Em frente à casa deles, bem perto, passava essa linha do trem (T.G.V.) [1]. Eram pessoas que não podiam pagar o gás, nem a luz, nem a água. Viviam numa grande pobreza. Um dia veio um homem para cortar a água na estação de trem onde eles viviam. Ele viu a mulher, silenciosa. O marido não estava. A mulher estava atrás dele com uma criança de quatro anos e uma pequena, de um ano e meio. O empregado era um homem como todos os outros. Esse homem eu o chamei de O cortador de água. Ele viu que era alto verão. Sabia que era um verão quente, ele também o vivia. Ordenaram-lhe cortar a água, e ele o fez. Ele respeitou o seu emprego do tempo. Deixou a mulher sem água para dar banho nas crianças, ou para lhes dar de beber.
Essa mesma noite a mulher e o seu marido pegaram as duas crianças com eles e foram dormir sobre os trilhos do T.G.V. que passava diante da estação de trem abandonada. Morreram todos juntos. Andam cem metros. Dormem. Deixam as crianças tranquilas. Fazem-nas dormir talvez com algumas canções.
O trem parou, dizem.
Aí está, essa é a história.
Duras, M. A Vida Material
Há tantos anos venho tentando pensar o corpo. Suas relações com a palavra. O lugar que ocupa na nossa cultura. Como o corpo se escreve. Escreve? O corpo? Nas suas marcas. Nas minhas, nas nossas. Cheguei numa época em que já não se festejava tanto o corpo. Sua apoteose havia se transformado numa série bem-sucedida de noções pasteurizadas. Ele já não incomodava a cultura nem o status-quo. Esse corpo. Todo lustrado. Ordenaram-lhe fazer. Ele fez. Começou a gerenciar bem o seu emprego de tempo. Vez por outra um estimulante. Para fazer mais. Melhor. Fazer sempre melhor. E sempre. Sempre mais. Aquela reivindicação que apostava numa saída para os corpos, em sua liberdade sexual. Em sua experimentação constante de outros modos de vida. Que minorasse o ar rarefeito das hipocrisias morais, das ideias de sucesso e perfeição. De um mundo limpo. Brilhando. Lustrado. Branco. Estável. De casamentos eternos. E herdeiros imutáveis. Cheio de iguais sentindo-se sempre muito diferentes. Não é que quando tenha começado a pensar o corpo tudo isso já não valesse. Ainda vale. Só não estava mais ali. Na sala de jantar. Os anos sessenta e setenta realmente proporcionaram para a cultura ocidental uma verdadeira onda de apropriação dos nossos corpos. Queimar o sutiã não se circunscreve somente no seio do discurso feminista da época – ele diz para todos os corpos que cabe a cada um de nós tomar o seu próprio corpo. E ao mesmo tempo vai mais longe e diz que, paradoxalmente, isso só se faz junto. Entrelace fundamental esse aí. Meu corpo é meu quando todo mundo tem também o seu. A liberação é sempre um acontecimento comum. Da ordem do comum.
Mas hoje, vendo em perspectiva é preciso também dizer que a potência liberadora dos setenta acabou fetichizando nas décadas subsequentes a ideia de um corpo próprio [2] no decorrer dos oitenta, alastrando-se ainda e muito. Isso não tem nada a ver com apontar o dedo. Obviamente essa trama não estava ali definida, sequer almejada. Mas a reflexão é importante. Primeiro porque nos ajuda a não olhar para essa época mitificando-a, acreditando que tudo ali já foi feito ou, nessa direção, inventado. O que acaba nos desvalorizando ou nos descomprometendo para com as nossas tarefas e reivindicações hoje. Segundo porque é preciso mesmo entender que as sociedades não necessariamente conseguem operar as reconversões subjetivas necessárias para por em funcionamento as potências liberadoras que esses acontecimentos, digamos assim, esses acontecimentos disrruptivos e criativos promovem. [3] E por último, porque já é hora de saber, que as nossas sociedades, liberais, regidas por esse sistema pós-capitalista, geridas por máquinas biopolíticas sofisticadas, enfim, como buscamos aqui e ali apontar, essas sociedades vão sempre se apropriar das forças liberadoras dobrando-as em algo passível de ser consumido. É preciso estar atento e forte… E ver que, por exemplo: a tanga do Gabeira tornando-se sim liberadora para um conjunto de potencias erotizáveis do corpo masculino , assim como desestabilizando os esquemas rígidos entre masculino e feminino, ou ainda dando visibilidade ao que ali ainda não sabíamos bem o que era, não está imune de ser apropriada posteriormente, numa máquina em que o corpo masculino homoerótico deva obedecer a determinadas regras de beleza, consumindo modos e plataformas de desejo, sem no entanto efeminar-se em demasia. Numa sociedade machista como a nossa o homo erotismo masculino é aceito em determinados regimes e espaços, ganha vulto de consumo e poder de visibilidade, desde que esse corpo, cuidado, trabalhado e monitorado não se fragilize em demasia no universo ultra efeminado das ‘bichas’. Essas por sua vez acabam assim subalternizadas, num espaço inferior de consumo dessa plataforma desejante. Note o acoplamento econômico agindo diretamente sobre os corpos a serem construídos, ‘liberados’ para serem finalmente consumidos.
Nada disso quer tirar o brilho da purpurina, nem os efeitos surpreendentes. Trata-se de rever as conexões liberadoras dos fluxos desejantes, assim como de ver a apropriação ‘aparentemente’ liberadora, mas que acaba por acachapar novas potências, conexões e forças que ampliem a possibilidade de inscrição dos corpos, dos corpos sempre múltiplos no seio da nossa cultura. De fato, o que estou, isso sim, afirmando é que o destino liberador das potências marginais, políticas, descentradas, comunitárias, abertas e alternativas foram apropriadas na nossa sociedade com o intuito de localizar as reivindicações do corpo num mundo brando, branco, de consumo, perfeição, força e beleza. Ou seja, os corpos que não entraram naqueles anos [4] são esses que hoje vem finalmente pedir o seu lugar. Corpos que não se enquadram. Feios demais, gordos demais, frágeis demais, negros demais, pobres demais, putas demais, bichas demais aos olhos dessa máquina com ares higienistas e fascistas que não para de crescer em nossos tempos atuais. São esses mesmos corpos que hoje vem finalmente recusar o que a eles demos. Ou não demos. Incomodando as nossas certezas. Incomodando a nossa tão benevolente abertura ao diálogo. Eles agora não pedem passagem. Nem por ora, justificadamente, querem dialogar. Dialogar, nesse momento preciso, nessa passagem dura e necessária, significaria, entendendo o lastro da nossa experiência pregressa, pedir de novo licença. E isso é o que por ora precisamos a aprender ouvir. Esse modo, as vezes um tanto abrupto, essas certezas que afloram e afrontam os ambientes que antes podiam dedicar a maior parte de seu ‘emprego do tempo’ às dúvidas e aos questionamentos, essa certeza, é a necessidade premente de quem não pôde nunca falar. É a tomada mesmo de suas vidas em suas mãos. É a busca para que cada um possa dizer em qual assento quer ou não sentar. É pegar a cadeira. Fazer girar a roda. Que tiremos nós também a nossa bunda dali. Que a roda gire. E esse espaço apertado possa, desse modo quiçá, nessa dança das cadeiras, começar a acolher um número maior de bundas. E não apenas as nossas que se creem limpas porque brancas, assentadas, porque de direito. Revisão radical da noção de direito ressurge. Discussão a ser vista em múltiplas dimensões. Evitar que o lugar de fala torne-se tão sedentário quanto os nossos latifúndios brancos do pensamento será também um desafio. Não se apegar em demasia às cadeiras vale para qualquer bunda. Sim, peço eu aqui licença para dizer apenas isso.
