade contemporânea que interessa ao neoliberalismo. Essa é uma visão difícil para a esquerda compreender, não? Como é o diálogo que vocês têm com os movimentos mais tradicionais de esquerda que, pelo menos na experiência daqui, não compreendem muito essas questões como tendo relação com uma outra maneira de pensar o trabalho? Para eles o trabalho é o trabalho industrial, proletário, assalariado. Não compreendem essas outras categorias.

Não, não as compreendem. Mas olha, eu vou ser bem sincera, tenho 52 anos, e acho que nós da minha geração não perdemos tempo dialogando com essa esquerda, porque é inútil (risos)! Não compreendem porque não toleram o questionamento de seus privilégios de machos. Na Bolívia, a irresponsabilidade paterna e não assumir o trabalho doméstico são instituições masculinas sagradas. Para nós é muito cansativo, mas dialogamos com a sociedade, através dos grafites, através da rádio, através das ações de rua. Por exemplo, na rádio temos uma lista de pais irresponsáveis e lemos o nome, o sobrenome, o lugar onde trabalha, um por um.

É um escracho! (risos)

Sim, é um escracho! Mas não somente proletários, tem homens que têm muito dinheiro que estão nessa lista.

Risos – Temos uns nomes pra colocar nessa lista…

Coloquem, é uma lista gratuita, as mulheres vêem e escrevem o nome. São duas listas, uma é a lista de machos violentos e a outra é a lista dos pais irresponsáveis. É muito divertido porque na programação a lista sai cinco vezes ao dia e dizemos “Atenção! Agora vem a lista de pais irresponsáveis! ”. Então ficam assim: “E agora quem está aí? ”. É muito efetiva. Tem homens, especialmente da classe média alta, banqueiros, que disseram “Por favor, estou pagando e não quero estar mais nessa lista”. Se a mulher disser “Apaguem, tirem ele”, no dia seguinte tiramos o nome. Renovamos essa lista uma vez por mês e fazemos o escracho. Causa sempre muito bom humor e, ao mesmo tempo, é efetiva.

Os homens políticos não querem ter seus nomes aí, né? Devem ter até uns de esquerda…

Então, nós com a esquerda… Olha, existem diálogos que te matam, existem diálogos que não te dizem nada, em que se perde muito tempo, existem diálogos que te cansam, existem diálogos, inclusive, que te fazem retroceder. Alguns propõem: “Não, o diálogo é importante e não sei o que”, mas nós mulheres não podemos ficar dizendo há cem anos a mesma coisa… Se vamos repetir todo o tempo a mesma coisa, vamos enlouquecer, podemos perder a vontade de pensar coisas novas, linguagens novas, frases novas e para mim isso parece muito desesperador. Por isso, há realmente alguns diálogos que exigem, de nós mulheres, repetir sempre o mesmo, e esses diálogos não valem a pena, esses diálogos não são frutíferos, são perda de energia e de tempo.

De onde vem a força para tudo isso? Para contestar as instituições, as formas de subjetividade, o individualismo, os ideais de sucesso… É uma desconstrução muito forte, não? Estava lendo no site de vocês um artigo que dizia que é preciso transformar a dor do feminicídio em uma força revolucionária… E de onde vem a alegria para fazer isso? Porque é pesado lidar com a violência contra as mulheres, a solidão, a falta de emprego, de dinheiro…

Transformar a dor do feminicídio em luta por justiça. De tudo, o mais duro é o feminicídio, pois é a morte. No ano passado mataram a filha de uma companheira nossa, e isso foi terrível. Nada foi tão doloroso quanto isso. Quero responder bem claramente ao que você disse. Não somos excepcionais. A força vem do fato de que é a nossa única possibilidade de pensar, de desfrutar, de criar e de construir algo. Quer dizer, nós mulheres não nos damos conta que solitariamente, individualmente, não temos absolutamente nenhuma possibilidade – temos a possibilidade somente de sobreviver – mas se nos unimos tudo muda. Podemos, além de sobreviver, desfrutar muito da vida, fazer coisas interessantes, pensar, isso somente construindo tecidos sociais. Então, não é um ato de renúncia, não é um ato de renúncia cristã, messiânica, missionária: “eu renuncio por ti”. Não, não é um ato de redenção de ninguém, é a única possibilidade em uma sociedade neoliberal latino-americana. Provavelmente as condições sejam igualmente duras na Europa ou outro lugar, mas não me interessa assinalar. Na América Latina nossa única possibilidade é tomar decisões radicais somando nossas forças, somando nossas inteligências, somando nossas energias, somando nossas histórias, somando nossos espaços. Você tem uma cozinha, você tem um refrigerador, você tem um espaço, então já temos algo com que começar. Você pode ir procurar por sua conta e vai ter que se inserir em estruturas sexistas, classistas, racistas. Ainda que você não seja negra, você quer ser parte de uma estrutura racista e funcionar como a branca ali? Não! Se você não quer isso, não pode se somar a essa estrutura. Eu acredito que podemos construir micro espaços diferentes. São micro espaços, mas são tão significativos porque trazem um possível.

No Rio de Janeiro tem um candidato com chances de ganhar a eleição para prefeito que é um cara que já espancou sua mulher, ex-mulher, mais de uma vez. É sabido, está nos registros policiais, todos sabem e o seu partido disse que isso é uma coisa assim: “Ah, foi uma briga normal de casais…”. Para nós é um golpe, nos sentimos justamente sem voz.

De qual partido?

Do PMDB, que é um partido horrível, reacionário fisiológico, mas é da base do governo nacional.

Na Bolívia acontece muito isso institucionalmente. Evo, por exemplo, eu recentemente escrevi um artigo dizendo que ele tem uma atitude de humilhar as mulheres e isso não é casual, é um ato de poder que todos aplaudem. Então é como uma espécie de virilidade dentro do poder. Não é algo que querem ocultar, é algo que querem mostrar. Teve o caso do estupro de uma mulher por parte de um político do MAS e ela perdeu tudo. Acho que aí nós temos que denunciar fortemente.

Há uma denúncia muito boa nesse último número da nossa revista, pois fizemos uma entrevista com Antonia Melo, que é uma das lideranças do movimento contra a Usina de Belo Monte, a usina hidrelétrica que está deslocando os indígenas no Norte. Antonia é de tradição dos movimentos camponeses de Chico Mendes, movimento que era a base do PT há tempos, quando o PT era um partido de movimentos de base. E agora, quando estava resistindo à construção de Belo Monte, ela foi falar com o Lula, e ele foi muito machista. Ela conta que o Lula a interrompeu quando começou a falar dos prejuízos que a usina de Belo Monte iria causar à população de onde ela vive, e Lula a interrompeu dizendo: “Não quero mais escutar discursos ideológicos. Isso é ideologia”. Assim! Muito forte.

Por isso fomos um dos poucos movimentos na Bolívia que disse “É preciso manter a autonomia”. Quando Evo subiu ao poder, muitos disseram “Ah, subiu, é preciso somar” e nós dissemos “temos que manter a autonomia”. Tem que manter uma distância, tem que seguir cuidando do espaço da luta social, não podemos desmontar, desarmar a luta social e nos colocarmos no governo. E nesse momento, já passados muitos anos – Evo está há dez anos, Lula também esteve por muitos anos, Chaves, todo esse processo bolivariano – pois agora fica claro que essa autonomia é valiosa. Se agora nós tivéssemos que voltar a construir um espaço que havíamos abandonado, enfraquecido, não teríamos a credibilidade para fazê-lo. Em vez disso, nós temos essa credibilidade e essa voz. Eu acredito que a autonomia do feminismo é uma necessidade histórica.

Você vê uma proximidade entre a maneira de pensar do seu movimento e a ideia de Buen Vivir?

