Há um pássaro azul em meu peito

O “fardo da história”… Taí um peso injusto para as juventudes contemporâneas. Os chamados “jovens” são acusados de serem alienados, apolitizados, consumistas, viciados em tecnologia, individualistas, narcisistas, pouco solidários… A comparação é emblemática: o parâmetro são os “jovens” de 1968 e adjacências temporais. Enfrentando os poderes instituídos. Exigindo democracia e participação na universidade. Desafiando os governos ditatoriais, os modelos sociais e culturais repressores. 

Evidentemente, sou fã da geração da contracultura. Dos estudantes que tomaram as universidades e exigiram mais horizontalidade. Dos jovens que revolucionaram a música. Que colocaram o corpo em evidência. Mais prazer, mais sexo, mais verbo, mais verso. Que preencheram muros, confeccionaram cartazes, deixaram o cabelo crescer, criaram movimentos múltiplos, enfrentaram séculos de sociedade “adulta”, conservadora, que chegou na metade do século XX baseada no tripé família-escola-estado para enquadrar seus jovens, moldá-los, transformá-los em adultos conformados e responsáveis. Gerações de jovens, dos mais diversos lugares, das mais diversas matrizes culturais, étnicas, raciais, de gênero e de classe, enfrentaram preconceitos, foram se colocando como protagonistas de suas histórias e mudaram o mundo, que não foi mais o mesmo após os anos 1960. Mas acho que precisamos complexificar nosso olhar sobre os processos de constituição do que chamamos de “juventude” e “jovens”, para evitarmos simplificações que não nos ajudam a compreender as múltiplas formas de atuação e conformação de sentidos em torno desse tema.

Escrevi um artigo mais detalhado sobre isso, caso alguém se interesse (http://revistacmc.espm.br/index.php/revistacmc/article/view/203). Nele argumento que juventude foi um “espírito do tempo” da modernidade ocidental antes mesmo de ser encarnado por um sujeito histórico, no caso o “próprio” jovem no sentido biológico, atrelado a determinadas faixas etárias e condições históricas (mais precisamente, a chamada “moratória social”, ou seja, não ter constituído sua própria família, não precisar ainda se sustentar, ter maior flexibilidade em termos de compromissos sociais para poder experimentar, escolher caminhos, montar trajetórias, indicando claramente um recorte de classe, pois estamos falando do jovem de classe média da modernidade ocidental). A partir de meados do século XX, em especial no contexto do pós Segunda Guerra, esse espírito do tempo é incorporado por estes sujeitos concretos, os “jovens”, dentro do recorte que indico acima, estabelecendo, a partir de suas performances, a concepção da juventude como um “estilo de vida”, em que alguns elementos ocupam papel central, por vezes complementares, em outras contraditórios. Assim, o estilo de vida “jovem” envolveria descompromisso, hedonismo, imaturidade, irreverência, sexualidade, inconformismo, rebeldia, busca por experiências novas, vontade de mudar o mundo, tendência gregária e também busca por individualização, dentre outras características. O chamado “mundo adulto” manteve, frente a essa polissemia, reações também polissêmicas, a partir do momento em que o “jovem”, enquanto ser social, entrou pra valer em cena. A rebeldia juvenil, por exemplo, pode ser tanto percebida como ameaça, devendo ser reprimida; quanto como elemento político fundamental para a mudança, devendo ser valorizada. Já o caráter infantilizado, principalmente relacionado à irreverência e ao consumo, inicialmente foi classificado como algo negativo, a ser superado pelo jovem a medida em que fosse amadurecendo.

O que aconteceu depois, que batizei de um novo “espírito do tempo”, este da pós-modernidade, é complexo. Por um lado, os chamados adultos, em termos de faixa etária, abraçaram pra valer o hedonismo juvenil e todas as suas atribuições: prazer a todo custo, “curtir a vida adoidado”, descompromisso, irreverência, prorrogação da “moratória social” e construção de identidades via consumo e sob a batuta da hegemonia do capital. Como demonstraram diversos autores que se debruçaram sobre o tema, na contemporaneidade globalizada “quase todo mundo quer se manter jovem independentemente da idade”. E ser jovem, neste sentido, é estar atrelado aos valores do hedonismo que há cinquenta anos eram objeto de crítica. E o caráter crítico, contestador, rebelde daquele jovem da geração anos 60/70? Bem, esse lado os “adultos” dispensam, obrigado. Mas cobram. De quem? Dos jovens da geração atual, desse início do século XXI. É o tal “fardo da história” a que me refiro no início desse artigo. Todo mundo quer aproveitar a vida em uma “eterna juventude”, mas quer que somente os jovens se mostrem críticos, não alienados, compromissados com as mudanças, enfrentando os poderes instituídos, indo pras ruas, fazendo a revolução. Convenhamos, é meio cara de pau.