*
O corpo do cortador de água não parou de trabalhar. Ele nunca mais deixou de cortar a água. Acabou transformando-se numa peça desse barco sem leme. Barco esse que incrementa sempre um novo estimulante às peças cada vez mais ágeis e produtoras. Nesse arranjo das sociedades do controle perdemos aquelas utopias das misturas que eram muitas vezes alimentadas pelos compartimentos divididos das sociedades disciplinares. Aqui parece que já estamos imersos sempre numa grande mistura. Ilusão sem fim das máquinas hiper-realistas do controle. Dificilmente experienciamos hoje algo próximo às misturas, às zonas indiscerníveis entre o indivíduo e o coletivo, entre o eu e o outro. Zonas essas que, se vividas em sua potência afirmativa e liberadora, tornam-se fundamentais para que se crie outro espaço comum. Uma vida comum. Uma existência juntos. Uma experiência partilhável. Um comum. E não um corpo político monolítico. Instrumento das decisões sempre de uma cabeça superior: o partido, a ideologia, a razão, o pai, a mãe, o presidente, o congresso. Uma cabeça só, una e indivisível orientando e aglutinando esses membros diversos, abertos e insubordinados dos corpos vivos. Não! Se algo aprendemos com eles lá atrás é que a experiência dos corpos políticos não são passíveis de serem unificadas. Aglutinadas. Que o corpo político não é um só. Ele se cria e se estabelece sempre nas relações. Nos encontros. Na abertura ao estranho e ao desconhecido. Ao outro. Ao que não sou. Ao que me desaloja. Me tira de casa. Se pudesse ter ido às ruas. E não tivesse ido dormir naqueles trilhos. Se houvesse uma rua me chamando. Onde coubessem também os filhos. Não ao desabrigo. Essa rua sempre teve. Já tinha passado por lá também. Se a minha casa não tivesse sido removida. Se aquele esgoto não inundasse todo dia o cheiro da minha sala de jantar. Se houvesse rua e não apenas ruela. Se não tivessem jogado o corpo dele naquele beco em que morava. Quer saber o que é o corpo? O corpo aqui é cadáver. E vocês ainda vem querer dizer que não entendem a nossa alegria. Bestas. A vida. A vida. Essa calmaria não bate nessa casa. O mar já tinha derrubado a ponte. A coisa aqui é revolta. É ruidosa. Faz barulho. Ninguém ouve com esse Rádio nessa altura. Vocês querem a câmara de música. Eu toco violino. Agudo. Escuta. Ele corta sobre os trilhos os teus dentes. O meu violino é feito de aço.
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Há muitos anos atrás, quando comecei a estudar as relações entre corpo e escrita para o meu mestrado sobre a obra Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, deparei-me com essa citação de um historiador inglês. Esse trecho sempre me pareceu muito forte, daqueles que traçam um corte entre o isso e o aquilo. Ainda não sei bem porque, mas vou tentar descobrir com vocês. Para a DR. Ele dizia que “muito antes de Descartes, um dualismo fundamental invadiu a mentalitéocidental; ser humano significava ser uma mente encarnada ou, na formulação de Sir Thomas Browne, um “anfíbio” (…). A mente é canonicamente superior a matéria”. [5]
Fiquei pensando no laguinho da minha infância. Cheio de sapinhos. Naquela época imaginava que eram esses os sapinhos que davam na boca da criançada, se a gente saísse beijando por ali. Estranha relação entre o controle da erotização do corpo na infância e os seres anfíbios. De todo modo essa citação me choca ainda porque coloca o corpo nessa escala evolutiva como uma espécie de máquina larvar. Despreparada para a vida terrena. Hoje olho para isso e gosto da citação. Sou capaz de subvertê-la, porque entendo justamente que a potência do corpo reside justo na sua capacidade larvar de resistência. Na sua plasticidade que lhe permite habitar dois, ou n mundos. Esse corpo terrestre, ditado pela ciência, esse corpo delimitado pelo arranjo físico ou fisiológico, orgânico ou anatômico nada mais é do que apenas aquele conceito de corpo que a mentalité ocidental fez triunfar. Talvez o mais frágil. O que se ocupa em demasia em nascer, em morrer. Braço forte do biopoder. A resistência larvar aponta para processos em construção. Para forças mais móveis e plásticas. Para algo menos duro, mas ainda assim capaz de se impor. Uma tonalidade afetiva que deve ser vista a sério. Uma discussão que não pode mais ser posta para debaixo dos tapetes. Fazendo-se sempre anexo ao mundo razoável e sério das nossas produções discursivas. Desestabilizar os lugares estabelecidos. Abrir os trilhos paralelos. Povoar de caminhos possíveis aquelas retas. Dobrar o aço. Voltar cem metros e ocupar com aquela família a empresa de água. Descobrir os meandros que vem escasseando as nossas energias. Abrir os discursos duros, científicos, econômicos, psíquicos, filosóficos para todo mundo poder ali falar. Entender. Discordar. Sair correndo com aquela família do trilho. Correndo. Mais cem metros. Numa velocidade ainda maior do que a eletricidade do trem. Os corpos juntos. Uma energia desconhecida. Ainda hoje resistente à mentalité ocidental. Anti-anfíbia. Multiplicar sapinhos. Criar contágios de vida. Tudo isso simplesmente porque sei que ali onde eles estavam um dia esteve parte de mim. Porque meu corpo não se termina numa linha geométrica nem em uma linhagem genética. Somos diferentes. Justo porque assim, ali onde somos diferentes é também onde você pode em mim viver.
No canto direito do quadro, há uma mulher. Ela está sentada na cadeira, mãos postas sobre o colo. O pequeno quarto ocupa a maior parte do quadro – a cama, o tapete, um pequeno sofá, uma cômoda e um espelho. Uma voz anuncia: “Et je suis partie”. Na tradução para o português, algo se perde, algo se parte: o original significa não apenas “E eu parti” mas também, em livre exercício de leitura, pode sugerir “E eu sou partida”. Este “eu” que se anuncia de partida, ou que se assume partido, permanece na imagem por exatos cinquenta e três segundos, imóvel e inteiro. O corpo está lá e dura, em grãos de luz e tons de cinza.
Trata-se do primeiro plano de Je Tu Il Elle (1975), da cineasta belga Chantal Akerman. É ela quem interpreta a mulher que partiu, a mulher partida. É dela a voz que diz “je”, assumindo, ao mesmo tempo, o lugar de diretora e personagem. Tal procedimento não é inédito em seu trabalho – seu primeiro filme, Saute ma ville(1968), já trazia a diretora como única personagem. Nele, vemos Chantal adentrar a cozinha, mas antes disso, nos é revelado um segredo atrás da porta – fixada abaixo de uma foto, uma folha de papel traz, escrita à mão, a expressão “C’est moi!”. Tal expressão poderia ser traduzida para o português como “Sou eu!”, entretanto, uma outra vez, algo se perderia na tradução: em francês, a contração do termo “Ce” com o verbo na terceira pessoa do singular “est” opera uma objetivação do “eu” – “Isto é eu”, seria a tradução literal, em que o “eu”, destituído do lugar de sujeito da frase, passaria ao lugar de objeto direto.
A questão do “eu” e do documentário, da ficção, do tempo e da verdade, são questões que nunca conseguirei responder. Por que não? Porque. Porque eu mesma não compreendo nada, nada mesmo. E sem dúvida, se eu compreendesse tudo, não faria mais nada. [1]
Estamos diante de um “eu” bem distante do cogito filosófico: eu que existe, resiste e se expressa nas margens do que não se pode pensar ou dizer. Chantal escreve: “Não há nada a relembrar, dizia meu pai, não há nada a dizer, dizia minha mãe. É sobre esse nada que trabalho” [2]. Ainda sobre a questão da autobiografia em sua obra, ela cita um trecho do diário escrito por Sydonie Ehrenberg, sua avó, aos 13 anos:
Eu sou uma mulher. Não posso, pois, dizer meus desejos e pensamentos em voz alta. Posso apenas sentir escondida. Portanto de você, diário, o meu, quero apenas poder dizer um pouco dos meus pensamentos, dos meus desejos, de meus sofrimentos e alegrias, e tenho certeza que você não me trairá porque será meu único confidente…” [3]
Chantal comenta: “esse diário, guardo comigo”. A diretora parece ter guardado de sua avó não apenas as memórias, mas o método: fazer da escritura, no caso, fílmica, uma forma íntima e constante de expressão. Em 1996, ela senta-se novamente numa cadeira, dessa vez de frente para a câmera. Está gravando um programa para a série de TV francesa Cinéma de notre temps, que irá resultar no filme Chantal Akerman por Chantal Akerman. Tem nas mãos um texto, que lê continuamente. Ela diz: “quando revejo meus filmes antigos, penso como pude fazê-los? Não fui eu, foi alguém de desconhecido que os fez.” E admite: “preciso de uma forma, um conceito, um dispositivo, para depois preenchê-lo de alguma coisa. (…) Conseguirei então mobilizar esse desconhecido de mim. [4]
Sim, ela sabe: o cinema pode oferecer “uma forma, um conceito, um dispositivo” para mobilizar o que não se pode dizer, saber ou conhecer. Ela sabe também que fazer um filme exige, entre outras coisas, haver-se com si própria, investir na obra uma dimensão reflexiva, estabelecer com as imagens e sons alguma relação de desejo. A sofisticação de seu cinema está na maneira como ele escapa do egocentrismo em favor de uma relação com o exterior, com o que ultrapassa e atravessa o corpo – o fluxo do tempo, a vastidão do espaço. Colocar-se em cena, nesse sentido, não é gesto movido por mero impulso autobiográfico ou confessional, mas pela necessidade de estabelecer conexões entre a primeira e a terceira pessoa, o interior e o exterior, o íntimo e o estranho, o pessoal e o político.