Não. Não, justamente, eu assisti a um encontro sobre Buen Vivir, há dois dias. Nunca utilizei a categoria do Buen Vivir, porque é uma categoria artificial, é uma categoria construída pela demagogia governamental, pelo fundamentalismo indigenista e pela academia que está morrendo de tédio (risos). “Ah, isso é uma crise civilizatória tem que se apostar no Buen Vivir…”. Estou de acordo com o diagnóstico, há uma crise civilizatória, mas o capitalismo não está em crise em si mesmo porque o capitalismo está alcançando sempre processos de reciclagem. Processos de recondução de suas formas através da precarização do trabalho das mulheres, através da precarização do trabalho em geral, mas especialmente das mulheres. Isso é uma espécie de gasolina, de energia, de reserva que o neoliberalismo e o capitalismo têm de forma permanente. Os jovens, as mulheres, os exilados estrangeiros… Esses são os mecanismos para revitalizar este capitalismo, este neoliberalismo. Então até aí estou de acordo que existe a necessidade de redefinir as leituras e definir outros horizontes possíveis. E, consequentemente, considerar a crise da mudança climática, a crise ecológica que é muito grave e que é de escala mundial e planetária, até aí estou de acordo. O que não estou de acordo é que o Buen Vivir seja uma resposta possível a isso. Pois a resposta não tem que ser total, não sei se me entendem. Eu questionei muitíssimo o fato de que o marxismo se apresentou, e ainda se apresenta, como uma resposta totalizante a todos os problemas. Então há uma única resposta, que é “a resposta”, e essa resposta que é única vai conseguir definir tudo. Eu pessoalmente acredito que aí, epistemologicamente, estamos equivocados no enfoque. Não há uma resposta, há múltiplas respostas, o fundamental é que haja muitos sujeitos em luta e não um só, que pretenda instalar a norma sobre absolutamente tudo. Então, à crise civilizatória, eu acredito que a despatriarcalização é uma resposta, mas não é a única, é uma resposta que tem como ideia base a complementação com outras respostas. E no caso do Buen Vivir, acho que é um discurso bem abstrato também, que se presta a muitas formas de manipulação, de conteúdos, e é muito vago, em alguns casos até essencializado a partir do indígena, como se o indígena fosse algo que não foi colonizado, que não foi ocidentalizado, que não é também capitalista. É essencialismo e sou contra todo essencialismo, nem mulheres, nem gays, nem negros, nem indígenas… Não utilizo a categoria de Buen Vivir. Embora isso possa ser também porque eu sou boliviana e na Bolívia estamos cansados disso, ou seja, falam muito de Buen Vivir, mas como um discurso mais demagógico, muito intelectual e pouco prático.

Você acredita nós devemos mover o debate do feminismo para o centro da discussão sobre o poder? Como podemos fazer uma discussão sobre o poder a partir do feminismo, não mais como uma coisa isolada, separada, colocada nessa linguagem de gênero das organizações internacionais, mas trazer para o centro da política?

Acho que é uma pergunta muito linda. Para responder em duas partes. Primeiro, eu diria que nós abandonamos a categoria de gênero, a categoria de gênero não nos serve mais porque há muita confusão ideológica, e não é uma confusão casual. Há uma confusão ideológica deliberada em torno da categoria de gênero. Então, primeiro nós abandonamos a categoria de gênero completamente no debate social, nós participamos do debate social a partir da condição de sujeito político, as mulheres como sujeito político. Nesse momento, as mulheres estão no centro do debate porque, como sujeito político, você discute o trabalho, como sujeito político você discute a relação entre público e privado, a divisão entre público e privado. Esse é um debate bem longo, de muitos anos no feminismo, é um debate de uma longa tradição, e é um debate ainda muito útil e fecundo, porque essa dicotomia patriarcal, essa esquizofrenia entre o público e o privado, continua sendo um dos eixos do poder patriarcal, continua sendo um dos eixos principais do próprio capitalismo. Quer dizer, o capitalismo está tão forte porque está inserido da nossa vida privada, porque está inserido na nossa subjetividade, porque está inserido no desejo, por isso o capitalismo é tão forte e, evidentemente, o patriarcado também, pois o patriarcado e o capitalismo praticamente são um só. Então, esse me parece que continua sendo um debate central, a cotidianidade, a relação entre público e privado, a gestão do prazer, a gestão do tempo, a gestão do espaço, a gestão dos desejos, esse é um debate central. Não tem nada a ver com gênero. Nós estamos, podemos dizer, emancipadas de gênero há muito tempo (risos).

Bom, muito bom, foi demais pra gente, muito obrigada!

Fico muito feliz!

Antônia Melo, liderança do Movimento Xingu Vivo para Sempre

Antônia Melo da Silva é coordenadora geral do Movimento Xingu Vivo Para Sempre, que luta contra a hidrelétrica de Belo Monte. Chegou à região do Médio Xingu em meados da década de 50. Cresceu na cidade de Altamira, Pará, e acompanhou um dos momentos mais emblemáticos vividos pela Amazônia durante o período da ditadura militar brasileira: a abertura da BR-230, a Transamazônica. Hoje, à frente do Movimento Xingu Vivo Para Sempre, Antônia Melo, Melo como é chamada por lá, se vê diante de um dos momentos mais sensíveis de sua história de luta: acaba de ser expulsa da casa em que viveu por mais de 30 anos. Grande parte do registro que se segue foi feito nos dias que antecederam a sua saída.

A entrevista foi realizada, em Setembro de 2015, em Altamira (PA) por Sabrina Nascimento.

Melo, conta como você chegou aqui.

Na década de 50, meus pais, devido à seca no Ceará migraram pro Piauí. Moramos alguns anos, só lembro que eu nasci lá. Em 1953, ele recebeu o convite de um tio meu que já estava morando aqui no Xingu, em Altamira, dizendo que aqui tinha muita terra. Então viemos. Lembro que na viagem meu pai me colocou pela janela do trem. Aqui os vizinhos se juntaram e tiraram um lote pra nós. Era aqui em Altamira, perto da Bethânia. O sonho do meu pai era ter fazenda e criar muito gado e lá não dava, então fomos embora pra Conceição do Araguaia, às margens do rio. E lá ficamos morando um tempo, próximo das aldeias indígenas. Mas minha mãe chorava todo dia pra vir embora pra cá. Meu pai não conseguiu nada do que ele sonhava com as fazendas de gado, então voltamos para Altamira. Ele começou a amansar cavalos brabos e um dia foi derrubado, amputado e ficou deficiente. Os vizinhos se juntaram, fizeram a casa, fizeram a roça. E depois ele conseguiu uma prótese, fez um engenho, plantou cana, fez muita rapadura, comprou gado, fez roças de feijão, arroz, e deixou grande parte da floresta do lote em pé. Minha mãe criava muita galinha, pato. Tínhamos muito café, muito cacau. Aí a vida foi melhorando. Em 1959, fiquei internada numa escola religiosa, das freiras. Depois fui pra roça ser professora durante uns 3, 4 anos…

Em 1970, casei e vim morar aqui nesta rua. Antes da Transamazônica. Foi bem no início da década. Antes morava mais em cima, onde nasceram meus 4 filhos. Fiz o magistério e mudei pra cá. Era só uma rua cheia de mato, alagava tudo. Três anos depois, construímos essa casa de alvenaria. Fui professora durante 2 anos e já estava muito envolvida na militância, fomos nos organizando, cobrando das autoridades a melhoria das condições aqui na rua, como água e energia.

Fale um pouco do começo da organização desses movimentos aqui na região.

Então, em 1989, éramos das Comunidades Eclesiais de Base – a igreja foi uma grande força nessa luta dos povos indígenas de 1989 contra as barragens no rio Xingu. Ai, eu já participava de todos os movimentos, das reuniões, como da grande reunião no Centro Esportivo de Altamira, onde a índia Tuíra passou o facão na cara do Muniz Lopes, presidente da Eletronorte na época. Em 1990, participei do Movimento Pela Sobrevivência na Transamazônica. Nessa época, os agricultores, com a abertura da estrada, foram se organizando nas Comunidades Eclesiais de Base. Nosso slogan era assim: “Se abrir a Transamazônica foi um erro, abandoná-la é um erro bem maior”. Na década de 1990, foram chamados todos os setores do governo de Brasília para vir aqui. Fez-se uma grande articulação nacional com o poder público estadual e federal para vir aqui conversar com os Movimentos sobre as políticas públicas. Tudo foi gestado nessa época:  o hospital regional , a universidade, a melhoria nas estradas, o crédito para os agricultores, tudo foi resultado da luta iniciada nesse tempo. Criamos uma entidade jurídica pra esse grande movimento aglutinador de forças que foi chamado Fundação Viver, Produzir, Preservar (FVPP), que ainda hoje existe.

Essa região também tem um grande índice de assassinatos de lideranças.