Mas o que acontece hoje, nas análises generalistas às práticas juvenis, é mais grave ainda, a meu ver, do que defender o direito ao próprio gozo juvenil eterno enquanto cobra-se do outro, o mais jovem em termos de idade, que seja menos “jovem” em termos de “espírito do tempo” e carregue o fardo da história, fazendo a luta. Isso já seria o bastante para exigir de nós releituras críticas e inversões dos ângulos dos dedos acusatórios. Como professora universitária há vinte anos, convivendo diariamente com jovens de nosso tempo, dentro do perfil de classe que indico acima, sei o quanto é injusto com eles esse “fardo” unilateral depositado em suas costas, vindo de quem suga da ideia de juventude o que lhe apetece (descompromisso, hedonismo, irreverência, consumo, alienação etc.), mas que ao mesmo tempo acusa seus modelos inspiradores por aquilo que ele mesmo não faz, que é comprometer-se, lutar, buscar mudanças, não se conformar. Isso, este é um de meus argumentos, já seria suficientemente grave e injusto, tanto pelo que argumentei até aqui, mas também porque, embora não constituam hoje  um bloco hegemônico, muitos jovens de classe média estão nas ruas, nas universidades e na vida lutando e muito. Mas há algo ainda mais complexo neste processo. Trata-se do apagamento da ação cotidiana de criatividade e resistência de milhares de jovens que não se encaixam no perfil de classe média, não contam com moratória social, que enfrentam situações adversas no dia-a-dia, que têm pouca margem para a alienação e o hedonismo, e que são protagonistas em processos de luta de enorme riqueza e complexidade.

A hegemonia faz, então, um enquadramento doloroso, quando acusa a juventude classe média de ser alienada enquanto se locupleta dos mesmos signos de alienação para sua eterna juvenilização e não leva em conta que existem jovens, dentro deste recorte de classe, que não querem esse modelo de vida consumista e celebrador da desigualdade; e um apagamento criminoso, quando não considera, em suas análises sobre a atuação política das juventudes contemporâneas, aquela construída e vivenciada por jovens em situação de desigualdade econômica, que vivem em locais estigmatizados, enfrentando situações cotidianas de opressão nos mais diversos níveis, do mais materializado ao mais simbólico, e que mesmo assim estão na luta, não desistem, enfrentam, elaboram metodologias, táticas, astúcias, dão seu jeito.

Se sou fã dos jovens da contracultura dos anos 60, sou ainda mais fã dos jovens que também lutam pela e na cultura neste nosso século XXI. A cada vez que convivo com coletivos, organismos, redes criadas por esses jovens, aprendo muito, em primeiro lugar. Fico boba ao ver como a juventude submetida a situações absurdas de opressão consegue dar nó em pingo d’água e criar, conferir sentido, lutar, exigir seu direito a significar. Como aprendi quando os vi/ouvi partilhando suas experiências, nas suas práticas esses agentes têm que saber lidar com pressões de todos os lados, seja do poder instituído, forças repressoras diretas ou simbólicas do Estado, que se sentem incomodadas (incluindo aí parte da academia, que deveria ser parceira incondicional, a meu ver); seja daqueles que estão agindo fora das margens da legalidade; seja dos moradores, parentes, amigos, que temem por suas vidas, segurança, “melhor deixar quieto”, que se preocupam com seu futuro, “por que você não arruma um emprego em vez de ficar aí sonhando?”, que por vezes desacreditam e desdenham de suas ações, formas difusas e por vezes muito duras de repressão e desencorajamento. Além disso, recursos são escassos, parcerias voláteis, necessidades diárias de sobrevivência constantes. São muitas frentes para serem encaradas. Não é fácil. Mas eles estão lá, montando redes de comunicação, propondo novas práticas de significação, exigindo vocalidade e visibilidade, reivindicando protagonismo, denunciando, colocando as versões na disputa, complexificando a realidade, apresentando outros pontos de vista. Lutando, enfim.

Poderia dar muitos exemplos de ações de jovens de setores populares que aliam vontade de transformar o mundo, necessidade de agir politicamente e acesso a novas tecnologias de comunicação e informação para criarem poderosas redes de atuação. Preferi não listar nominalmente ninguém para não ser injusta, porque são tantos que não caberia no espaço que tenho neste artigo e sempre correria o risco de deixar de fora alguns que merecem a mesma admiração e destaque. Prefiro falar de forma genérica de suas práticas de cultura e comunicação, suas formas de organização e enfrentamento, elegendo alguns eixos que os aproximam. Em primeiro lugar, a utilização das ferramentas de comunicação e informação, tanto analógicas, mas principalmente as digitais, para suas ações. Também, a preocupação em discutir os limites, ganhos e problemas da institucionalização, de atuar em redes mais fluidas ou se consolidarem como instituição com CNPJ e outros recursos burocráticos que os empoderem em termos de disputas dos recursos. Também os aproxima a criatividade para lidar com a falta de políticas públicas efetivas para suas iniciativas, sua preocupação em ocupar espaços denegridos ou preteridos, como ruas, praças, áreas estigmatizadas. Sua vontade de partilhar, mudar, fazer acontecer são de uma generosidade que comove. Mas para além desses pontos de intercessão, são múltiplos, complexos, por vezes contraditórios, compondo um mosaico de possibilidades de uma riqueza que deveria nos entusiasmar e contagiar a todos. Porque não há como não aprender com eles. Eu aprendo sempre e sou sempre bem recebida para também partilhar, trocar, ensinar. 