Trata-se, portanto, de um “eu” que toma o ato de criação como via de deslocamento, que obriga este mesmo “eu” a se reposicionar: não mais centro a partir do qual emanam ideias e sensações, mas ponto que se liga a outros pontos, outros sujeitos, outras histórias. O movimento que interessa a Chantal é o de descentralização, como uma lenta panorâmica que busca capturar detalhes do espaço, dos objetos, dos móveis, da luz que entra pela janela, flagrando o corpo apenas de passagem – o que seria, sumariamente, a descrição do que se passa em La chambre (1972). Uma outra vez, é ela quem está diante da câmera, deitada na cama, mas o olhar não se demora nela, antes, desloca-se numa varredura espacial que dilata o tempo da tomada, lentamente compondo um espaço que, em sua circunspecção, apresenta-se constantemente modificado, reinventado à medida que a câmera circula por cada elemento da cena. Não há centro, no cinema de Chantal: a economia formal que orienta, com rigor, suas imagens, cria uma espécie de força centrífuga que orienta o olhar em direção à região marginal da imagem, lá onde tudo se movimenta, tudo escapa. É tênue, embora bem delineada, a linha que separa o que está em quadro do que está fora, e é exatamente essa linha, essa fronteira, que Akerman busca explorar através de seus planos fixos, geométricos, extremamente bem compostos, como quem trabalha entre os “dois excessos” sobre os quais escreve Bresson: “a ordem para criar e a desordem para fazer a vida”.
Assim, seu corpo em cena torna-se, ele próprio, campo de uma experimentação firmada entre a imobilidade e o movimento, a repetição e a invenção, a ordem e a desordem. “Olha-me, então, de corpo inteiro”, diria a personagem de Je Tu Il Elle, a mulher de cabelos escuros que se despe frente ao reflexo da janela, que arrasta os móveis pela casa, que escreve cartas enquanto se alimenta de açúcar, que dá prazer ao homem a quem pede carona, que finalmente se deita com outra mulher, performando o ato amoroso como se dele restasse apenas linhas, volumes, luz e contraste. “Veja do que meu corpo é capaz”, diria a personagem de Saute ma ville, a mulher de cabelos escuros que, ao engraxar os sapatos, acaba por sujar as próprias pernas, a mesma que come e bebe com gestos exagerados, que veda a porta da cozinha e acende o gás, como quem declara: “meu corpo também é capaz de morrer”.
Na primeira parte de Je tu il elle, a menina que escreve cartas durante o que parece ser uma eternidade diz: “Sabia que estava ali há vinte e oito dias”. Mede-se o tempo pelo ciclo do corpo: a cada 28 dias, sabemos, a mulher sangra. Sobre este filme, um homem escreve:
a novidade em Chantal Akerman está em mostrar assim as atitudes corporais como signo de estados de corpos distintivos da personagem feminina enquanto os homens apontam para a sociedade, o ambiente, a parte que lhes cabe, o pedaço de história que arrastam consigo. Parado ou no espaço, o corpo da mulher conquista um estranho nomadismo que lhe faz atravessar idades, situações, lugares. [5]
Em seu “estranho nomadismo”, Chantal não apenas oferece ao cinema um outro olhar sobre o corpo feminino em contraposição ao male gaze, como propõe um aprendizado que começa por este corpo. Corpo que sangra em perigos regulares, que é capaz de gestar e parir, se assim for, ou que é capaz de fugir e se negar a tudo isso, se assim desejar. Silenciado, canonizado, castrado, queimado na fogueira, santificado em nome de Deus, satanizado como objeto de desejo e perdição, o corpo feminino é aquele que, historicamente, esteve sempre de partida. Et je suis partie, diz a mulher. E deita-se, nua, páginas escritas ao redor, sobre o colchão.
Pense em uma mulher grávida, que anuncia que gera uma menina, quais sentimentos surgem em você com este anuncio? Sejam honestas e honestos! Homens próximos, como irmãos, o pai e o tio, muitos tem aquele sentimento de proteção extrema, os amigos do casal já irão citar aquela frase – “Ah! o filho de beltrano tá aí, hein?” – ou frases do gênero. Alguns e algumas irão quase se lamentar por isso, por mais que não digam, e a palavra princesa, (sendo ela um substantivo feminino, ou um adjetivo neste momento) será dita milhares de vezes, palavra está que nos remete ao reinado, mulheres ditas “puras”, (faça uma busca no Google com a palavra princesa, e a Disney sairá em disparada na lista. Com isso observe quem são elas, cores, etnias, cabelos, estética, corpo) tradição, padrões e grandes expectativas a serem cumpridas ao longo da vida, você consegue ver violência nisso? Ainda não? Vamos lá!
Meninas crescem vendo padrões de corpos que devem ter – Meninos vendo padrões de corpos que devem desejar, o desejo de alcance e o desejo de possuir são iniciados neste período, onde meninas mais próximas aos padrões estabelecidos pela sociedade serão as populares na escola, e as que fogem disso serão as excluídas, isso não diz respeito apenas a relação homem e mulher, mas em relação a sociedade em geral, pois questões de orientação, identidade sexual e rivalidade construída estruturalmente entre mulheres pela sociedade patriarcal começa a aparecer.
Meninas precisam exercer sua feminilidade, com seu cabelo ajeitado, vestido rosa, desejar ser mãe e cozinhar, pois este é o seu papel, e toda e qualquer mulher que fuja disso, será apontada, discriminada e não será bom o bastante para ser a “nova mãe” do futuro parceiro.
Tudo o que nos foi imposto, foi de forma violenta. Mas ao falarmos de violência, seja ela qual for, já entendemos que houve alguma agressão física, que alguém está machucado a ponto que qualquer um possa ver e se indignar, uma ferida aberta na pele, um olho roxo, alguns dentes a menos, sangue e cicatrizes do tipo que se tornarão notícia, e uma mulher aparecerá careca, sem sobrancelhas, com cortes no corpo, e o jornalista dirá em tom de indignação que isso precisa acabar, e todas podem ligar para o 180 e denunciar, que #somostodosmulheres. E afinal, isso sim é violento.
Mas você já ouviu alguma vez aquele cara que diz -“Mas eu nem sou violento, por que me chamam de machista? Mas eu até ajudo em casa, eu dou carinho, troco a fralda, e puxa, até coloquei o lixo na rua, lavei a louça e assumo meus filhos.”
Ou pior, -“Eu não saio para beber, e não chego muito bêbado em casa, não bato na minha esposa e filhos, trago o sustento pra casa, nunca deixei faltar nada.”
É com essas malditas frases que tentam manter o nível baixíssimo do mínimo ridículo de homens que se dizem “bons” e em desconstrução, com aquela chamada “tenha paciência, estamos em processo” mas que no fundo não querem rever os privilégios e sim, passar como alguém que luta e é contra a violência. Não estou aqui dizendo que não irão mudar, estou dizendo que precisam de mais esforços, mais noites sem dormir com aquela frase que falou achando que era normal e tomou várias por isso, ter um papo sobre rever os espaços com aquele super amigo que fala um monte de asneira que ofende as mulheres. Só assim, no incomodo, na necessidade, no total desconforto haverá de fato uma mudança real, a desconstrução não é simples, não é de fácil absorção, causará feridas que são necessárias para que as cicatrizes das mulheres possam se transformar em tatuagens de movimento e avanço.