No dia 25 de agosto de 2001, Ademir Federicci, o Dema, foi assassinado. Ele havia denunciado a retirada ilegal de madeira lá em Medicilândia, numa área indígena, e havia denunciado o cemitério de carros em Medicilândia. E também, nós do Movimento pelo Desenvolvimento da Transamazônica e do Xingu (MDTX), apoiamos a Polícia Federal, as prisões e as investigações dos envolvidos no “caso SUDAM”. Então a gente acredita que ele foi assassinado por conta desse fato. Ele já era ameaçado de morte por esse grupo da região, chamado o “consórcio da morte”. Mataram o Brasília, o Dema, e a irmã Dorothy.

Tu sofrestes ameaças de morte também?

Sofri  logo depois da morte do Dema. Eu era uma pessoa bastante marcada.  Sempre estive à frente, e todo mundo sabe disso, da luta contra os assassinatos de mulheres. Eu era conselheira municipal de direitos e depois fui conselheira tutelar. Nunca recebi ameaça direta, eram só conversas que chegavam por terceiros. Em 2000, começamos a trabalhar com as comunidades, daqui da Terra do Meio, Xingu, Iriri, Riozinho do Anfrísio (PA), para reivindicar a criação das reservas dessas áreas. Fiquei à frente desse trabalho. O processo no Xingu era muito violento, a própria polícia daqui era chamada pelos grileiros, queimavam as casas dos moradores, enfim, fizeram todo tipo de perversidade pra expulsar os moradores para se apossassem de toda aquela região… então iniciamos um processo pra dar visibilidade às violências que eles estavam sofrendo no Xingu. Eram os grileiros, os fazendeiros, os madeireiros que desciam de Goiás, do Mato Grosso, pra tentar expulsar moradores e invadir tudo.

Aí, um pistoleiro veio aqui na minha porta. Sorte que essas lideranças da associação do Riozinho do Anfrísio (PA) estavam aqui, e conheciam o cara, o pistoleiro. Eu estava no quarto, quando ele perguntou: “a dona Antônia está?”, e aí eles responderam: “não, ela não está”. Eu quase que respondo, né. Mas fiquei lá na minha, até que ele foi embora. Depois eles  me disseram: “comadre, esse era um pistoleiro”. E, só ano passado, eu soube que esse pistoleiro chamado Paraná rodou muito aqui para me matar. Então, saí da linha de frente, há muitos anos não saio à noite, nem com meus filhos, comecei a me proteger. E até hoje é assim.

E a história de Belo Monte, como ficou depois de 1989?

Nós estávamos sempre de olho na história de Belo Monte, de Kararaô. Depois de 1989, o projeto ficou meio sumido da pauta, mas a gente tinha notícias de que eles estavam trabalhando numa nova engenharia para barrar o Xingu. No final de 1999, 2000, o governo Fernando Henrique Cardoso anunciou que ia construir as barragens no Xingu com o nome de Belo Monte, propagandeando uma nova engenharia que não alagaria as terras indígenas como Kararaô, que, supostamente, teria impactos bem menores, dizendo que criariam 70 mil empregos para a região. As mesmas propagandas mentirosas de sempre. Que história era essa? O governo agora anunciava que ia fazer barragem e sequer tinha chamado a sociedade daqui, nem os indígenas, pra falar do que estava acontecendo, e já estava com o projeto em pauta, já estava chamando as universidades para fazer o EIA-RIMA. Então, nos reunimos em novembro de 2000, e criamos o Movimento Pelo Desenvolvimento da Transamazônica, já trazendo o Xingu junto. Também foi a criada uma comissão dentro do movimento para dar visibilidade ao projeto. Eu era a única mulher da comissão. Promovemos grandes debates e um grande seminário em maio de 2001. O Ministério Público, então, pegou nossas denúncias, investigou, e disse que o rio Xingu era um rio nacional e era o Ibama que deveria dar as licenças, e não a Secretaria de Meio-ambiente do estado do Pará. Todo o processo ficou embargado por ordem judicial.

E como surge o Movimento Xingu Vivo Para Sempre em meio a esses debates de resistência contra Belo Monte?

Em 2003, quando Lula assumiu a presidência, pensávamos que mesmo que esse projeto fosse uma pauta do governo, este teria algum respeito com as populações e com as leis. Aos poucos, fomos vendo que não era verdade. Quando o Lula ganhou, a primeira coisa que a Dilma, então ministra de Minas e Energia, fez foi pegar Belo Monte para negociar. Em maio de 2008, os índios Kayapó nos chamaram para fazer um grande encontro, como em 1989. Foram mais de 3 mil pessoas aqui, mais de mil indígenas, no Encontro Xingu Vivo Para Sempre. O governo não veio! Esse governo é um governo que não tem diálogo, ele tem é imposição, ele impõe! Determina ! É ditatorial ! O diálogo nunca existiu. O governo não veio e mandou um cara bastante arrogante também da Eletrobrás. Foi aquele episódio do golpe no braço dele dado pelos indígenas. A revolta dos indígenas era contra a falta de respeito. Em 2008, esse movimento (MDTX) já estava balançando porque a base do movimento regional era do Partido dos Trabalhadores. Desse grande movimento de defesa dos rios, dos povos e contra as barragens no rio Xingu, que surgiu no encontro de maio, nasceu o Movimento Xingu Vivo Para Sempre, fundado no dia 23 de maio de 2008, quando os indígenas mesmo gritaram que, a partir daquela data, ele passaria a se chamar assim. Aí, o pessoal tratou de acabar com o MDTX porque estava insuportável conviver lá na sede, já que nós éramos totalmente contra o governo, falávamos abertamente contra Belo Monte. Tivemos que sair de lá. Aí, o bispo cedeu pra nós, do Xingu Vivo, esse espaço da Prelazia. Em 2010, a gente viu que o Lula ia mesmo passar com o trator por cima da gente.

Quando foi que sentistes que não poderias contar mais com o PT e que o governo finalmente deixou claro que Belo Monte já era uma decisão tomada?

Foi numa reunião em Brasília, quando o Dom Erwin pediu pra discutir com ele, já sabendo que eles avançavam com Belo Monte sem respeito aos povos indígenas. Foram dois procuradores da República, representantes dos ribeirinhos, dos indígenas daqui, dos agricultores, Dom Erwin e eu, representando os movimento sociais. Foi quando o Lula, depois de ouvir o setor elétrico brasileiro, que estava na mesa também, e ouvir as “maravilhas” que eles disseram que iam fazer aqui (casa pra todo mundo, tirar o povo da miséria, os povos miseráveis que moravam nas palafitas etc). Quando a minha fala com o Lula começou, primeiro eu agradeci o bispo e eu disse: “Senhor Presidente, primeiro eu queria dizer que o projeto habitacional, a moradia está garantida na Constituição, é um DIREITO do cidadão e um DEVER do Estado…” Ele não deixou nem que eu terminasse de dizer a palavra “Estado”, e me repreendeu com muita raiva e disse: “Olhe, senhora! Não me venha com ideologias, não!” E com muita raiva mesmo. Aí eu quis reagir, mas pensei que era melhor não, em respeito ao bispo. Aí o Dr. Felício (do Ministério Público Federal) disse :“Não, não, Sr. Presidente, ela está dizendo que a questão da moradia é uma questão que está garantida na lei”. Eu percebi naquela hora que ele era muito ditador, que ele não aceitava críticas, ele deveria pelo menos ter respeitado a minha fala para que depois falar o que ele quisesse. Se ele quisesse me questionar, ele tinha que ter me escutado. Porque realmente todos que estavam na mesa eram homens, só tinha eu de mulher. O setor elétrico estava todo lá, toda a macharada’ arrogante, prepotente.

Fostes a única que ele interrompeu?

Foi. Ele chamou a minha fala de “fala de ideologia”. Se não fosse o Dom Erwin, eu teria me levantado e dito um palavrão, chamado ele de mal educado, de arrogante, de ditador e teria dito: “agora isso que eu estou falando em defesa dos direitos é ideologia, mas vocês do PT me ensinaram, há muitos anos, que a gente tem que lutar sim! Que política pública, que direito, que isso está na Constituição, e que a gente não tem que negociar, a gente exige o que é um direito nosso. E agora você vai querer trocar o direito de moradia da população por Belo Monte?”. Queria dizer um monte de coisa para ele. Aí, ele disse para o D. Erwin: “É, Dom Erwin, quero ver todo esse projeto de Belo Monte, porque se não for viável, o governo não vai enfiar goela abaixo”. Aí, terminou a reunião, fui arrumar os papéis que a gente tinha levado, um dossiê enorme que tínhamos preparado, eu acho que ele fez foi queimar aquilo tudo. Aí depois, na hora da foto, eu disse: “eu não vou tirar foto nenhuma com esse desgraçado”.