Fazem cineclubes. Realizam mostras. Intervenções urbanas. Projetos de formação. Sites, blogs, páginas nas redes sociais que movimentam milhares de pessoas. Filmes. Shows. Oficinas. Eventos literários. Parcerias inúmeras. Dançam. Grafitam. Provocam. Promovem debates. Organizam protestos. São vitais e virais. Contagiam. 

Em 2013, quando pipocaram as manifestações de protestos nas ruas, tive um sonho muito significativo, que partilhei nas redes na época. Nele, eu estava dentro de um carro, em um engarrafamento gigante, quando de repente o carro levantava voo. Isso já era um alívio, mas o melhor ainda estava por vir. Um pequeno pássaro azul brilhante começava a voar em torno do meu carro alado, fazendo movimentos alegres e dançantes. Eu ficava olhando maravilhada. E em certo momento, eu estendia a mão para fora do carro e esse pequeno pássaro azul pousava nela. E magicamente ia se fragmentando em milhares de pequenos pedaços azuis. E então eu é que saia voando, livre, “jovem” novamente, como nos meus sonhos de trinta anos atrás, em que eu, hoje quase cinquentona, voava muito. Nunca mais havia voado nos sonhos. Presa. Terra. Razão. Desencantamento do mundo. Acordei muito emocionada. Reencantei. Pensei nos meus alunos queridos, críticos, que não desistem, que estavam nas ruas protestando, e em todos esses jovens múltiplos que descrevi acima, com os quais tenho convivido nos últimos anos através de pesquisas, eventos, encontros… Eles eram meu “pássaro azul”. Depois relacionei o pássaro azul ao do twitter, que nas manifestações de contra hegemonia tem desempenhado papel fundamental. E conheci o poema lindíssimo de Bukowski, que reproduzo aqui, para encerrar esse artigo, como uma espécie de tributo a essa juventude complexa e rica, que me liberta sempre, me permite voar novamente. A essa juventude que é mais que potência, é poder mesmo. Que não é fácil de se compreender, porque é múltipla, complexa e contraditória. Que não merece ser cobrada de forma unilateral e simplificadora pelo “fardo da história”. Mas que em sua diversidade, ambiguidade e criatividade, segue transformando o mundo, que não anda fácil pra ninguém. Para eles, para todos nós, “O pássaro azul”, de Charles Bukowski, na tradução de Pedro Gonzaga:

“Há um pássaro azul em meu peito

que quer sair

mas sou duro demais com ele,

eu digo, fique aí, não deixarei que ninguém o veja.

há um pássaro azul em meu peito que

quer sair

mas eu despejo uísque sobre ele e inalo

fumaça de cigarro

e as putas e os atendentes dos bares

e das mercearias

nunca saberão que

ele está

lá dentro.

há um pássaro azul em meu peito

que quer sair

mas sou duro demais com ele,

eu digo,

fique aí,

quer acabar comigo?

(…) há um pássaro azul em meu peito que

quer sair

mas sou bastante esperto, deixo que ele saia

somente em algumas noites

quando todos estão dormindo.

eu digo: sei que você está aí,

então não fique triste.

depois, o coloco de volta em seu lugar,

mas ele ainda canta um pouquinho

lá dentro, não deixo que morra

completamente

e nós dormimos juntos

assim

como nosso pacto secreto

e isto é bom o suficiente para

fazer um homem

chorar,

mas eu não choro,

e você ?”

Algoritmo da felicidade

A felicidade, sabemos, é uma armadilha. Prometida, doada, vendida, revelada, conquistada, sob prescrição médica, entregue a domicílio, de volta em três dias, em vida ou após a morte, ela é a isca sempre relançada a fiéis, consumidores, pacientes, enamorados, trabalhadores, intelectuais, espectadores, internautas etc. “Parece-me que eu estaria sempre bem aí onde não estou” (Baudelaire). O Facebook não poderia estar fora dessa. E nos apresenta, sem trair a sua duvidosa reputação, a sua versão da felicidade.

Em meados de 2014, veio a público um controverso experimento realizado pela rede social e amplamente contestado por toda parte na web, de sites e colunas especializadas de grandes jornais a blogs e postagens no próprio Facebook e outras redes sociais. O experimento consistiu em manipular, ao longo de uma semana, o feed de notícias de quase 700 mil usuários, sem seu conhecimento, dividindo-os em dois grupos, diferenciados pelo tipo de ‘conteúdo emocional’ visualizado. Um dos grupos recebeu em seu feed um filtro que reduzia os conteúdos emocionalmente positivos e o outro teve redução dos conteúdos emocionalmente negativos. Deste modo, o primeiro visualizou mais conteúdos negativos e o segundo mais conteúdos positivos (tristes e felizes, respectivamente, segundo os parâmetros do experimento) . O propósito alegado era saber se o humor ou estado emocional desses grupos seria ‘contaminado’ pelo conteúdo visualizado no feed. Para tanto, as atualizações de status desses mesmos usuários foram monitoradas.