As questões levantadas se abatem sobre todas as mulheres, nos colocando em um lugar de culpa e responsabilidade sobre tudo que ocorre conosco, seja, o filho que vai mal na escola, a comida que não está pronta, a barriga que apareceu, a calça que não cabe mais, ao estupro do parceiro ou de um desconhecido, porém quando combinamos os diversos sistemas de desigualdade como gênero, etnia, raça, classe, orientação e identidade sexual e discriminações como gordofobia e xenofobia entramos em lugares de opressões que se acumulam, onde as lacunas de direitos sobram e são preenchidas com violências cotidianas, que vão desde o xingamento “ingenuo” a menina negra na escola, a exclusão da menina gorda, a depressão que causa baixa autoestima, violências físicas, psicológicas, materiais ao feminicídio como resultado final.
São estes acúmulos que precisamos olhar com um cuidado ainda maior, pois a estrutura patriarcal construiu todos os mecanismos de sua existência, através da construção das desigualdades que se retroalimentam.
Uma das sobreposições está na sexualização do corpo negro no Brasil, que vem muito antes das “globelezas”, mas desde o início das escravizações onde as mulheres negras eram escravas no trabalho braçal, como amas de leite e até escravas sexuais que eram estupradas por seus senhores, já que suas esposas eram tidas como puras e impróprias para satisfazer seus desejos carnais. Aqui nasce aquela frase racista, “vai atrás de suas negas”, que muitas ainda dizem como se fosse uma simples frase sem contexto histórico de exploração de corpos negros que foram estuprados ao longo dos séculos, e que ainda, infelizmente continua a alimentar as estatísticas, pois segundo o IPEA em março de 2014, 51% das vítimas de violência sexual eram mulheres negras.
Sabemos ainda que existe uma previsão de estes casos serem ainda 10 vezes maiores que o contabilizado pelas delegacias, já que estes crimes ocorrem muitas vezes por pessoas próximas a vítima, como o próprio parceiro, irmãos, pai, tios e amigos da família, e muitos nunca virão a público por motivos de medo, insegurança, culpa e/ou por nunca saberem que foram violentadas sexualmente, pois estavam apenas cumprindo o seu papel de “esposa”.
Com as culpas e responsabilidades que nos são impostas, a discussão precisa ser vista com dados, cutucando as feridas da sociedade, chegando à uma das raízes do moralismo arcaico e racista.
Segundo o censo de 2010 do IBGE, 14,1% das adolescentes grávidas eram negras, contra 8,8% das adolescentes brancas, números estes que caíram em comparação a 2000, mas ainda assim, existe uma desigualdade em tratamento com o estes corpos, onde a proporção de mortes de mulheres negras em decorrência de um aborto é de 2,5 vezes maior que em grávidas brancas, segundo o trabalho do Instituto de Medicina Social do Rio de Janeiro, pois a maioria destas não possuem recursos para ir a uma clínica clandestina que por sua vez também oferece risco, mas ainda assim possui cuidados mínimos. Mulheres negras, sem este recurso optam por métodos perigosos como a ingestão de comprimidos controlados e vendido de forma ilegal, à introdução de materiais pontiagudos com a intenção de provocar um aborto de forma manual. Eu sei, parece tenebroso, mas é sim, precisamos colocar na mesa que métodos são estes que podem matar essas mulheres, causar feridas físicas em seus corpos, e feridas ainda maiores psicologicamente que serão levadas por toda a vida, não pelo aborto, mas pela condição de optar em quase morrer para “salvar” um trecho de sua vida que poderá mudar por completo se seguir com o que não deseja. Isso, se ela sobreviver.
São por estas condições que a legalização do aborto precisa ser discutida de maneira intensa, não estamos falando de mulheres que engravidam e desistem, ou de transformar o aborto em um método contraceptivo, ou que todas as mulheres serão obrigadas a abortar. Estamos falando de um sistema que culpa essas mulheres por serem mulheres, e protege homens por serem homens. Para estes últimos o “aborto” é feito no momento em que decidem não assumir a paternidade. No caso das mulheres, está em jogo sua própria vida em qualquer decisão que tomarem, seja dando prosseguimento a uma gravidez indesejada, ou abortando e TALVEZ seguindo.
O que discuto não é o tirar ou não tirar a vida, é o se manter viva e completa. É a chance de se reconstruir uma vida que não nos foi dada e sim tomada pelas mãos de forma violenta.
Reconhece as violências? Vê os níveis de violências causada que se sustentam na sobreposição? Você é violento com uma mulher ao achar que faz demais ao lavar uma louça? Você é violento quando deseja mulheres negras, mas só se relacionou de fato com mulheres brancas? Você é violento ao achar que sua parceira é obrigada a transar só porque você quer? Você é violenta e violento ao achar que mulheres negras são mais fortes? Você é violento ao achar que é um homem exemplar? Você é violento ao proteger meninas, ao invés de ensinar meninos a respeitá-las?
Me consideram violenta porque acham demais eu dizer que estou viva e completa, e sou quem sou por uma escolha drástica no meu próprio percurso do viver, porque eu grito todas as vezes que sinto que sou desrespeitada. Porque acham violento quando imponho minhas condições quanto mulher negra periférica, dona de um corpo que passou a ser dela, ao entender o porque acreditavam que ela não o possuía, porque acham violento eu fazer apenas o que desejo, porque acham violento eu não aceitar mais coisas que suportava anos atrás, porque ainda acham violento você ser mulher negra e DONA de si!
A colonização brasileira fez das mulheres indígenas e negras corpos disponíveis para o trabalho e o gozo. Desde que o mundo é o mundo do desenvolvimento, do patriarcado capitalista, usou-se da mulher como quem se dispõe da própria terra: um corpo-campo existindo para que dele se extraia. O campo e suas mulheres é o que foi deixado para trás, como atrasado e anacrônico, dele saindo apenas o necessário para o mundo que se criava.
No Norte de Minas Gerais, de onde escrevo este texto, e em muitos territórios campesinos, esta violência colonialista e patriarcal não acabou. E se renova sempre, constante ameaça: é o que vivem as mulheres nortemineiras quando suas comunidades são invadidas por mineradoras transnacionais, que, com a desculpa de geração de empregos e circulação de capital/mercadorias, violentam recursos naturais, aumentam índices de violência sexual e prostituição, e, findo o trabalho, abandonam o pedaço de chão como quem larga um corpo após se saciar. Estas mesmas mulheres que aprenderam com suas mães (que, por sua vez, aprenderam com as mães de suas mães) ofícios e práticas de curandeiras e parteiras, mas são desprezadas em detrimento de um saber técnico científico que as vê como pitorescas ou impostoras. Mulheres que do café ao jantar se dobram em cuidados para o marido que vai cedo trabalhar na roça, e precisam ouvir que seu trabalho reprodutivo não tem nenhuma relação com o trabalho do homem, que “realmente” gera renda para a família enquanto elas ficam lá, “sem fazer nada”.
É certo que todas as mulheres, apenas por carregarmos nosso corpo e nele uma identidade e uma história, levamos o território mínimo a ser explorado, a qualquer momento e de qualquer maneira, pela violência sexista. Mas aquelas inseridas em situações específicas vivenciam vulnerabilidades que só elas conhecem; e é o caso das mulheres que dependem financeiramente do marido, que não tem seu trabalho reconhecido, que sofrem com baixa auto-estima, tem sua atuação política cerceada e ameaçada. Em pesquisa realizada pela CONTAG e pelo IPEA com mulheres que participavam da Marcha das Margaridas em 2011, 55% disseram já ter sofrido violência moral e 25% violência física. A divisão sexual do trabalho, que destina ao feminino o espaço doméstico de invisibilidade e silenciamento, mina pouco a pouco a valorização da mulher do campo, e o que começa como palavras de humilhação vindas do parceiro não tarda em evoluir para ameaças e agressões físicas.
