Deleuze

Vou direto ao assunto. Claro que amo você, mas certas coisas me irritam (e DR é pra isso, né?). Fiz uns tópicos pra gente enfrentar junto:

Um – Referências. Caraca, pqp! Não dá pra falar com menos não? Sei que você devia estar escrevendo pros franceses da universidade e tal. Mas, você mesmo não disse que escrevia para os não filósofos? Você nem imagina quanta baguete envelhecida eu engoli a seco, pra ajudar esse corpo a segurar aquele esforço todo, tentando entender… a cabeça tentando ir pra longe e desconectar da barriga, e o pão entrando pra pesar mais e deixar o corpo na terra. Já sentiu isso ou como branco europeu tirou de letra aquele name dropping desarvorado? Nem te conto quantas vezes desejei engolir as referências, com as migalhas de pão, nessa perversão de devir-homem que nem existe, que deveria ser razão de vergonha.

Dois – Palavras novas. Tá bom, fica meio difícil criar sentido novo com as mesmas palavras, mas acho que você não mediu muito o risco da palavra virar esse atalho pra não se entender nada, tipo um brand. Assim: falou rizoma tá tudo resolvido, ainda que ninguém tenha entendido naaaada. Quantos mequetrefes não incorporaram esse vocabulário pra dar um perdido em alguém e não ter que se engajar na relação com o texto? Sei lá falava raiz emaranhada, raiz bagunçada… Acho que deveria ter uma multa. Cada vez que alguém soltar um deleuzeanismo na conferência, toca um apito. Piii! Que nem quando se fala palavrão na TV…. Tem que parar e explicar, senão vira private joke, coisa de iniciado. Não dá!

A palavra devir acho legal, tem horas que precisa – quando é pra entrar nesse devir-outro, se tornar o tempo todo outra pessoa, porque a gente nunca é uma coisa. Isso liberta de um monte de craca que a gente vai acumulando pela vida. E disso não vou falar porque nem em DR consigo. Mas não pode sair falando devir assim, pra qualquer coisa, sem explicar…

Três – A grande arte, a alta cultura e a história eurocentrada. Chega de Grécia! Nos seus livros tem até frase do tipo “os gregos foram os primeiros a”. Seu amigo Foucault é pior ainda (cisma de partir o tempo todo dumas maluquices da Grécia). Isso já deu mesmo, pode ser pra criticar, pra entender por contraste, mas Grécia cansou. Etimologia, eu avisto e já vou virando a página. Aí escorrega pra umas paradas do tipo “bárbaros”, “sociedades primitivas”, “império arcaico”… Sei que você não está falando mal, mas a história renovou de tal modo a abordagem desses tempos, nossa relação com esse passado ficou tão mais digna, ficou tão claro que o foco na Grécia serve para eclipsar toda riqueza intelectual do mundo árabe, da ciência e da filosofia escrita em árabe, produzida em solo africano… Enfim, démodé, só pra dar um toque mesmo, de amiga, e também tenho um lado historiadora da ciência que queria compartilhar, já que você ama tanto as referências.

Só dou esses toques porque você foi fundamental na minha vida. Nos conhecemos lá nos idos 90, através do Claudio, meu querido mestre, que trazia seu pensamento de um jeito bem mais compreensível. Eu estava meio perdida entre a matemática, a política e algo que ainda não sabia o que era. E desse encontro, vi que era a filosofia e comecei a juntar tudo. Matemática e política e filosofia. Esse lance do “e” veio daí também… Foram viradas na minha trajetória, sem volta. A trajetória do “e” que carrego até hoje, apesar de ser difícil de encarar em um mundo todo arrumado em caixinhas. Obrigada. Tô chorando aqui, talvez seja um tipo de despedida… um tipo.

Barthes

para Tamara Kamenszain

aquele caminhão que Barthes não viu

eu vejo

deixar a morte ir

deixar a mãe morrer

e viver

como morrer junto não pode mais ser a resposta ao como viver junto, Barthes

aquele caminhão que você não viu

aquele caminhão que agora vejo

e aceno

num lampejo

aquela aparição que deixou para trás

que deixou aqui as rodas pesadas negras e tristes

e aquela altura da morte

a quem aceno

já sem ar

aquelas pernas mancas e trôpegas

face às portas altas

e inalcançáveis

e o seu motor fazendo tremer todo o solo interior

e esse país de estradas velhas

e esburacadas

e essa caverna da infância

que agora

que aqui

secreta a passagem estreita

e o caminhão nela parado

aqui

o tempo todo

nessa passagem estreita

entre a vida

entra a vida

ali naquele caminhão

que você entreviu

Barthes

num tropeço

num aceno

num destroço

parado nessa passagem

no meio do peito

nessa estação oriental

e sem sopro

nessa supuração do tempo

e da morte do tempo

Barthes

como viver

era só essa a questão

nunca houve outra

nem nenhum complemento

apenas a passagem do caminhão pelo estreito do tempo

Nietzsche

“A mulher perfeita pratica a literatura como pratica um pecadilho: a título de experiência, de passagem, olhando em torno de si pra ver se alguém a nota e a fim  de que alguém a note” – Friedrich Nietzsche (Crepúsculo dos Ídolos)