Os resultados do experimento foram publicados na revista científica Proceedings of the National Academy Sciences, sob o título “Evidência experimental de contágio emocional em escala massiva através de redes sociais”[1]. Segundo os autores do artigo, a hipótese do contágio emocional teria sido confirmada pelo experimento. Isto é: os usuários reproduziram, em suas atualizações de status, o estado emocional preponderante em seus feeds: tristes ou felizes, conforme os  grupos. Vale dizer que o maior impacto do experimento consistiu no tamanho da amostra, supostamente a maior da história dos experimentos psicológicos, e não tanto nos efeitos mensurados, considerados estatisticamente baixos. Contudo, o que interessa discutir aqui não é a validade científica do experimento, mas sim o que ele nos revela sobre o Facebook e o controle algorítmico que pretende exercer sobre nossos afetos e nossa atenção.

A controvérsia em torno do experimento envolveu, em linhas gerais, dois tipos de reação: aquela que denunciava uma falha na observação do código de ética por parte dos cientistas que participaram do experimento e aquela que procurava mostrar a falta de transparência e escrúpulos  do Facebook com os seus usuários. O foco, em ambos os casos,  era a manipulação do conteúdo do feed de notícias dos usuários sem o seu devido conhecimento e consentimento. No caso da pesquisa científica com humanos, tal prática é eticamente condenada, uma vez que o consentimento informado seria claramente necessário no caso do experimento. No caso de empresas como o Facebook, o problema ético seria mais vago, uma vez que não há regulação precisa a este respeito e, do ponto de vista jurídico, a prática seria aceitável, uma vez que os termos de uso da rede social, que todos nós aceitamos sem ler ao ingressar nela, prevê o uso de nossos perfis e dados para pesquisa e outros fins[2]. 

As duas críticas são obviamente pertinentes e podem se desdobrar em muitas questões relevantes sobre as relações complexas entre a ciência, o mercado, o marketing e os investimentos afetivos, cognitivos e subjetivos nas redes sociais e nos atrativos científicos e monetários do Big Data. De algum modo, contudo, parte significativa do debate acerca do experimento traçava uma linha demasiadamente forte entre a prática científica e a prática empresarial, sob o argumento de que, uma vez ingressando no território da ciência, o cuidado e os limites éticos não poderiam ser franqueados. Ora, há pelo menos três problemas neste argumento: a) supõe que, se estamos fazendo negócios, não precisamos levar tão a sério os limites éticos de nossas ações; b) faz parecer que a ciência seria o domínio da segurança e da transparência ética, o que é no mínimo controverso; c) aposta numa separação muito nítida entre esses dois domínios – a prática científica e a prática empresarial – o que é cada vez menos evidente em diversos âmbitos, especialmente no campo das pesquisas sobre dados e comportamentos on-line (sejam elas científicas ou mercadológicas).

Ainda que seja importante questionar os problemas éticos envolvidos nas alianças entre o Facebook, os cientistas, suas universidades, laboratórios e a revista acadêmica que publicou o artigo sobre o experimento, o problema é bem mais amplo do que uma falha ética dos cientistas e das instituições envolvidas. Voltando ao nosso foco de interesse, o experimento e toda a controvérsia que ele gerou é uma ocasião para compreendermos o próprio Laboratório-Facebook.

Um aspecto relatado no artigo, ainda que de modo secundário, nos aproxima do que interessa: além de confirmada a hipótese do contágio, notou-se que os usuários expostos a ‘notícias’ com conteúdo emocional são mais ativos e engajados na rede social. O Facebook, ao que parece, deseja saber, através desse e outros experimentos, o que torna seus usuários mais atentos e ativos, o que os faz voltar à rede mais e mais vezes e, preferivelmente, jamais sair dela. As declarações da empresa na ocasião dos calorosos debates em torno do experimento deixam clara esta motivação:

Nós sentimos que era importante investigar a preocupação corrente de que a visualização de amigos postando conteúdos positivos leva pessoas a se sentirem mal ou a sair do Facebook. Ao mesmo tempo, estávamos preocupados com o fato de que a exposição à negatividade dos amigos poderia levar as pessoas a evitar visitar o Facebook. Nós não declaramos claramente as nossas motivações no artigo.[3] 

Pesquisas anteriores, mencionadas no artigo, indicavam que a exposição à felicidade dos outros nas redes sociais on-line produziria estados depressivos nos usuários que, por efeito de comparação, sentiriam-se “sozinhos juntos” (alone together[4]). A direção do Facebook temia que a alegria ou felicidade de tantos gerasse a tristeza ou infelicidade de outros montes de usuários; temia que estes, ao se sentirem tristes, indignados, irritados ou chateados, se desconectassem da rede ou não voltassem com tanta frequência. Também temia, por outro lado, como declarou Adam Kramer, pesquisador do Facebook e co-autor do artigo, que a visualização de conteúdos emocionalmente negativos levasse os usuários a afastarem-se da rede social.