Pergunto para Maria Lúcia Agostinho, geraizeira e agricultora, qual é a diferença de ser uma mulher no campo. Ela me responde sem medo: “é essa questão de não ter o dinheiro dela, né. Fica mais difícil pra mulher encarar o marido violento”. Maria Neuracy de Sá, sua amiga, complementa: “E além disso, quando faz um serviço na casa ou na horta, [o marido] fala que tá só ajudando. Não é ajuda não, é trabalho!”. Há quase dez anos, as duas participaram da criação do Coletivo de Mulheres do Norte de Minas, que surgiu como “uma rebelião das mulheres para ocuparem mais espaços”, como elas mesmas contam. Hoje, o Coletivo está em mais de 30 municípios, anima grupos produtivos de mulheres e participa da Marcha das Margaridas, Marcha Mundial das Mulheres e do GT Gênero da Articulação Nacional de Agroecologia.
Os grupos de mulheres são hoje espaços de resistência à violência de gênero no campo. Aos poucos, mulheres agricultoras vão exercendo a poderosa subversão de se encontrarem, ainda que seus parceiros e famílias nem sempre apoiem as reuniões. “O meu mesmo é muito machista”, diz Maria Lúcia. “Tem muito marido que não deixa a mulher sair, falar… e tem violência pior que essa? Mas eu vou do mesmo jeito, participo de todo encontro”. Assim, ao mesmo tempo em que se organizam para produzir polpas de frutas ou hortaliças, estas mulheres começam a falar de suas vidas, partilhar histórias que percebem tão parecidas, e desta forma compreendem o que já diziam as feministas dos anos 60: o pessoal é político. Mulheres reunidas falando sobre algo que alguém não quer que elas digam é sempre um ato revolucionário, e para a realidade do campo este ato significa agricultoras assumindo vozes de denúncia e criação. Elas falam sobre suas vidas, tomam decisões, criticam e exigem. Saem do doméstico e do privado para adentrar na esfera do espaço público, participando de organizações de representação coletiva e defesa de direitos.
São estas mulheres, assim como povos e identidades que resistiram à margem desta civilização fundada pela violência, quem hoje ensaiam as respostas para a crise de um mundo para o qual nunca foram plenamente convidados – respostas que nunca seriam capazes de formular aqueles envolvidos demais com sua lógica colonialista, patriarcal e capitalista. Estas mulheres se organizam em iniciativas de economia solidária e feminista, experimentam dinâmicas de Bem Viver, ousam saberes descolonizadores de produção através da Agroecologia. Se não fogem à DR, empoderam seu estar-no-mundo, e exigem de outras pessoas que sejamos mais respeitosos e feministas. Quilombolas que batem forte no peito e nos tambores, agricultoras que usam plantas medicinas e sementes crioulas, indígenas que vão para a linha de frente. Parteiras, rezedeiras, curandeiras, jovens, mães, avós, com forte vínculo afetivo ao que não é apenas terra, mas território: chão de afetos, saberes e belezas pelos quais toda a luta vale a pena.
E todas elas me lembram que também sou um território a ser defendido.
2016, o ano que veio para ficar. As letras boiavam nas águas do mar de Copacabana na noite do dia 31 de dezembro, em referência a realização dos jogos no Rio de Janeiro. A frase foi também o mote de peças publicitárias relacionadas ao megaevento esportivo, e na ocasião, antecipava a comemoração da prefeitura pela concretização do que tem sido chamado pela grande mídia e pela classe política de ‘sonho olímpico’.
Para quem como eu leu ali uma ameaça, a coisa foi ficando cada vez mais evidente com o passar dos meses. A falência do Estado acompanhada e justificando o aumento da violência do mesmo contra as populações negras e periféricas, a continuidade dos processos de remoções, a (re)ocupação militar das favelas, o aumento do custo do transporte, o corte das linhas de ônibus (já efetivado em 2015), a ornamentação temática dos muros erguidos para esconder as favelas da Maré dos turistas que chegam pelo Galeão, dentre outras fronteiras reais e simbólicas, explicitam que, no trajeto entre os territórios da cidade, o trânsito dos corpos como fluxo contínuo nunca foi possibilidade para todos.
Compreendendo que os territórios são como zonas operadoras de intensidades, uma vez que produzem subjetividade, aciono minha vivência de mulher negra, submetida aos esquemas de vigilância e controle que me colocam em situação de vigília maior do que o fazem com pessoas brancas. Logo percebo como são construídas neste contexto as desculpas perfeitas para que eu ande pela cidade com o pé no freio, sabendo, entretanto, que meus trânsitos são facilitados por pertencer a classe média pós-graduanda. Ainda assim, sinto-me soterrada.
O sonho olímpico e suas promessas de trânsito total, de integração consensual, desemboca em abismos reais, num contínuo soterramento de diversas possibilidades de relação entre corpo e cidade. Em um texto recente [1], relato como minhas experiências de deslocamento entre regiões e cidades – as migrações da Paraíba para Bahia, e depois para o Rio, promoveram vivências capazes de forjar em mim territórios afetivos nos quais as marcas raciais e regionais aparecem não como características originárias, mas como experiência de fabulação e trânsito.
Aqui, escrevo a partir de outros movimentos. Componho uma pequena articulação de dois fragmentos de diários sobre sonhos, e os observo através de um dos processos disparados pelos encontros realizados no primeiro semestre de 2016, durante a oficina Resistências Feministas na Arte da Vida [2], no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. Repito aqui o gesto proposto durante os encontros: a autópsia – ver por si mesma : efetuar cortes, investigar as marcas, encontrar as feridas que restam abertas e habitar as ruínas em nós. Lanço mão das tentativas de forjar outras corporeidades, e não apenas de formular pensamentos sobre o corpo. Noto que a partir deste gesto posso tentar refazer meus caminhos pela cidade.
Há, certamente, muitas maneiras de fabular um corpo. Na oficina, escolhemos começar quase todos os encontros sonhando. Sonhando e lembrando de sonhos antigos e de sonhos recentes. A proposição do sono profundo indicava, primeiramente, um convite a habitar o espaço de maneira distinta das frequencias que nos atravessam no cotidiano pré-olimpico/paranóico carioca dos últimos meses, tomando uma certa distância da cidade empresarial e do barulho das britadeiras que operam o soterramento que antecede o monumento, e que ergue as fronteiras que o protege.
Na repetição deste exercício, meu corpo se dá conta tanto das ruínas quanto das fronteiras que experiencio cotidianamente, mas essa consciência não é um dado unicamente intencional. Antes de ser uma consciência completa que lança sua atenção sobre os processos de soterramento, é uma consciência que se efetua na sensação de aterramento do meu próprio corpo junto com o corpo da cidade: a tristeza, o medo, a ansiedade e a insônia. Constato que meu ‘sono é ruim e o sonho tarda a vir’ [3].
Registro de diário (ausência de sonho): O sono me abraça como o faz com depressivos. Passado um período em que aparecia em demasia e era acompanhado por pesadelos, nas últimas semanas algo me desperta antes (as vezes bem antes) das primeiras 5 horas de descanso, e as tentativas de retomá-lo são geralmente inúteis. No pouco que durmo, não sonho. Desperta, me dou conta que a tristeza me acomete como doença. Como se o mundo todo, a política, a Copa, a costela fissurada, as crises de asma, a família e a morte (com a qual lido tão pouco e tão mal), tivessem mostrado suas parcelas insuperáveis, das quais sempre tive medo. Diante delas meu corpo não aguenta.
Em julho de 2014 eu não sonhava, mas agora, deitada e descalça, ocupo-me de desterrar a mim mesma, minha memória faz sonho daquilo que deveria ser esquecido. Em pequenos movimentos, reorganizo as dinâmicas pelas quais minhas lembranças se alicerçam sobre uma série de esquecimentos, dores não partilhadas, tempo que não deveria ser jogado fora, o esmagamento de fluxos tidos como improdutivos. Neste movimento, revisito um corpo em coma [4], lembro dos sonhos esquecidos:
Registro de diário (lembrança de um sonho recente): T é uma mulher negra que foi cuidada “como filha” pela minha bisavó paterna em Campina Grande na Paraiba. Sempre silenciosa e discreta, ela era ‘da família’ , embora tenha sido a única a ter funções específicas no trabalho doméstico. No meu sonho, ela deitava sobre meu corpo, ambas de barriga para cima. Senti cócegas quando seu cabelo crespo encostou no meu rosto, senti também as lágrimas que lhe escorreram e me alcançaram: – Tenho 98 anos e só viverei mais 2, ela me avisou: – Não quero morrer servindo. Continuamos deitadas uma sobre a outra, sinto o pouco peso do seu corpo magro como o calor de um abraço. E depois acordo
Quando eu nasci, T já tinha 56 anos, vivíamos praticamente todas na mesma casa, ela, minha avó, tia A (irmã sanguinea da minha avó), minha mãe e meu pai, e sendo meu pai filho adotivo, todos os demais familiares, primos, tios e amigos eram brancos, exceto eu, meu pai e T. T foi assim, durante muito tempo, a única mulher negra com quem mantive relações de intimidade.