Dom Erwin me disse que, naquele momento, era como se tu tivesses tido uma intuição em relaçãà Belo Monte e ao presidente Lula.

É, a própria postura do presidente de não querer me ouvir, de me repreender, isso me machucou bastante. E eu não tive mais como acreditar, como dar nenhuma credibilidade àquele homem, àquela autoridade. Senti como se fosse mesmo uma agressão física. Na verdade, foi uma agressão física e psicológica muito grave para mim da qual nunca mais esqueci. Uma agressão de um poder machista, autoritário e opressor! E eu tiro foto com uma pessoa querida porque eu vou guardar, porque é uma lembrança que faz parte da minha vida, com uma pessoa que eu quero bem, que gosto e em quem confio e que eu posso colocar na minha história. Então, eu não tinha porque tirar foto com ele pois, a partir daquele momento, ele já não fazia mais parte da minha história de vida, dos meus conceitos… eu não ia, jamais, me sentir bem quando eu olhasse para aquela foto já que eu ia estar lembrando do episódio de machismo que ele fez comigo. Para mim ficou muito claro ali que tudo o que nós falamos ele ia jogar no lixo, porque ele não tinha considerado nenhuma vírgula, porque se ele fosse considerar, por mais que ele não tivesse gostado, ele iria escutar primeiro e me dar uma resposta educada. Mas entendi que ele ia empurrar goela abaixo sim, e que eles iriam fazer Belo Monte como estão fazendo. Tudo o que Lula e Dilma falaram não passou de enganação e falta de respeito. Isso aí, está claro. Eles não querem ser interrompidos, não querem ouvir a verdade, não querem ouvir nada da realidade desse projeto.

Foto: Sabrina Nascimento

Fostes filiada ao PT…

Fui, durante muitos anos. Nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBS) nos orientavam de que os militantes tinham que estar filados a um partido, que era o caminho para se conseguir a justiça. Aí me filiei ao PT. Fui candidata 3 vezes nesse partido, perdi um pouco do que eu quase não tinha, queimei meus braços fazendo campanha pra esse partido covarde, traidor… Saí em 2009, eu acho.

E quanto à divisão que ocorreu nos movimentos sociais na luta contra Belo Monte, entre os que apoiavam Belo Monte e o governo, e os que os contestavam?

Ficou insuportável, tanto é que, quando o Lula veio, fomos entrar no estádio onde ele estava. Tinha um cordão enorme de polícia e os próprios companheiros que antes levantavam a bandeira contra Belo Monte estavam com um crachá do governo proibindo nossa entrada. Alguns conseguiram entrar. O Lula foi muito ruim, chamou a juventude de mal-informada, dizendo que ele, quando era jovem, também tinha lutado contra a barragem de Itaipu e que hoje ele via que era uma grande obra para o país, um desenvolvimento espetacular. E que essa juventude que estava lá naquele dia, levantando bandeira, dizendo não a Belo Monte, era desinformada, precisava se informar. Disse um monte de coisa assim. E a Ana Júlia, então governadora, naquele discurso da direita – porque eles são da direita   –  disse que só os que não querem o progresso são contra Belo Monte.

E sobre a forte organização das mulheres aqui da região nas lutas sociais. A partir de que momento essa organização passa a se destacar e ganhar importância?

Na década de 1970-80, as mulheres já participavam de todas as lutas e das decisões. Mas era muito violenta a situação delas aqui, com muitos assassinatos, principalmente aqui em Altamira. Aí nós juntamos um grupo das mulheres das Comunidades Eclesiais de Base e discutimos a situação, e decidimos fundar um Movimento de Mulheres, para fortalecer a luta contra a violência e a impunidade e por justiça. E aí, em 8 de março de 1991, fundamos esse movimento junto com as mulheres de Brasil Novo (Transamazônica – PA), chamado Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Altamira Campo e Cidade. Pela primeira vez, saímos às ruas pra militar contra a violência, a impunidade e pedindo justiça. Era um total de 80 pessoas, a maioria mulheres e alguns homens.

Como foi essa organização e o que era reivindicado?

Havia também o sumiço dos meninos de Altamira, que apareciam depois assassinados, conhecido como o “caso dos emasculados”. Nessa mesma época foi aprovado o Estatuto da Criança e do Adolescente. Então, lutamos, ao mesmo tempo, para fundar um movimento de fortalecimento da luta contra a violência e pelos direitos das mulheres; e para fortalecer a luta contra os assassinatos das crianças. E criamos o primeiro Conselho Municipal dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes e lutamos logo depois pela criação do Conselho Tutelar. Participei de todos esses conselhos, além de ter sido a primeira coordenadora do Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Altamira Campo e Cidade. Eu não vim com experiência de nada, mas tive que enfrentar com coragem, sendo ajudada pelas outras, para que a gente tivesse uma direção de fortalecimento de luta. Ficamos nessas linhas de frente com o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, com o Conselho Tutelar e o Movimento de Mulheres, junto ainda ao grande Movimento Regional pela Sobrevivência na Transamazônica. Com isso, conseguimos pôr na cadeia os assassinos das mulheres que estavam impunes, aqueles que não fugiram. Nós brigamos muito, fomos pra rua, e cobramos justiça das autoridades.

Quais eram as maiores queixas das mulheres?

A violência doméstica era a mais forte, era ex-marido, era namorado, ex-namorado que matava… Os índices eram altos demais. Principalmente em Altamira, porque não existia nenhuma penalidade. A polícia naqueles tempos, e hoje ainda, era uma polícia de formação altamente arcaica, machista, do tipo: “mulher que trai o homem, a recompensa dela é a morte, é ser assassinada, sofrer todo tipo de violência para não manchar a honra dos homens”. A polícia, nessa época, era mesmo educada nesse sentido e os juízes também. Por isso, matar mulher por traição era comum, ou ao menos se o homem desconfiasse que fora traído, já era motivo para assassinar. Então, conseguimos fazer essas denúncias também fora daqui, e até internacionalmente.

Como te sentes enquanto mulher, diante de tudo isso ? Hoje no Xingu Vivo a presença feminina é uma das mais importantes e acredito que sempre foi.

Como eu disse, dentro das ações e das lutas aqui da região da Transamazônica e Xingu, desde a década de 1960-70, as mulheres já tinham um papel fundamental. Época em que elas se reuniam no clube de mães para um trabalho mais assistencial das pessoas doentes, mais pobres, e tinha também a medicina caseira com a qual elas trabalhavam bastante. Em 1980, já com a Transamazônica, as mulheres deram continuidade a essa organização, a esse “se juntar”, nas comunidades, tanto na cidade, como na área rural, para discutir e se aliar à luta dos homens nos sindicatos e pelas políticas públicas, principalmente saúde e educação e melhoria das estradas e crédito. E aí, na época da formação do Movimento de Sobrevivência na Transamazônica, as mulheres rurais já conseguiram espaço dentro dos sindicatos, que antes eram só dos maridos, como organização, como direito de se organizar enquanto mulher trabalhadora rural. E começaram a ajudar nas proposições da luta por políticas públicas. Na luta contra Belo Monte, as mulheres foram muitas e tiveram um papel muito importante na parte da mobilização contra as barragens no Xingu e em apoio aos povos indígenas. Afirmo que sempre quem ficou mais à frente dessa luta contra Belo Monte foi o movimento de mulheres. Fizemos grande encontros, debates, enfim, muita coisa aqui, as barragens sempre foram um assunto da nossa pauta, uma preocupação nossa, porque tínhamos certeza que íamos perder muito e ser extremamente afetadas e perder nosso chão… é como eu digo, eu tinha planos de um futuro, hoje eu não tenho mais, está tudo muito obscuro sobre o que pode acontecer, porque o que está acontecendo com certeza é um terror, é um impacto de terror, um terrorismo contra a vida da gente…E Belo Monte é uma violência tremenda, a gente está perdendo o chão que a gente pisava, a casa que a gente vivia, a gente está perdendo parte da vida. Belo Monte está tirando um pedaço de mim, eu não sou mais a mesma, tudo está muito diferente. Então é uma grande violência, uma violência silenciosa, uma violência psicológica, física, econômica, social e ambiental. Eu não tenho nem palavras pra dizer o que eu sinto agora com Belo Monte…

Quanto ao tom que as mulheres dãà luta ?