Para a felicidade de todos, os resultados do experimento recusaram a tese da pesquisa mencionada e mostraram que o engajamento e a atividade na rede, bem como o contágio emocional, valiam tanto para conteúdos negativos quanto positivos. Havendo emoção, seja ela positiva ou negativa, os usuários mantêm-se ativos, atentos, engajados, conectados. Todos podemos ficar tranquilos. Afinal, sugere o Sr. Kramer, por que um experimento que objetiva, no fim das contas, assegurar a felicidade e o bom humor dos usuários, gerou tanta reação negativa? Nas suas palavras: “In hindsight, the research benefits of the paper may not have justified all of this anxiety.”[5]

O Sr. Kramer sugere que, uma vez esclarecido que o experimento visava o nosso bem e a nossa felicidade, o problema estaria resolvido. Entretanto, é exatamente aí que se expõe o maior problema: no próprio fato de o Facebook desejar nos fazer felizes. Este é o ponto a questionar. Grande parte das críticas ao experimento, muitas bastante contundentes, não tocam neste ponto. Parecem supor que não haveria maiores problemas em jogo se o consentimento informado tivesse sido solicitado. O problema, contudo, não para aí e tem um alcance muito maior do que o experimento tomado isoladamente. De fato, o experimento serve para abrir a caixa-preta do Facebook, ainda que timidamente, e explicitar não um feito extraordinário ou uma situação de exceção, mas o pão nosso de cada dia nesta rede social. Todos sabem, ou deveriam saber, que é procedimento padrão do Facebook filtrar nosso feed de notícias de modo a visualizarmos, em média, entre 1.500 itens possíveis, apenas 300, escolhidos segundo critérios absolutamente obscuros. Os usuários não foram cobaias por uma semana apenas. O Facebook é um laboratório que funciona ininterruptamente e os seus experimentos operam cotidianamente e em cascata, levando em conta cada curtida, cada clique, cada compartilhamento, cada palavra que digitamos e mesmo aquelas que apagamos.[6] Não podemos dizer que é um laboratório a céu aberto porque apenas as cobaias, ou sujeitos (para usarmos a linguagem cientificamente correta da pesquisa experimental aplicada a humanos) estão expostos. Os instrumentos, os algoritmos, os critérios, as variáveis, os propósitos, as bases de dados estão confinadas na caixa-preta, mas interferem diretamente em toda paisagem informacional, afetiva, cognitiva e política de nossas ações e conexões dentro e parcialmente fora do Facebook. Esta situação, extremamente assimétrica, já é um imenso problema, e o fato de estar prevista nos termos de uso que aceitamos voluntariamente não o torna menor. O experimento nos ajuda a perceber que o laboratório está em toda parte e ultrapassa os limites da pesquisa científica e suas regulamentações. Mostra que uma das astúcias do Facebook (e inúmeras outras empresas do big data) é explorar essas zonas de incerteza entre o voluntário (aceitamos os termos) e o involuntário (não sabemos os critérios nem os fins dos termos que aceitamos); o comercial (o Facebook é uma empresa, logo, não devemos exigir dela os códigos de conduta que se aplicam à ciência) e o científico (os serviços prestados pela empresa dependem de experimentos científicos para se aprimorar e a ciência depende do Facebook para ter dados ao mesmo tempo robustos e qualitativamente expressivos); a manipulação e o consentimento; a vida ordinária e o laboratório; a máxima exposição (dos usuários) e o segredo (das regras e critérios da empresa) etc.

Nota-se facilmente os inúmeros problemas em jogo, mas retomemos o nosso ponto de partida e a uma das principais motivações do experimento que nos trouxe até aqui. A felicidade algorítmica que o Facebook pretende nos oferecer. Este talvez seja o elemento mais ‘escandaloso’ de toda essa história. Importante dizer que o problema não é a de uma suposta falsa felicidade ou das verdadeiras intenções do Facebook, que seriam outras, voltadas para o crescimento exponencial de sua moeda. Estas constatações podem fazer supor que haveria um bom modo de o Facebook nos fazer felizes, o que mais uma vez esconde o problema. Partamos do princípio, colocado logo na abertura deste texto, de que toda oferta de felicidade é um engodo e tentemos entender o modo próprio de o Facebook fazer isso, o que nos ajuda a compreender parte da nossa dinâmica afetiva e cognitiva nas redes sociais online.

Vimos que o importante no Laboratório-Facebook é manter seus sujeitos maximamente ativos, engajados, conectados. Todos os experimentos e aprimorações dos serviços, aí incluído o que vemos em nosso feed e o modo como nossas atualizações de status são vistas pelos nossos amigos, procuram modular nossa atenção e nossos afetos de modo a garantir mais dedicação à rede social. É muito fácil perceber, por exemplo, que usuários muito ativos e dedicados são ‘recompensados’ com mais visualizações e, consequentemente, mais compartilhamentos e curtidas, o que por sua vez alimenta a sua atividade. Qualquer um que fizer a experiência de ficar fora da rede um tempo razoável perceberá, no seu retorno, uma queda nas curtidas bem como notará com estranheza o seu feed, que te parecerá pouco familiar. Não se preocupe, não há nada de errado com você, mas o algoritmo da felicidade pune (ou, na melhor das hipóteses, fica fora de forma) aqueles que não o alimentam como ele deseja. O investimento do Facebook em promover estados afetivos – seja ele a felicidade ou cargas emocionais fortes – que aumentem o engajamento dos usuários torna ainda mais evidente algo bastante óbvio e já sabido que é o primado do compartilhamento.  O que importa não é a felicidade ou outro estado emocional, mas qualquer motor que implusione o fluxo da produção e circulação de informações sobre nossos modos de vida, nossos humores, desejos, e que formam a mina de que se alimentam essas corporações. Se a felicidade aumenta a atividade, a atenção e o engajamento na rede, então, que se promova a felicidade, pois com ela sobe também o volume, a captura, a mineração e todas as transações comerciais, políticas, cognitivas com os nossos dados. Isso por sua vez alimenta mais e mais pesquisas e testes no laboratório e assim tudo vai bem.