Caro Federico,

Eu li, reli. Li de trás pra frente, diversas vezes, essa sua frase, meu bigode, meu hipócrita, meu irmão. Eu fiquei muito brava. Mesmo. Experimentei toda a minha impotência nessa revolta. Visualizei um grupo de homens, sentados em uma mesa de bar, rindo, e me achando fofinha em minha fúria, enquanto me explicavam amorosamente que não foi nada disso que você quis dizer.

Essa mediação que esses caras insistem em fazer, entre mim e você me tiram do sério. Eu me descontrolei em algumas ocasiões em que isso aconteceu, mas cada descontrole só servia pra deslegitimar ainda mais o meu discurso.

Eu me lembrei da primeira vez que te li, jovenzinha, trancada no meu quarto, fazendo trabalho da graduação. Eu lembro do meu corpo inteiro vibrando, enquanto eu tinha vontade de dançar pela sala.  Sim, sim, sim!!! Os punhos fechados dando soquinhos no ar como no final do Flash dance.  Eu lembro de reprimir toda essa euforia e escrever o trabalho mais ácido do mundo. Essa acidez escorrendo pelo texto como forma de demonstrar que eu tinha entendido tudo, tinha superado a metafísica, a dialética, os binarismos, e me lançava no barquinho à deriva, enquanto o sol se punha no ocidente, em busca de um novo modo de pensar, um modo dançante, mas que eu devia demonstrar, sem dançar, pra não terminar piradona igual a você, fazendo a louca, fazendo o Dionísio em Turim.

Oh, como eu quis ser notada. Mais do que isso, eu quis ser devorada, por toda e qualquer pessoa na qual eu vislumbrasse a mesma alegria diante dessa empreitada. O século XXI, eu pensava, haveria de ser seu, haveria de ser você em sua melhor imagem. E eu oferecia, assim, meu corpo em sacrifício, pra realizar essa utopia. Em cinco anos de graduação, contudo, eu notei que só sobraria de mim a carcaça, e a medida em que o barquinho adentrava pela neblina do século eu percebia que essa promessa de liberdade ainda carregava qualquer coisa dos anos que haviam ficado pra trás.

E mudei o rumo. Em direção a um certo tipo de ascetismo condescendente. Quase uma freira, sorrindo e desviando de qualquer encontro. O meu ex-marido me chamava de monastérica (porque além de lacaniano enrustido, era capaz de perceber que por debaixo dessa frigidez ainda se encontrava um corpo em ebulição que não ficava indiferente à qualquer coisa que tangencia o que você chama de Vontade de Potencia, e que mais tarde os homens da mesa de bar vão poder te explicar melhor o que entendem por isso).

Da monasteria, passei à fúria impotente. E a uma certa raiva de mim mesma por esses anos todos em que encarnei a mulher perfeita que você descreve nesse seu aforismazinho de quinta. Napoleão foi capaz de escrever melhores.

Ao invés de praticar a literatura, fiquei com vontade de praticar o fuzilamento dos machos. Desses mesmos machos com os quais achei que podia compartilhar do erotismo da filosofia, sem me lembrar que desde Platão, não tem muito espaço pra mulher fora de casa ou do templo. Oh, que triste retrato eles formam: os homens do saber.

Mas não sei … há qualquer coisa em minha própria raiva que não me convence. De repente já não tenho vontade de conversar com você, filósofo.  Sinto a urgência de encerrar essa carta com a intuição de uma nova estratégia. Abandono o desejo de fuzilamento, como quem abandona uma garrafa d’água em um banco da praça. Eu não sou muito belicosa… não me vejo, metralhadora em punho, perfilando mequetrefes na parede do quartel. Meu lado maternal jamais permitiria,  e depois,  em que me tornaria após esses tiros secos? Eu não sei se vim a esse mundo pra me sentir empoderada.

Decidi o caminho. Vou fazer a louca e chegar no Banquete sem ser convidada, depois do Alcebíades. Sentar, beber, comer e fazer longos discursos dando a minha opinião mesmo que ninguém a peça. Vou levar uma galera comigo.  Será que vai rolar suruba?

(E não foi isso também o que você fez, quando esses homens do saber não te deram mais ouvidos?)

Te amo bigode, porra…