A mulher tem uma percepção bem diferente da do homem. A mulher se apega ao cuidado com as plantas, com o redor de sua casa, da sua moradia… o cuidado com as árvores, com o meio-ambiente, com a chuva, quando vai chover as plantas que precisam de água, enfim, com os filhos que nascem ali, que constroem juntos essa história, do crescer das plantas, do crescer dos animais, do cultivar o roçado, do cultivar as frutas. Tudo isso faz parte de uma “pertença” (apego) da vida da mulher. Enquanto os homens não, eles tem uma outra percepção, eles não têm, na sua grande maioria, essa “pertença” que sai de dentro de si, é mais um projeto de vida. A mulher tem essa coisa da pertença muito ligada ao nascimento, ao crescimento e ao cuidado com a vida. Mas nem todas as mulheres, né, porque a Dilma é a mulher que está mandando destruir tudo. No caso do poder nas mãos de uma mulher como a Dilma, está claro pra nós que ela tem uma visão masculinizada, machista, tanto em relação ao poder econômico, o capital, quanto ao apego, a pertença de estar no poder, de estar mandando, determinando.

Melo, e sobre a tua expulsão provocada por Belo Monte, tu queres comentar alguma coisa?

Esse episódio de ter que sair da minha casa onde eu vivi mais de 30 anos, onde cresceram  os meus filhos… eu nunca tive a intenção de sair de casa, e ser expulsa compulsoriamente por Belo Monte, pela Norte Energia, isso é muito cruel. Estou mesmo sendo arrancada na marra, à força, sem dó e sem pena. Porque é assim, embora a empresa tenha me indenizado, dinheiro nenhum do mundo paga isso, porque minha casa não estava à venda. E de uma coisa eu sei: expulsaram a gente daqui pra fazer uma limpeza social, como se nós fossemos lixo, meros objetos descartáveis. Então, o sentimento de deixar a minha casa, toda essa beleza verde, é uma coisa muito triste, muito ruim… Mas tenho uma certeza: a memória de tudo isso, da minha vida toda, de mais de 30 anos morando aqui nesse local, construindo tudo isso que construí com meus filhos e filhas, com minha vizinhança, eles jamais vão conseguir destruir. Essa memória vai comigo, vai com meus filhos, vai com minha vizinhança, eles nunca vão conseguir destruir. E tudo isso que está acontecendo vai ser sempre falado, denunciado em todos os lugares em que eu estiver!

‍Foto: Sabrina Nascimento

Muito obrigada por esse momento incrível. Deixo o final da entrevista para umaúltima fala tua…

Eu quero fazer um apelo às pessoas, um convite às pessoas a refletirem, principalmente as mulheres, a refletirem sobre seus modos de vida. O que é que está acontecendo? O que é que está por trás desses projetos que destroem a vida? E desses projetos como os do PAC que agora estão nas mãos de uma mulher: é esse o papel de uma mulher que assume o poder? O que você sente vendo uma mulher como a Dilma fazendo esses projetos de destruição da vida? Então, queria que todos refletissem qual é o modelo de poder e como nós, mulheres, poderemos construir um poder de vida, um poder de acolhida, um poder de respeito aos direitos humanos, um poder, acima de tudo, que gere vida e não que gere morte. Que legado nós estamos deixando? São coisas muito graves que esses projetos desenvolvimentistas estão trazendo de destruição da vida humana, da destruição ambiental, porque o meio-ambiente, as florestas, os rios, as águas são nossa vida. E se isso está sendo destruído, nossa vida também está sendo destruída, assim dizia a irmã Dorothy e é verdade: o fim da floresta é o fim da nossa vida, o fim dos nossos rios, o barramento dos nossos rios é o fim também das nossas vidas. Então, faço um apelo para que nós nos juntemos nessa ótica da verdade, dos direitos e do respeito, não de apoiar partido A, B ou C. E também para todos, principalmente as universidades que ainda estão muito dentro de seus muros, que saiam, que contribuam para sociedade, com o fortalecimento das organizações da sociedade em geral, para que nós paremos esses projetos de morte a exemplo de Belo Monte. E dizer que a natureza nos dá tantas formas pra viver e viver com qualidade sem destruir e que nós não aproveitamos. Nós nem olhamos pra isso! E a sociedade como um todo, nós temos que mudar de vida, questionar o consumo, e não temos mais como continuar aceitando esses modelos, esses projetos de desenvolvimento e continuar a destruir toda a vida. Então é hora de mudar, não tem mais como continuarmos, temos que dar um basta a tudo isso que faz sofrer, que mata, que destrói a vida. Quero dizer que nós nem precisamos construir nada de novo, os indígenas já têm um projeto, os ribeirinhos já têm um projeto, é só parar, olhar, refletir e agir.

[1] Nos anos 2000 a 2002, uma série de acusações de desvio de recursos e corrupção envolvendo dirigentes da SUDAM e o então senador Jader Barbalho (PMDB-PA) levaram ao fechamento da SUDAM. Barbalho renunciou ao cargo em 2000, mas foi novamente eleito deputado em 2002, 2006 e senador em 2010.  
[2] Belo Monte é um remodelamento do projeto de Kararaô, concebido nos anos 1970 sob a ditadura militar, que previa a construção de seis grandes usinas ao longo do rio Xingu.
[3] Estudo de Impacto Ambiental – Relatório de Impacto Ambiental.
[4] Em 20 de maio de 2008, o engenheiro da Eletronorte foi agredido por indígenas kayapó durante reunião do Encontro Xingu Vivo para Sempre.
[5] Dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu e presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
[6] Entre 1989 e 1993, inúmeros meninos foram assassinados e emasculados  em Altamira.

Entrevista com Isabelle Stengers e Vinciane Despret

“Faire des histoires” é uma expressão difícil de ser traduzida para o português. No uso coloquial, quer dizer criar caso, criar problema onde não tem, implicar, encher o saco, pegar no pé. Um pai pode dizer para o filho: pare de “faire des histoires!”, se o filho estiver fazendo birra, gritando, rolando no chão. Um homem diz para a mulher: não invente histórias, não crie caso, pare de reclamar à toa! No livro de Vinciane Despret e Isabelle Stengers, Les faiseuses d’histoires, a expressão remete ao papel das mulheres na universidade e a todas as pequenas diferenças em relação às posições ocupadas pelas mulheres: ao fato de que não chegar ao topo da carreira se deve, em muitos casos, a uma repartição desigual das tarefas familiares, à opção de ter ou não filhos, por exemplo. A inspiração vem de Virginia Woolf, que sempre desconfiou da oferta feita às mulheres para que entrassem na universidade: não devemos, dizia Woolf, engrossar essas fileiras de homens cultos, cheios de honras e responsabilidades. A universidade diz para as mulheres: vocês são bem-vindas, pois este é um espaço democrático, mas desde que não criem problema, não criem caso com essas questões menores (vous êtes les bienvenues à condition de ne pas faire des histoires…). No livro, as autoras transformam esse lugar, designando-se como as “fazedoras de histórias”, “as criadoras de caso, de situações”, o que pode ter um papel afirmativo como constituição de um novo lugar, uma nova relação com o pensamento: o que as mulheres fazem com o pensamento?

DR – Bonjour! Essa entrevista é sobre mulheres e política. Aqui no Brasil, desde as manifestações de junho de 2013 até recentemente, no período da Copa do Mundo, experimentamos algumas dificuldades em criar uma continuidade para os movimentos. Nessas manifestações, além dos movimentos organizados, estavam presentes também muitos outros sujeitos, que não pertenciam a nenhuma organização política. Em seguida, nas tentativas de organização que surgiram dali, tornou-se um problema a quantidade de disputas, de brigas. Nesse cenário, experimentamos algumas dificuldades, que acabamos associando à posição das mulheres. Acabou que nós, que nunca fomos feministas, de repente tivemos esta ideia de fazer uma revista só com mulheres. Porque começamos a sentir dificuldade em discutir política com homens.

VD – Concretamente, que dificuldades eram essas? 

DR – Eles parecem dar lição o tempo todo.  Se você concorda tudo bem, mas se quer colocar um ponto que não está na pauta, não prestam atenção.