Só não vale ser feliz sem compartilhar! E esta não é apenas a perspectiva do Facebook; todos sabemos que ela vale também para cada um de nós, em maior ou menor medida, e que nossos investimentos afetivos nesta rede social são modulados também por isso, ainda que, claro, não se esgote aí. E pouco importa que as emoções compartilhadas sejam verídicas, falsas, editadas, selecionadas. Não é disso que se trata, mas sim de perceber este modo sutil de controle, exemplar do capitalismo contemporâneo, que se alimenta de nossos afetos, nosso ‘engajamento’ emocional e cognitivo, nossa ‘devoção’.

Lembremos que os nexos entre o poder e a  gestão ou capitalização dos afetos e da felicidade não são um privilégio do Facebook. Estes nexos têm uma longa história no Ocidente, do poder pastoral às indústrias do consumo, da saúde física e mental, do espetáculo e as mais recentes formas da felicidade tecnologicamente assistida, passando pela grande mídia, a publicidade, as redes sociais etc. Se tomarmos um exemplo mais remoto, o poder pastoral, lembramos que os investimentos na relação entre o exercício do poder e a gestão da felicidade  estavam atrelados, como propõe Foucault, a práticas confessionais e a relatos sobre a vida íntima, endereçados ao pastor, que dirigia a consciência e a culpa dos fiéis. Tudo isso passava por um forte, e por vezes penoso, trabalho que o indivíduo deveria fazer sobre si. Agora, os algoritmos do Facebook pretendem gerir a felicidade e as emoções sem que os indivíduos em questão sequer tomem conhecimento disso. O controle algorítmico da felicidade importa pelos seus resultados: mais e mais compartilhamentos, mais e mais dados, mais e mais perfis, mais e mais atividade e conexão em modo non stop. Trata-se, para usar uma expressão do futebol, de uma felicidade de resultados.

Esse controle algorítmico, especialmente no Facebook, mobiliza as subjetividades de um modo bastante distinto do poder pastoral, ainda que possa encontrar nele uma linhagem histórica. E esta mobilização está ainda por ser entendida, assim como as resistências a esse controle estão por ser inventadas. Se considerarmos a dimensão laboratorial, seria fundamental reduzir, em diversos níveis, a assimetria que apontamos acima. Mais transparência e abertura dos dados, critérios, parâmetros e algoritmos é fundamental para que este laboratório se torne um espaço de maior autonomia para os usuários. E isso não vale apenas, diga-se, para a pesquisa dita ‘de mercado’, mas também para a pesquisa científica, cujos métodos experimentais merecem ser problematizados de modo a ampliar as margens de negociação com seus sujeitos, como bem propõe Vinciene Despret. O princípio de que os sujeitos, para serem bem conhecidos, devem ignorar ou ser inteiramente excluídos da definição dos parâmetros da pesquisa, vale mais para reforçar as redes de poder da ciência e dos laboratórios-empresa online do que para produzir um conhecimento suficientemente complexo acerca de nós mesmos. Tal revisão dos parâmetros laboratoriais é tão mais urgente quando tal conhecimento modula significativamente o nosso campo de ação individual e coletiva. Esta negociação, contudo, talvez seja demasiadamente utópica. Restaria ainda fabular outras táticas. Aprendemos a driblar e contestar nossos pastores, pais, educadores, médicos e toda sorte de pretensos diretores de consciência. Imaginar uma sabotagem coletiva do controle algorítmico da felicidade no Facebook é uma bela tarefa.

[1] Adam D. I. Kramer, Jamie E. Guillory e Jeffrey T. Hancock (2014). Disponível em http://www.pnas.org/content/111/24/8788.full 
[2] Cf. https://www.facebook.com/about/privacy/update
[3] Cf. http://www.nytimes.com/2014/06/30/technology/facebook-tinkers-with-users-emotions-in-news-feed-experiment-stirring-outcry.html?_r=0
[4] Turkle S (2011). Alone Together: Why We Expect More from Technology and Less from Each Other. New York, Basic Books.
[5]Analisando a posteriori, os benefícios do artigo podem não ter justificado toda essa ansiedade.
[6]Cf. http://sauvik.me/system/papers/pdfs/000/000/004/original/self-censorship_on_facebook_cameraready.pdf?1369713003

Os novos movimentos se constituem a partir de diagramas (e não de programas)…

Os protestos urbanos dos últimos anos irromperam, se irradiaram e se multiplicaram de modo diagramático. Não passaram por um programa político — consciência política ou representação — passaram muito mais por uma dimensão micropolítica, afetiva, existencial.

Não se trata somente de uma ação espontânea. Houve a acusação de que os movimentos de junho não tinham pautas, o que sequer é verdade. Redução das tarifas, mais direitos e serviços públicos e desmilitarização da polícia são só alguns exemplos.

Tudo começou por causa de 20 centavos. E foi uma reivindicação vitoriosa, sem que houvesse um programa por trás, reconhecido como tal pelas organizações tradicionais, os partidos ou sindicatos. Aliás, programas estão em desuso, basta constatar sua total irrelevância nas últimas eleições.