Lembro que fui com T na festa de São João de Campina Grande no final dos anos 90, e enquanto assistíamos a apresentação das quadrilhas, adolescentes sentiram-se autorizados a tocar seus cabelos crespos dando ao penteado dela outras formas ‘- Parece algodão doce’, debochavam, ao que ela respondia com um sorriso de canto de boca. Apenas depois dos 90 anos de idade T passou a recusar emprestar o próprio dinheiro aos gestos caridosos de minha avó, que quando não tinha dinheiro em casa solicitava o dela sem constrangimentos para efetuar suas generosidades. Quando criança eu perguntava para T se ela nunca tinha pensado em casar, ela me respondia sempre um ‘não’ beeem cantado, seguido de um sorriso envergonhado, como se aquela nunca tivesse sido sequer uma possibilidade.
Não me lembro de ouvir ela reclamar em nenhuma das inúmeras situações de constrangimento social e de racismo que a vi experienciar durante a minha infância; hoje, percebo que T construiu para ela outros espaços de vivência, longe da casa (grande) que era quase a sua, mas definitivamente não era: o grupo da terceira idade, no qual ela era a companheira mais velha e ganhava festas supresas de aniversário, as viagens que ela passou a fazer sozinha depois que conseguiu a aposentadoria. Contudo, as condições pelas quais uma família é a quase família de mulheres, em sua maioria negras, que fogem da fome ainda é, infelizmente, lugar comum nas relações serviçais de gênero e raça Brasil afora. Quando eu era criança, brincava de detetive tentando encontrar as provas de que T era a mãe biológica do meu pai, buscava as relações de ancestralidade que me eram impossíveis.
Assim como T, precisei efetuar diversos deslocamentos até aprender que o corpo da mulher negra pode pertencer a ela própria. Acompanhada de sua lembrança, sigo tentando abandonar a ansiedade em ser apenas cordial e bem quista nos muitos espaços nos quais me sinto isolada e oprimida. A academia, o supermercado, o consultório médico… são muitos os territórios da cidade que solicitam meu silêncio.
Grada Kilomba, escritora, poeta e psicóloga, no último capítulo de seu livro Plantation Memories (2010), atenta para o soterramento das histórias da escravidão, o que invisibiliza as atualizações destas relações e silencia sobre o caráter traumático das experiências de racismo cotidiano: “Escravidão e colonialismo devem ser vistos como coisas do passado, mas eles estão intimamente atados aos presente”, afirma. Referenciando o trabalho de Jenny Sharp em Ghosts of Slavery(2003), Grada continua: “Nossa história nos persegue porque foi enterrada inapropriadamente. Escrever é, neste sentido, uma maneira de ressuscitar um trauma coletivo e sepultá-lo apropriadamente (KILOMBA, 2010, P.146)”.
Convocar o movimento da memória e dos sonhos consiste, portando, na tarefa de recuperar um evento traumático de uma biografia individual para que ele se junte ao trabalho de revelação da história coletiva do trauma colonial, para que possamos pensar o que o racismo produz, enquanto ferida, nas experiências de violência que nossos corpos experienciam ao transitar na cidade monumental, cujo o sonho não partilhamos.
O movimento do corpo sobre si mesmo e a escavação de nossas ruínas é por isso um gesto político, porque reescreve a memória coletiva, neste caso, reescreve a memória da escravidão, que séculos antes dos horrores do holocausto marca a história, mas que como aponta Jota Mombasa [5], compõe um conjunto de violências produzidas pelos processos de colonização, as quais nunca foram tidas como suficientes para desestabilizar os paradigmas do humano, ou novamente nas palavras de Grada, a escravidão nunca foi compreendida sob a perspectiva do trauma, como o extermínio do povo judeu, devidamente, o foi. Esta não-inscrição garante que o cenário da suposta superioridade branca se atualize, e que nossas feridas, provocadas pelo racismo cotidiano, permaneçam abertas, porém soterradas.
Encarando os soterramentos aos quais somos submetidas, cada pessoa de maneira singular e eu em face do racismo e do machismo cotidiano, e diante da atualização das relações de escravidão no ambiente familiar, percebo que aquilo que na ausência de sonho formulo como insuperável é na verdade o enterro impróprio de minhas lembranças.
Aos poucos, tento parar de sonhar comigo mesma e com aquilo que me cerca para que um outro corpo possa surgir, fragmentando e recompondo corporeidades, ora como projétil, ora como fóssil. Nesta dimensão, meu corpo não busca uma origem, embora trabalhe para fazer ver os rastros das forças ancestrais; sabe que é ele próprio uma fratura da ossada dos mortos que carrega.
Retorno ao meu próprio corpo sem esperança de superá-lo ou resolvê-lo, mas sim para observá-lo atravessado pelas forças do mundo. Desterrar é o movimento de costura dos tempos, passado e presente, e pode ser um dos trabalhos mais preciosos do corpo. Fabula memória e faz sonhar.
Pirataria:
Que relação existe entre concursos de beleza, a boneca Barbie e o feminismo? Aparentemente, nenhuma. Eternamente jovem e sempre sorridente, a Barbie com sua cabeça removível e suas medidas corporais improváveis só podem irritar as mulheres cuja sensibilidade feminista está minimamente desperta. As preocupações existenciais da Barbie, que giram basicamente em torno da escolha de sua roupa, sua bolsa e do seu cachorro, parecem de fato estar muito afastadas das preocupações feministas. E no entanto! O vínculo entre a Barbie e o feminismo não é tão absurdo assim, já que, quando nos anos 1950 Ruth Handler propôs a seus colaboradores masculinos da Mattel (marca que ela fundara com o marido Elliott Habdler, em 1945) criar uma boneca com peitos, seu projeto foi inicialmente rejeitado de cara. É preciso dizer que, naquela época, Ruth Handler era a única mulher na equipe da Mattel. Desde o início, o corpo da Barbie causou problemas, mas estes mudaram de natureza segundo a época. Nos anos 1950, o que incomodava os consumidores americanos eram seus peitos e sua cinturinha, que lhes davam a aparência de uma pessoa adulta e, assim, diferenciavam-na das bonecas para brincar de mamãe, muito populares nessa época nos Estados Unidos. Era óbvio que com seus peitos, sua maquiagem e seus acessórios fantasiosos, Barbie não estava muito adaptada ao papel de um bebê, babando no fundo do berço. E simultaneamente retirava das meninas a possibilidade de brincarem de mamãe. Ora, se uma boneca não produzia a desejada relação imaginária entre o bebê e sua mamãe, para quê que ela serviria mesmo? Essa era a incerteza que parecia preocupar os colegas de Handler, enquanto o objetivo da co-fundadora da Mattel era justamente o de criar uma boneca nova que permitisse que as meninas se projetassem em outros papéis além do de mãe. Para os Estados-Unidos da década de 1950, tratava-se portanto de um gesto terrivelmente militante. A Barbie da época não tinha nem filhos, nem marido, nem mesmo cozinha! Foi só mais tarde que, após diversas solicitações dos consumidores, Ruth Handler decidiu criar o Ken. Desprovido de personalidade, com seu sorriso abestalhado, o boneco sempre permaneceu na sombra da Barbie, inclusive em números de venda. Eis o paradoxo. Barbie se tornou hoje o símbolo de muitos dos males próprios ao mundo capitalista: o consumismo compulsivo, o sexismo, a objetificação do corpo feminino e sua sujeição às fantasias sexuais dos homens, tudo aquilo que tinha sido pensado inicialmente como verdadeiro instrumento de emancipação e diante do qual os homens ficaram desconfiados por muito tempo.