VD – Não há como discutir… 

DR – E tem todo o lado afetivo, que queríamos colocar em certo momento… Por exemplo, houve uma grande repressão aos protestos durante e depois da Copa, com pessoas presas, e quisemos escrever uma carta para a Dilma [Roussef]. Queríamos adotar um tom mais afetivo. Para a gente, a questão do tom era importante. Escrevemos a carta, circulou muito, achamos que até a Dilma leu, mesmo que não tenha respondido. Mas, durante o processo, foi difícil dar um tom afetivo à tal carta. Escrevemos junto com homens que partilhavam totalmente da nossa posição política, mas não eram sensíveis à questão do tom.  

VD – Quais eram os argumentos para recusar o tom afetivo? Chegaram a dizer “não, não podemos falar assim”? 

DR – Não exatamente, mas disseram que não teria efeito político se não fosse mais argumentativa. Se não trouxesse um discurso mais sólido.

VD – Sim, isso pra eles não tem efeito pragmático. O argumento é “falar afetivamente não tem efeito político”. 

DR – Isso mesmo, é preciso explicar, dar “argumentos”, mobilizar “a história” ou “a teoria”. 

IS – Como se as manifestações que permitiram que muitos homens teorizassem sobre elas não tivessem sido afetivas… 

VD – Ou talvez haja uma separação. Para a manifestação é o gesto do corpo. Depois se racionaliza. 

DR – E não foi só aí, experimentamos a mesma dificuldade em outros grupos. Então decidimos criar um grupo de mulheres e fazer uma revista chamada DR, que quer dizer “discutir a relação”. Se há um problema no casal, por exemplo, e se quisermos discutir a relação, isso costuma ser mal visto pelos homens. Eles dizem “ah! Lá vêm essas mulheres querendo discutir a relação”, “Que chatas…”

IS – Achei o Brasil mais machista que outros países. Na Europa não se ousaria dizer “ah, as mulheres”, talvez entre homens, mas nunca na frente de outras mulheres.

VD – O machismo, no nosso caso, passaria por questões acadêmicas. A diferença também seria ressaltada, mas não com um homem dizendo “ah, as mulheres”, pois os poderes se deslocaram. Por outro lado, seria ainda mais forte nas questões acadêmicas, porque um homem diria “academicamente não se pode escrever assim”. Nesse caso, lida-se com uma força ainda maior pois se trata da exclusão produzida pelo bom academicismo.

DR – Então, uma de nossas inspirações para pensar esse problema é o livro de vocês, Les faiseuses d’histoires – que font les femmes à la pensée?[1]. Agora surge a questão sobre os modos de se discutir e de se fazer política, depois de todos os movimentos que ocorreram no Brasil. Fazer política como universitárias, mas fora da academia. Não conseguimos mais fazer nosso trabalho do mesmo modo que antes. Achamos uma excelente ocasião que a primeira entrevista seja com vocês… 

IS – Vamos em frente! 

DR – Passemos às perguntas então. Até que ponto, o fato de sentirmo-nos solicitadas pela necessidade de prestar atenção ao “modo de dizer” em um discurso político significaria “ocupar um lugar de mulher”? Para nós, não basta que um discurso político seja justo para que mobilize o engajamento de todo mundo, é preciso também um trabalho sobre o tom, sobre os modos de dizer. Mas como conseguir o reconhecimento de que essa é uma questão política em si? Essa dificuldade nos parece ligada a uma longa tradição na qual a discussão política é uma atividade reservada aos homens.  

VD – Eu começaria assim, mas é realmente uma maneira de começar pelo exterior. A reflexão sobre o modo de interpelar o outro é uma discussão psicológica ou uma discussão política? Começaria por aí. Se a psicologia se apropriou das emoções, por exemplo, e dos modos de afetar, de sentir, de expressar, ela moldou os modos de ser do povo que se expressam nas manifestações e nas revoltas. Os “homens civilizados”[2]  se expressam através de uma racionalidade sobre a qual, invariavelmente, todo mundo deveria estar de acordo, pois todo mundo é racionalizado. De um lado, isso é um pensamento masculino, pois a psicologia segue com “os homens veem de marte e as mulheres de vênus”. Quero dizer, mesmo na Europa, supõe-se que ninguém use argumentos machistas, mas ainda devemos nos submeter aos discursos sobre um estilo. Nas revistas pretensamente emancipadoras femininas, ainda há “as mulheres são mais sensíveis” ou “as mulheres pensam mais em um discurso afetivo”, o que é muito perigoso de dizer, pois se se faz disso uma psicologia, torna-se uma maneira de desvalorizar e de dar razão aos que detém a racionalidade. Então, como tomar um discurso afetivo para fazer dele um discurso? Não um discurso afetivo, um discurso sobre a afetividade, sobre o corpo, sobre os modos de fazer, de maneira que isso se torne um modo político de engajamento? É a primeira coisa que eu diria, enquanto os homens não aceitarem, e mesmo as mulheres, aliás, pensar que a própria maneira de caracterizar os modos de fazer são questões políticas, ou seja, maneiras construídas, nas quais nos construímos pensando pragmaticamente no que é eficaz, no que dá forma a uma outra política, ainda não começamos realmente, pois essa questão será sempre rebatida para o lado da psicologia, “bem, são mulherzinhas, ora!”.

IS – Sim, acredito que em uma assembleia esteticamente masculina, e eventualmente também majoritariamente masculina, uma mulher sozinha que tente transmitir o afeto será irremediavelmente psicologizada, não vai conseguir. Por outro lado, isso seria possível com um grupo de mulheres que tenha se preparado para fazer uma intervenção, justamente porque é um coletivo, porque elas juntas se tornaram capazes de fazer essa intervenção. Poderíamos dizer “fazer disso toda uma história”, “criar um caso”, “criar uma situação”. Não digo que assim terão sucesso necessariamente, mas não se poderá dizer que é simplesmente um problema psicológico. Pois essa dimensão da produção coletiva de um afeto tem relação com a dimensão política. Acredito que o feminismo começou quando as mulheres conseguiram produzir grupos consistentes para intervir com um estilo que era o delas e que se tornou, então, irredutível à psicologização. 

VD – E que passa explicita e claramente por um estilo escolhido e construído. Logo, todos os termos como “autenticidade” e “espontaneidade” são termos venenosos. Se as pessoas imaginam, por exemplo, que vocês têm um discurso espontâneo, vocês estão ferradas! Porque o discurso espontâneo pode permitir remeter à natureza das pessoas ou à psicologia. Eu continuaria então o que a Isabelle disse: a forma como a gente se produz é uma aprendizagem, de modo que aquilo que estamos produzindo não possa, em nenhuma hipótese, passar por algo que emanaria da natureza das mulheres, da natureza das dominadas. Tem que aparecer realmente como algo combinado, algo construído e elaborado conjuntamente.

IS – E é por isso que nos momentos em que o feminismo foi inventivo, a ideia de mulheres bruxas estava tão presente. No sentido em que as bruxas são também aquelas que sabem se reunir para preparar coisas. Sair. São aquelas que sabem que é preciso se proteger da interferência para serem capazes de sair, de produzir uma diferença. 

DR – Queríamos falar também de algumas pequenas armadilhas que sentimos na discussão. Vocês falam de uma recusa ativa de um gênero de pensamento que desconfia das mulheres, como se elas fossem incapazes de levar a sério os problemas que transformam o pensamento em campo de batalha, uma recusa em deixar que um “falar verdadeiro” barre o caminho de um “falar bem”.  Em que medida esse “falar verdadeiro” se infiltra, às vezes de modo muito sutil, nos discursos irônicos, indignados, e perpassam as polêmicas que estão na moda em toda discussão política. Esses modos, disfarçados de “maus modos”, porque revoltados, não levam também a reafirmar posições já constituídas, paralisando justamente a capacidade que o falar pode ter de estabelecer conexões?  

IS – Que sempre estiveram na moda nos grupos estritamente militantes. Quer dizer que toda intervenção que complique, que abra, é difícil. Qualquer ação para complicar as coisas, a fim de permitir que outras coisas entrem em jogo, que não estão na pauta, será vista como algo que pode enfraquecer a causa.

DR – Sentimos que isso acontece muito nos discursos de intelectuais. Não somente militantes, mas intelectuais sofisticados, que fazem hoje um monte de discursos irônicos e indignados, o que é também um modo de criar um grupo fechado no qual ninguém mais pode entrar, sobretudo os que não são suficientemente inteligentes para entender ironia. 

IS – Sim, mas a ideia de grupo militante, a ideia de militância, tem sempre intelectuais à frente.  Quando se tem um coletivo de trabalhadores em greve, é diferente. Grupos militantes têm sempre ideólogos no comando. Logo, não se pode produzir diferença, o intelectual está sempre pronto para tomar o comando e dar a boa direção.