Será que, diante disso, seria o caso de clamar por programas mais claros e definidos, como aqueles que delimitavam um campo de lutas há tempos atrás? Não sem atribuirmos uma nova significação política a tais programas. O diagrama é uma tentativa nessa direção e parte da constatação de que o capitalismo atual funciona como regime semiótico.

O capitalismo hoje investe pesado na produção de signos e na constituição de um sistema expressivo. O poder das marcas é um exemplo. E as marcas não são somente aquelas que expressam nitidamente o poder do capital, das grandes corporações e tal. Estamos imersos em um processo de produção de signos: nós também produzimos marcas, logos e palavras de ordem.

O diagrama é uma maneira de pensar a repartição entre expressão e conteúdo sem passar pela representação, não apenas no nível político, mas no próprio âmbito da linguagem. Quando dizemos algo (por exemplo, “Não vai ter Copa!”) somos imediatamente interpelados a responder o que isso quer dizer. “Isso quer dizer aquilo” é um modo de repartir a expressão e o conteúdo. Um modo que toma o enunciado como mediação, nada além de um meio para alcançarmos o significado: “aquilo” que queremos dizer. Ao adotarmos esse regime expressivo, subscrevemos um mecanismo de representação. 

Não importa, em um primeiro momento, o que o “Não vai ter Copa” queria dizer. Idem para o “não nos representa”, “indignados”, “somos todos x ou y”, e tantos outros enunciados produzidos nos últimos movimentos ao redor do mundo. São expressões que produzem elos, que ligam pessoas (virtual ou fisicamente), que produzem mobilizações e protestos.

Esses elos, pontes, conexões, são produtos de ações diagramáticas, que se dão em uma dimensão invisível. Aqui, os estratos corporais e semióticos ainda não foram separados.

O diagrama ignora a distinção entre conteúdo e expressão. Falamos (e como!), produzimos uma infinidade de enunciados. A relação entre um enunciado e o que ele quer dizer depende da situação micropolítica em que tal enunciado se expressa.

O diagrama diz respeito a graus de intensidade que pilotam a constituição de uma situação real. É impossível saber o que algo significa sem estar dentro da situação. Hoje, estamos atentos quando um homem vem dar lição de moral sobre movimentos feministas, um branco se posiciona contra uma luta dos negros, um hetero avalia as pautas LGBTs etc. O lugar de fala já é visto como algo importante. E há muitas variações, dependendo de casos ainda mais singulares. As feministas mostram os peitos e escrevem “somos todas vadias” sobre o próprio corpo. Entendo plenamente o sentido dessa inversão, que acho potente. Mas há mulheres negras que contestam sua universalidade, pois não reconhecem em sua afirmação como vadias um movimento de emancipação em relação ao lugar que lhes é atribuído.

Claro que qualquer enunciado está inserido em um contexto, parte de uma posição social. Isso já sabemos. O que dizemos aqui está em uma dimensão ainda mais micro, mais sutil. Normalmente não prestamos muita atenção a este âmbito de coisas, no qual a subjetividade ainda não está formada, no qual o indivíduo não é uma unidade de conhecimento ou de afeto. Uma dimensão pré-individual.

A lógica e a linguística escolhem bem seus exemplos para que essa dimensão fique em segundo plano. Se digo “tenho fome”, claro que isso quer dizer algo, parece bem simples de entender. Mas há enunciados que não são tão claros: se alguém diz “você está diferente…”, o que essa pessoa quer dizer? Que estou gorda? Com rugas? Não é possível saber antes de uma conversa (uma DR!). Nem seria preciso tomar uma fala tão subjetiva… Mesmo quando afirmamos que “a água ferve sempre a 100 graus”, estamos diante de um enunciado tornado relevante por uma certa visão de mundo, aquela que instaurou a ciência tal como praticada até hoje.

Não há nada que “queira dizer” algo sem que se passe por agenciamentos, por relações de força, que esclarecem ou obscurecem o que é dito, que tornam o enunciado relevante ou sem importância. São essas relações de força que fazem com que a significação funcione, não há nada de arbitrário nesse processo. A diagramática é uma recusa de rebater a enunciação sobre os enunciados, requer uma atenção constante às relações de força que estão em jogo, aos agenciamentos, às ligações que se produzem.

O diagrama é um mapa das relações de força que se encarnam em situações concretas. Ordenar, aconselhar, prometer, dar a palavra, elogiar, levar a sério ou na brincadeira, tirar sarro, são ações diagramáticas que fazem com que a máquina expressiva se coloque em marcha. Essas ações conectam, ao mesmo tempo, as expressões e os corpos.

Os enunciados (em palavras, imagens ou o que quer que seja) são flechas lançadas ao vento. Digo algo e isso me aproxima (ou me afasta) de alguém. Um acontecimento se produz tanto na dimensão da expressão quanto na dos corpos, ao mesmo tempo. E assim captamos o sentido daquilo que é dito.

Pois bem, finalmente, começo a falar da relevância política disso tudo… Acredito que uma reflexão desse tipo é necessária se quisermos pensar os novos tipos de organização capazes de reconstruir a luta política (em crise). E principalmente se quisermos entender os modos como o capitalismo se insere (sorrateiramente) nos próprios movimentos que desejam combatê-lo.