A história da Barbie, e principalmente a re-semantização da boneca que aconteceu durante a segunda metade do século XX, me parecem oferecer um bom ponto de partida para refletir sobre o lugar que vários grupos ameríndios reservam hoje aos concursos de beleza. As competições cujo objetivo é eleger uma Rainha, uma Princesa ou uma Miss, são regularmente organizados pelos indígenas em todo o continente americano, na ocasião de diversas festas (Dia do Índio no Brasil, festas de Santo na Guatemala, aniversários nas comunidades nativas do Perú, pow-wow nos Estados Unidos e Canadá etc.). Apesar de todos esses concursos serem amplamente inspirados nos concursos nacionais, eles mesmos modelados nas mises en scènes espetaculares de Miss World e Miss Universo, fazem aparecer lógicas e questões singulares que às vezes estão em ruptura com os grandes espetáculos televisivos.
Enquanto nestes últimos trata-se de escolher uma Miss cujo corpo corresponderia melhor aos padrões cada vez mais universalizados de beleza e de feminilidade (universais porque as vencedoras dos concursos nacionais participam depois dos concursos de Miss Universo), as candidatas indígenas ao título de Rainha, mais do que seduzir o júri, devem sempre demonstrar um apego a sua cultura, um domínio perfeito de sua língua materna, um engajamento político pelo seu grupo, assim como o conhecimento profundo das técnicas artesanais e dos saberes ancestrais. “It’s not a beauty pageant!” (Não é um concurso de beleza!) defendem os organizadores e participantes dos diversos concursos de Miss indígena nos Estados Unidos, chamados antigamente de “concursos culturais”. Que se trate do concurso de Miss Algonquino, Esquimó, Navajo ou Cree, ele é uma etapa importante na formação da liderança feminina, durante a qual as jovens moças desenvolvem suas capacidades oradoras e aprendem sobre a história e os direitos dos povos indígenas no mundo inteiro.
Os etnólogos norte-americanos insistem na importância dos discursos das candidatas indígenas durante os concursos de beleza, quando evocam os problemas, muitas vezes gravíssimos, ligados à vida cotidiana nas reservas: ausência de escolas em algumas comunidades, poluição do meio ambiente, síndrome do alcoolismo fetal, assim como a perda e o esquecimento da língua ou o declínio da transmissão dos conhecimentos tradicionais. Essa parte discursiva e nitidamente militante da competição poderia ser interpretada como um contraponto necessário às imagens muitas vezes exóticas e folclóricas de indianidade encenadas durante o espetáculo que, apesar de agradar ao público, pouco têm a ver com a vida contemporânea das mulheres indígenas. É justamente essa disparidade induzida pelos concursos, entre a representação romântica da autoctonia e a realidade, que as candidatas indígenas denunciam sistematicamente. É de se notar que o laço estreito entre o concurso de Miss e a política não se deve a uma particularidade ameríndia, mas sim americana. Sarah Palin, terceira colocada no concurso de Miss Alaska em 1984, governadora desse estado entre 2006-2009 e candidata à vaga de vice-presidente de John McCain em 2008, está longe de ser um caso isolado. Apesar dos organizadores do Miss America insistirem no fato de que seu concurso de beleza tornou-se o maior sistema de bolsas de estudo nos Estados Unidos, que permite a cada ano que centenas de jovens mulheres integrem uma universidade e preparem suas carreiras profissionais, a questão que subsiste é por que essa ascensão social e profissional das jovens mulheres deveria depender de notas que elas recebem por desfilar de biquini e da graça com a qual elas conseguem (ou não) andar de salto alto.
Os concursos de beleza na Amazônia indígena são simultaneamente mais recentes e muito menos institucionalizados do que os da América do Norte. Ao longo do meu trabalho de campo entre 2009 e 2012, assisti a três concursos de Rainha que foram organizados nas aldeias Kakataibo e Shipibo do Rio Aguaytia, na Amazônia peruana. O concurso acontece a cada ano, durante a grande festa da aldeia que reúne inúmeros convidados vindos da região toda. Enquanto os homens demonstram força e habilidade no campo de futebol, as moças púberes desfilam no palco imitando gestos, modos de fala e códigos vestimentares das mulheres brancas. O concurso de beleza kakataibo está intimamente relacionado com a metamorfose corporal. A moça que tem mais chances de vencer é aquela que se mostra capaz de dissimular sua timidez, colocando-se em cena com maior ousadia e segurança. Mesmo se todas as moças púberes podem se candidatar ao título de Rainha, a participação no concurso requer um treinamento prévio dispensado por professores mestiços. Durante este treino, elas devem aprender a andar no palco, a desfilar corretamente, a falar alto, a saudar o público com elegância e a mandar beijos sem jamais deixar de sorrir. Com ajuda dos professores, as candidatas também preparam sua fala que será declamada no dia do concurso e na qual elas evocarão o orgulho, a alegria e a gratidão sentidos pela oportunidade de participar do evento. As moças aprendem assim até mesmo a falar “como os mestiços”, o que não é pouca coisa se consideramos que a língua, ou mais especificamente a técnica do falar, é para os Katataibo um potente produtor de diferença social. Falar como mestiço significa falar forte, falar diretamente e com ousadia, sempre mirando o interlocutor nos olhos. Estilo de expressão que difere muito da forma Katataibo que, pelo contrário, falam baixo, com voz monótona e evitando os olhares dos interlocutores, cobrindo-se a boca com a mão em sinal de respeito. Em suma, pede-se às moças que rompam radicalmente e publicamente com seu modo de ser usual, no qual a timidez e a vergonha são regra assim como é regra evitar o contato com homens estrangeiros. Para poder participar dos concursos, é preciso de certa forma “desindianizar” seu corpo para aproximá-lo do corpo mestiço.
Como dizem Anne-Christine Taylor e Eduardo Viveiros de Castro: “O corpo humano é a coisa mais valorizada neste universo [ameríndio] porque ele materializa a sociabilidade” (2006:149). Apesar dessa dimensão relacional e consubstancial do corpo ser sempre muito importante para os Kakataibo, a adoção dos concursos de beleza e sua popularidade nas comunidades indígenas fazem emergir uma concepção simultânea do corpo enquanto capital pessoal, podendo tornar-se uma fonte de sucesso individual e de empowerment. Isso evidentemente tem um impacto no forma como as adolescentes indígenas tratam seus corpos. Em primeiro lugar, muitas desejam ser magras, o que as leva a adotar práticas bulímicas. É o caso da ex-Rainha Kakataibo. Estudante na cidade, ela horrorizou os pais quando visitou a comunidade pois forçava-se a vomitar após cada refeição. Ela admitiu abertamente que não podia mais comer com sua família indígena pois temia engordar. Contrapondo-se a esse ideal forjado pelos adolescentes, os Kakataibo mais velhos não apreciam corpos magros, associando-os geralmente à doença e à alteração das relações sociais. Um deles me disse certa vez: “Nossas mulheres se chamam “ ‘o xanu” (mulher anta) ou “ñoia xanu” (mulher porco) porque gostamos de mulheres gordas e fortes como esses animais”. Os corpos belos são aqueles que, sem serem obesos, são corpulentos, robustos, fortes, capazes de trabalhar, de produzir coisas que podem ser partilhadas e que consequentemente podem produzir belas relações com os outros.
Por outro lado, um número cada vez maior de jovens mulheres faz aplicações de injeções contraceptivas no posto de saúde, de modo a reduzirem as ocorrências de gravidez e sobretudo espaçá-las no tempo, conquistando assim maior mobilidade e autonomia. Se a divisão binária e rígida entre o “exterior dos homens” e o “interior das mulheres” não é mais completamente pertinente para os Kakataibo, o espaço doméstico, da comensalidade, da consangüinidade e da familiarização, permanece intimamente ligado à agência feminina. Inúmeros Kakataibo tendem a falar hoje de maternidade em termos de sofrimento. As mulheres sofrem porque suas crianças pequenas as impedem de viajar, de trabalhar, de estudar, amarrando-as à casa e à comunidade; enquanto “ser moderno” está associado a poder ir à cidade, observar os outros e aprender coisas novas. Apesar de os Kakataibo reconhecerem a complementaridade dos papéis que mulheres e homens desempenham na concepção das crianças e que ambos os pais devem respeitar uma série de proibições após o parto, são as mulheres que possuem plenamente o poder de controlar o nascimento.