VD – Dar o tom. 

IS – Logo, não se surpreendam, quero dizer, desse ponto de vista que falamos, os intelectuais estão sempre no seu lugar, não para abrir, mas para mobilizar e dar a verdade. A verdade sobre o que está acontecendo. E é sempre assim: “nós não somos cegos, somos os que veem a verdade!”, “devemos cassar as ilusões que levam a pensar de outras maneiras!”. Assim, é um tipo de radicalização que atua como se o fato de não ser cego, de enxergar a verdade, fosse a força do movimento, como se a verdade contra a cegueira fosse a arma principal daqueles que se revoltam. É também uma velha teoria da alienação, o intelectual é aquele que luta contra a alienação que faz com que as pessoas aceitem suas amarras, suas correntes. Ele é então aquele que quebra as correntes. E aí, efetivamente, o sentimento, a intuição, o afeto, não entram, é como se não tivessem nada a ver.

DR – Não sabemos se vocês observam algo particular com respeito à indignação. Nas redes sociais, por exemplo, há muito discurso indignado, e sua repercussão é muito fácil, discursos com esse tom se reproduzem com uma facilidade incrível. Mas já é diferente nos movimentos, por exemplo, o movimento dos indignados… 

IS – Há diversos tipos de indignação. No movimento dos indignados, na Europa, há realmente uma indignação afetiva: “Assim não dá!”, “Esse mundo não dá mais!”. E isso permitiu reunir todos aqueles que, por seus pontos de vista, eram mais pluralistas do que indignados, ao menos na Europa. Já a indignação na boca de uma só pessoa se torna rapidamente “designar a verdade por trás da indignação”. É verdade que pode haver uma…como dizer? Algo que não está no coletivo, só no orador, em quem pode acontecer uma escalada da indignação: quanto mais ele fala, mais ele goza da indignação que o toma! Acho que há uma possibilidade bizarra de construção de uma posição mais e mais indignada. Nos movimentos, por exemplo, no movimento dos indignados foi muito diferente. Era uma tentativa de produção de transversalidade, de todas as razões de se estar descontente. E foi frágil por isso: porque depois da indignação, é preciso criar relações que permaneçam, que se segurem. É preciso mostrar uma consistência, um movimento ou relações que possam durar. Então, os intelectuais dizem: é a verdade que faz durar… (risos).

VD – Para completar o que diz Isabelle, o que observo nos discursos indignados, não no sentido da indignação afetiva, é que a verdade é um tipo de discurso que só faz denunciar a mentira. É incrível o número de “mentem para nós!” etc. Como se esperassem que nos digam a verdade. Como se esperassem, por exemplo, que as companhias petrolíferas nos digam a verdade. Claro, e aqui acho que é onde a esquerda não faz seu trabalho, no sentido de Deleuze: denunciar a mentira pode ser uma etapa necessária, mas parar aí é se recusar a pensar. Ao passo que, o que eu gostei naquilo que Isabelle diz em La Sorcellerie Capitaliste, livro escrito com Philippe Pignarre, é que não é exatamente a mentira que devemos visar, pois, à mentira só poderemos responder com uma verdade. Isso é problemático. Se há uma mentira, é porque há uma verdade correspondente. Logo, a gente permanece em um sistema binário que não faz pensar. Por outro lado, no belo movimento de que falava Isabelle, encontra-se o tempo todo questões como “o que é uma captura capitalista?”, “o que é estar em um dilema infernal?”. Encontramos o tempo todo essas frases, “ou deslocalizar[3] ou diminuir seus salários”, mas não se trata de uma questão de mentira ou verdade. É verdade, ou se deslocalizam (as empresas) ou… Não vamos dizer que são mentirosos. Assim, podemos dizer que não há mentira, mas há uma alternativa que não permite escapar, e a maneira de lutar não é denunciar a mentira por trás da alternativa, e sim não cair na armadilha que a alternativa coloca. Logo, o discurso indignado pode ser perigoso na medida em que se focaliza em uma relação estritamente binária entre verdade e mentira, que remete de novo à racionalidade. A indignação está aí para dar força à iluminação da verdade.

DR – Para pensar os desafios políticos de nosso tempo, reconhecemos a pertinência e mesmo a urgência de recorrer a conceitos filosóficos ou teóricos que não são evidentes. Às vezes isso significa sobrecarregar a linguagem, torná-la incompreensível. Alguns conceitos se tornam quase clichê, como rizoma, multidão, ou mesmo antropoceno. E são ideias de que gostamos, conceitos potentes que se tornam, muitas vezes, palavras de ordem vazias, assunto de iniciados. Como conciliar esse excesso da linguagem com a necessidade política de se fazer compreender por todos? Notamos um desinteresse dos intelectuais por se fazer compreender que não é proporcional à importância que fingem atribuir aos “outros”.

IS – Mas esse é todo o problema! Quando conheci Félix Guattari, ele trabalhava com psiquiatria alternativa e quando ele falava, não usava slogans. Toda a inteligência que os conceitos que ele inventava lhe tinham dado era colocada em prática na situação. Deleuze dizia que os conceitos devem ser instrumentos, é preciso se apropriar deles, mas é a situação que dá sentido aos conceitos. Não são os conceitos que dão sentido às situações. Nesse momento, a inteligência que se pode criar em uma situação, pertence a todos. E depois podemos dizer “peraí, isso é o que Deleuze chama…”, mas ninguém liga porque se tornou algo que pertence à situação. Quando escrevo textos, tento citar muito pouco. Em La Sorcellerie Capitaliste sabia que, se citasse, se dissesse “como disse Deleuze etc.”, as pessoas pensariam “ah, não li Deleuze, então não vou entender”. Então, às vezes, tentei transmitir os gritos, mas nunca algo como “é preciso saber que Deleuze… etc.”. Há um uso dos conceitos que separa as pessoas, mas se usarmos os conceitos na situação, não precisaremos mais citar o autor. Nunca deveríamos citar.

DR – Nem empregar os termos, as palavras que eles usam…

IS – Depende das palavras. Porque há palavras que são simples e que aprendemos, graças a certo autor, a utilizar de um modo em que elas se tornam potentes. Então podemos empregá-las, mas não “rizoma”, não palavras que as pessoas não conhecem. Por exemplo, quando Deleuze diz: a diferença entre a direita e a esquerda é que a esquerda precisa que as pessoas pensem e a direita precisa que elas se submetam, que confiem. Isso, todo mundo pode entender (risos). Há palavras que são “para os que leram”. Mesmo em um colóquio como este para o qual viemos[4] não deveríamos empregar todas aquelas palavras, pois isso separa. É como se tivéssemos dado a solução antes mesmo de começar a compreender a situação. Acho, por exemplo, não para criticar, mas se falamos de guerra, todas essas máquinas de guerra de Deleuze e Guattari aparecem. Mas surgem como uma conclusão. A questão seria fabricar a máquina de guerra e só então dizer “peraí, é o que Deleuze e Guattari chamam máquinas de guerra…”. É quem usa o conceito que tem que pagar primeiro.  Pagar no sentido de tornar interessante o conceito que permite pensar. Mas a academia fabrica papagaios.

DR – Chamar nossa revista de DR é uma maneira de dizer, de algum modo, que nós, as mulheres, estamos “criando caso”, “inventando histórias” (“faire des histoires”, como vocês dizem). “Pare de inventar histórias”, “parem de criar caso”, nos dizem os homens. E eles são avessos à DR, discutir a relação é coisa de mulher… 

IS – Mas as mulheres vieram de Vênus, elas adoram discutir a relação !!! (risos fortes)

DR – Estamos cansadas de trabalhar na universidade com se nada estivesse acontecendo, como se não tivéssemos nenhum papel, o que é uma tentação forte hoje em dia. Na linha das mulheres que “cultivam a raiva e o humor para resistir”, como vocês dizem no livro, decidimos fundar essa revista, apostando em uma reversão pelo riso. Dissemos, “tem que ser engraçado!”, senão não tem força. Quando dizemos DR, queremos reverter essa posição que nos é atribuída, mas pelo riso. Não sabemos aonde vai nos levar essa experiência, nem se vai nos levar mais longe do que esse “rir juntas”, porque é verdade que quando nos reunimos gargalhamos muito, e ainda nem lançamos o primeiro número! Queríamos terminar então falando do riso e do papel do humor em relação à ironia, que está associada ao falar-verdadeiro masculino. 