Parece impossível, hoje, não questionar por meio de qual recorte podemos definir o antagonismo das lutas. O recorte de classe parece não dar conta (ao menos não por si só) da definição do sujeito revolucionário. Por outro lado, há inúmeros movimentos sociais, movimentos de minorias que parecem potentes, mas muito fragmentados. As divisões chegam a assustar, dentro de uma mesma luta de minoria há fraturas que parecem irreconciliáveis.

Por isso, insistirei sobre o tema das conexões, a necessidade de um cuidado das conexões. E claro que aqui não se tratam das conexões com fio ou sem fio que estabelecemos todos os dias pela rede. Falo dos laços que ligam movimentos de tipos diferentes, organizados a partir de interesses e problemas diversos.

Uma maneira pela qual o capitalismo codifica as formações sociais é o corte entre o individual e o coletivo. Um movimento se constitui a partir da recusa de interiorizar essa divisão, pois todo o incômodo que parecia emergir do individual (familiar, conjugal, psíquico) passa a se ligar a outras questões nada individuais (étnicas, raciais, sexuais, estéticas).

Há, contudo, uma outra maneira pela qual o capitalismo codifica as formações sociais de modo a integrá-las em sua própria dinâmica: por meio da produção do isolamento e da fragmentação. O capitalismo pode até tolerar a dimensão coletiva e política das questões que preocupam uma minoria, contanto que ela não se conecte a outras minorias, a coordenadas transversais, ou seja, a lutas que parecem estrangeiras a uma determinada minoria. Isso leva alguns grupos a enxergarem suas reivindicações como parte da esfera interna, como problemas que só concernem àquela comunidade. O capitalismo lida muito bem com demandas minoritárias que sejam bem estabelecidas, que possam ser codificadas, que tenham um estatuto particular.

Claro que não mobilizaremos nenhuma força subjetiva renunciando à singularidade de cada grupo social. Mas também não dá pra combater o cinismo capitalista entrando no gueto, falando somente uma língua particular. É sim, usando muito do gueto, de sua sensibilidade e seu dialetos próprios, mas para conectá-los, para ligá-los a outras lutas. Talvez só assim consigamos inventar um devir autônomo imprevisível, passando por conexões transversais entre atores diferentes, lutas transnacionais. Uma nova internacional.

Depois de junho, os momentos de maior potência dos movimentos foram aqueles em que diferentes lutas se encontraram, produzindo mobilizações imprevisíveis (professores e black blocs; garis e movimentos culturais). 

Precisamos urgente de novos parâmetros para avaliar, de modo imanente, a efetividade das lutas e das organizações desse ponto de vista. Que modos de existência elas propõem? Que modos elas encarnam? Qual o potencial de conexão dos problemas que colocam e das reivindicações que trazem?

O critério dessa avaliação é a aptidão para conectarmo-nos com outras lutas, para ligar nossos problemas aos problemas de outros, ainda que muito distintos do ponto de vista das identidades. Não dispensamos sequer uma boa DR: “não foi bem isso que eu quis dizer” é a fala recorrente em uma boa discussão de relação, na qual os lugares se rearrumam, os elos (porventura machucados) se recompõem. 

Falar outra língua, não só a nossa. Manter uma variação contínua que não pare de ultrapassar o padrão majoritário. Criar uma figura universal da consciência minoritária, uma nova internacional, de tipo diagramático. Linhas e traços que constituem o que há de minoritário em todo mundo, em oposição aos princípios majoritários de funcionamento do capitalismo.

Incrível como deixamos de lado o antagonismo em relação aos mecanismos sutis do capitalismo (como se fosse uma fatalidade intransponível) e, ao mesmo tempo, reforçamos os antagonismos entre as diferentes formas de luta. Estamos sempre na defensiva…

O capitalismo tem uma vontade deliberada de fixar, de barrar os fluxos, de substituir seus princípios de funcionamento às ações diagramáticas que procuram escapar, fugir pelas beiras. Tal seria a função de uma política diagramática: operar por relações transversais entre problemas distintos, a fim de barrar o modo como o capitalismo codifica as relações sociais para integrá-las, para fazê-las funcionar ao seu modo e para os seus interesses.

Trabalhar em termos de diagrama é desenvolver uma heterogeneidade de posições. Posições de grupo, posições sociais e mesmo posições em relação a si mesmo.

A dimensão diagramática é a dimensão do possível que emerge de uma ruptura política. O que vivemos em junho pode ter sido dessa ordem, o desbloqueio de um possível. Como o possível nunca está dado de antemão, não se exprime pelas forças políticas existentes, é somente um começo, algo que modifica a subjetividade, faz-nos vislumbrar novos caminhos, ainda que a sociedade e as instituições continuem as mesmas. O próximo passo é saber como esta mudança pode mudar também a sociedade, e aqui o problema do programa e do projeto aparecem novamente, mas inseparável do regime diagramático. 

Que movimentos e que novas formas de luta seremos capazes de criar? Nenhuma instituição existente pode ajudar a responder. Nenhum governo ou partido. Só um trabalho constante pela constituição de máquinas revolucionárias, políticas, teóricas, libidinais, estéticas…