IS – Acho que cultivar o riso sempre foi uma grande força dos movimentos feministas. Mas também de mulheres juntas, independente dos devires políticos, porque o “rir juntas” é um riso rico. Um riso de compartilhamento, onde um monte de coisas, que podem ter sido vividas por umas ou por outras de modos diferentes, se encontram no riso. Quando discutimos com as mulheres que participaram da segunda parte do livro, em Paris, e que alguém, não sei mais quem, disse que sempre se sentiu uma impostora, foi uma explosão de risos, e uma enxurrada de “eu também!”, “eu também!”. Às vezes era diferente, “eu assim”, “eu assado”, mas não era uma crítica, e sim um enriquecimento. Havia uma espécie de “se sentir juntas”, não em nome de uma verdade, mas por causa de uma experiência da qual nos dávamos conta de a que ponto era compartilhada, e que podia dar consistência a esse grupo. Ou seja, o fato de não se reunir por obrigação, mas sim porque esse “rir juntas” nos alimenta. Isso é extremamente importante. 

VD – A respeito do riso, estou pensando que faz anos que trabalho em uma universidade e não me sinto no meu lugar, sou impostora e serei descoberta! Vão me pegar! É isso que desperta o riso. É aí que o riso é extremamente saudável, pois não temos mais medo de fazer rir. E se há algo nos meios acadêmicos e/ou masculinos que toca os homens, e ao que eles são extremamente vulneráveis, é que um homem tem medo de provocar o riso sem intenção, sem que seja de propósito. Mas quando digo “vou ser pega!” não estou tentando fazer rir, eu falo desse medo real. E logo, risos enlouquecidos! De repente isso desloca a situação, pois no lugar de ser vítima desse terror de ser uma impostora, eu me torno… A gente se produz como alguém que cria o humor na situação, que é capaz de fazer humor sem querer, sem fazer de propósito. Nos damos conta então que fazer rir é uma alegria, pois é um riso de confiança. Os homens têm medo de fazer rir porque o riso é associado ao ridículo, ao fato de que as pessoas, os que riem, vão se juntar contra aquele de quem se ri. Mas no nosso caso, cria-se uma cumplicidade com aquela de quem se ri e ela pode “rir junto”. Muda tudo. Nos demos conta, as mulheres, que um monte de coisas acontecia nas nossas vidas por motivos sociais etc. E dissemos: “peraí, podemos fazer algumas coisas que os homens jamais teriam a liberdade de fazer”, colocar as coisas rapidamente em uma relação pessoal, por exemplo.

IS – Mudar a relação.

VD – Mudar a relação mesmo nas transações comerciais, por exemplo. Uma anedota. Uma de minhas amigas que faz transações comerciais (ela é antiquária) reconhece imediatamente pela internet quando lida com uma mulher porque aparecem frases como “ah, uma caixa de bombons, minha avó tinha uma”. Um homem nunca diria isso dessa forma e, imediatamente, a comunicação toma outro rumo, e depois volta. Essa flexibilidade, a capacidade de ultrapassar fronteiras e não considerá-las como verdadeiras fronteiras. Acho que o riso é isso, essa capacidade.

IS – É um dos motivos pelos quais essa ideia de bruxas é importante. É preciso criar espaços: não espaços protegidos, mas espaços onde nos protejamos para poder rir juntas, fabricar a força desse riso. E logo sair, isto é, transformar essa força em algo. Mas foi um escândalo, nos anos 70, as reuniões que eram só para mulheres, e é por isso que se falava em bruxas. Não era para excluir os homens, mas porque quando um homem chega, imediatamente tudo muda (risos). Depois, pode até haver grupos mistos, mas nos quais as mulheres cheguem com a força que acumularam juntas. Então, acho que o riso é realmente um alimento para as mulheres entre elas. E isso é muito sério.

VD – Pensando ainda na pergunta que você acaba de colocar: por que uma mulher que participa de um grupo de homens assume posições que não são de destaque, por que ela se conduz como um homem, ou faz tudo pra isso? É porque ela está só. Ao passo que, quando um homem entra em um grupo de mulheres, ele não passa por nada disso, alguns sim, e é com eles que se pode compor, mas geralmente o homem vai dizer “que história é essa?”, etc. Em vez de pensar “estou numa situação particular, o que se espera que eu produza aqui?”

DR – E aqui eles sexualizam a situação também, dizendo ”ahhhh”

IS – Me lembro de uma reunião feminista, bastante tardia, na qual muito do que tínhamos aprendido já havia sido esquecido. Havia um homem e, de repente, ele tomou a palavra e disse “eu gostaria que me explicassem os fundamentos do feminismo”. Imediatamente as mulheres se dividiram. Algumas queriam explicar para ele. Outras diziam “claro que não, não vamos parar tudo porque este senhor pede algo que ele pode aprender em outro lugar”. E pronto, ninguém mais ria. Bastou a intervenção daquele homem para que todo o humor que podia se desenvolver ali parasse. É a capacidade dos homens de dizer “tenho o direito de me informar”…

VD – “……do meu modo”

IS – … “do meu modo”, “não preciso tentar entrar no evento do jeito que ele é, participar do evento, surfar nele (risos)” . Não, “eu paro as ondas, construo um muro, fico ao pé dele e faço perguntas!”. Há algo aí que é preciso retomar. A mistura de gêneros é algo que se prepara entre mulheres! (risos).

DR – Justamente, na revista haverá homens, mas apenas convidados…

IS – Isso. Mas é preciso saber que existem povos, já que falamos muito em antropologia nos últimos dias [em Os Mil Nomes de Gaia], onde há o povo das mulheres e o povo dos homens, e os encontros são preparados.

VD – Mas “DR” é ótimo como nome de revista. É muito bonito porque se alguém me dissesse “vamos discutir a relação”, eu ficaria horrorizada, subiria pelas paredes se alguém me dissesse isso, seriamente. Já discutir, para mim… se levado muito a sério, é horrível. Mas é muito interessante a forma como vocês invertem essa expressão horrível para torná-la objeto de humor.

IS – E as bruxas, pessoas como Starhawk, que eu li muito, as ativistas em geral, aprenderam algo que inclusive os africanos sabem: nunca remeter – quando se discute a relação – à intenção. Sempre tentar dizer “aqui você me feriu”. Isso não quer dizer “você quis me ferir”. Mas se apresentar dizendo “aqui, o que você disse me feriu”. Colocar essa ferida “com”, e não dizer “você quis me ferir” e colocar o outro na defensiva. 

DR – Por isso que o humor é interessante. Dizemos DR e as pessoas reconhecem “discutir a relação”, pois utilizamos essa abreviação que todo mundo conhece. Mas dizemos também: DR de Divas Revolucionárias… (risos gerais)

IS – Em todo caso é muito interessante e lhes desejamos muitas experiências belas.

VD – Longa e risonha vida para DR, pronto!

IS – Ah, e por favor, nunca com espírito de sacrifício ! Obstinação, coragem, mas que seja sempre uma alegria! (risos)

DR – Obrigada!!!
Vinciane Despret é uma filósofa e psicóloga belga. Ensina na Université Libre de Liège (ULg). Leitora de B. Latour e I. Stengers, entre outros, pesquisa nas áreas da etologia, filosofia da ciência e psicologia humana. É autora, com Isabelle, do belo livro Les Faiseuses d’histoires, ce que les femmes font à la pensée, Les Empêcheurs de Penser en Rond (2011). 
Isabelle Stengers é uma filósofa belga. Ensina na Université Libre de Bruxelles (ULB). Inicialmente estudante de química acabou se interessando pela filosofia da ciência, tornando-se uma referência incontornável nessa área. Leitora de Whitehead, Simondon, Guattari, Deleuze e Starhawk, entre outros, pesquisa temas que vão da epistemologia crítica das ciências, à psicanálise e à política. É autora, com Vinciane, do mesmo livro inspirador sobre o papel das mulheres na universidade.
[1] Paris: La Découverte.
[2] Referência a Virginia Woolf.
[3] Deslocalizar é o que muitas empresas de países desenvolvidos fazem hoje, levando, por exemplo, seus telecentros para países nos quais a mão de obra é mais barata.
[4] Os Mil Nomes de Gaia. Do Antropoceno à Idade da Terra. Casa de Rui Barbosa. Rio de Janeiro, 2014.