Em oposição aos concursos indígenas da América do Norte, a vencedora Kakataibo não se torna embaixatriz de seu grupo, nem endossa funções de representação. Em contrapartida, ela obtém uma bolsa de estudos que pode lhe permitir se instalar na cidade para continuar sua escolaridade e tornar-se, no melhor dos casos, uma profissional. “Profissional” é uma palavra mágica pronunciada espontaneamente pelos Kakataibo e pelos Shipibo quando evocam o futuro de seus filhos. Trata-se de uma figura emblemática do que poderia ser visto como uma nova forma de subjetividade à qual aspiram os adolescentes e seus pais. Do ponto de vista dos Kakataibo, a escola constitui um lugar que deveria abrir para seus filhos a porta do sonhado universo dos profissionais assalariados, ideal ligado à abundância e ao prestígio. O acesso a esse estatuto se conquista pela incorporação, ao longo dos anos, dos saberes ensinados pelos professores estrangeiros. A migração urbana ligada à escolaridade, mesmo temporária e mesmo fracassada, constitui uma etapa extremamente importante na vida dos adolescentes ameríndios, na qual eles se fundam posteriormente para construir sua própria autobiografia.
Os concursos de beleza são como os circos com animais, geralmente desagradam, mas ao mesmo tempo divertem a multidão. Em 2014, a Assembléia Nacional da França proibiu a organização de concursos de mini-miss para lutar contra a erotização e a hipersexualização das meninas. Essa proibição conforma-se a um determinado contexto ético-cultural e a concepções do corpo, da sexualidade e da criança que ele próprio faz emergir. Na região da selva peruana onde trabalho, a sedução se aprende na escola, através do concurso de Miss ou do catálogo de cosméticos da Avon, introduzido recentemente na comunidade nativa pelos professores mestiços. Seduzir, usar mini-saias, maquiagem espalhafatosa e saturar o Facebook com selfies erotizados não é sinônimo de sexismo ou de objetificação das mulheres, é feminismo! Um feminismo decididamente pró-sexo, um pouco do tipo Marcha das Vadias [1], sobre o qual um post no Facebook de uma jovem shipibo de 16 anos, em mini-short e decote profundo revela o essencial: “se você não me curte, não é problema meu, é teu!”. Quer os antropólogos curtam ou não, muitos grupos indígenas se apropriaram hoje dos concursos de beleza com muito entusiasmo. Esses espetáculos exuberantes divertem tanto jovens quanto velhos tornando-se espaços de sedução cujo efeito é atrair homens estrangeiros nas aldeias. Mas para além desse aspecto frívolo, o concurso de beleza deu uma certa visibilidade às jovens mulheres indígenas, permitindo-lhes tomar a palavra em público (o que até recentemente era exclusividade dos homens) e em alguns casos prosseguir sua escolaridade na cidade.
Em memória de Araceli Crespo, e dos corpos das mulheres desaparecidas.
Para Laura Paste quando recorda: a pausa ainda é movimento.
Este ensaio busca tecer com o corpo o que o faz como resistência na cidade. Tomamos a pergunta “O que é ser mulher numa cidade com nome de mulher?”, principal ponto de reflexão do espetáculo teatral “Todas as ruas têm nome de homem”, da Confraria de Teatro. Nosso pano de fundo são os temas narrados durante a apresentação para pensar o corpo enquanto possibilidade de abertura da experiência para ocupação da cidade. A peça em cartaz na cidade de Vitória (ES) – considerada a pior cidade brasileira para ser mulher, de acordo com o último mapa da violência – realiza uma cartografia do feminino e performa a vida de quatro mulheres a partir das relações experimentadas na cidade. A reflexão sobre os modos de subversão das regras impostas ao corpo da mulher passa por, mas não somente, nossa afirmação de um corpo que não se submete e ocupa o espaço público. Entretanto, sabemos que esse corpo não opera só e a mulher como uma minoria social (assim como negros e LGBTs) está sujeitada à violência física e moral, bem como a uma normatividade que ultrapassa os limites da gestão do seu próprio corpo e da sua vida.
O espetáculo chama-se “Todas as ruas têm nome de homem” e se passa na cidade de Vitória, Espírito Santo. Entrou em cartaz duas semanas antes do caso do estupro coletivo no Rio de janeiro [1] e 43 anos depois da tortura e morte da menina Araceli Cabrera Crespo [2]. Após a disponibilização dos dados do Mapa da Violência de 2014 [3], as integrantes da Confraria de Teatro [4] sentiram-se provocadas pela constatação de que o Espírito Santo era (e ainda é) um dos estados mais perigosos para as mulheres.
O espetáculo foi criado a partir dos debates e dos diálogos em grupos sobre a mulher na sociedade, machismo e violência. O grupo iniciou uma pesquisa realizando uma cartografia do feminino na cidade e uma roda de conversa ‘Cidade para mulheres – Violência urbana e segurança’. Houve também um processo de escavação em busca de documentos sobre casos de mulheres assassinadas no Arquivo Público do Estado. Um esforço para uma arqueologia do feminino, capaz de mergulhar em histórias enterradas. Assim, para compor essa cartografia, as integrantes do grupo caminharam entre as ruas da cidade e os edifícios: conversas no banco da praça da cidade, o asilo, o Presídio Feminino de Bubu, em Cariacica. Reuniram fragmentos de fala e memórias das mulheres que habitaram e habitam uma cidade com nome de mulher; e a maior taxa de feminicídio do Brasil.
Somos mulheres e vivemos numa cidade onde todas as ruas têm nome de homem. Acabamos buscando nas atrizes as nossas próprias performances diárias pelas ruas da cidade. Os espaços e as temporalidades diferentes (do espetáculo) não nos distanciam da nossa posição minoritária e sobrevivente. O que quer dizer o ato de performar nas ruas, jogar-se no mundo da experimentação? Sentimos ainda que algo nos foi retirado, por ora, a rua regrada pelo ditado “aqui não é hora nem lugar” para mulher. Entretanto, nós entramos em modo inventivo, algo aconteceu e arrebentou as amarras. A performatividade do corpo imprime outros mundos, nada está cravado e, por isso mesmo, reivindicamos as ruas. Outras experiências, outras possibilidades se abrem enviesadas por uma dinâmica do corpo não mais esterilizado: nós vamos para as ruas dançar em saltos porque qualquer hora e lugar podem ser possíveis. O desafio do modo de corporificar – o que pode um corpo tomado pela vontade de existir?
Sinopse: quatro mulheres, em 1930 e em 2016, caminham pela cidade para reconstruir o desaparecimento de uma delas. Algumas coisas permanecem, mas sempre há uma rua para ser ocupada. Uma eclosão diante de tudo isso que está “aí”: as estatísticas de feminicídio, o aumento da taxa de homicídio das mulheres negras, o descaso nas delegacias de mulheres, o turismo sexual e a exploração sexual de crianças e adolescentes, o trabalho de meninas e adolescentes em casas de “família”, o machistério de Michel Temer, a ruína do Ministério das Mulheres. As mulheres de ‘Todas as ruas têm nome de homem’ realizam uma tessitura socio-histórica até os acontecimentos do Brasil atual.
Primeiro ato – Em frente ao antigo prédio do Arquivo Público, os espectadores conhecem a narradora. Com uma mala, ela posiciona-se na fraca luz e avisa: nós todas contamos com vocês. Aos gritos, nomes de mulheres desaparecidas. Todos são convocados a fazer uma escolha, para cada um dos três objetos oferecidos ao público um trajeto distinto pela cidade e um roteiro específico. Nos dividimos.
Segundo ato – A peça apresenta três histórias distintas, em três lugares diferentes. Três mulheres no ano de 1930.
Terceiro ato – Caminhamos pelas ruas mal iluminadas do Centro Histórico e nos reunimos em um hotel abandonado. Nesse espaço, o público reencontra a narradora. Ela convida as mulheres à sentarem-se à mesa, e aos homens fica reservado o direito à escuta. A proposta é simples: que as mulheres conversem. Descobrimos que ela é jornalista e está escrevendo um livro a partir da pergunta: O que é ser mulher numa cidade com nome de mulher?
Ela foi desfigurada com o ácido que jogaram em seu rosto, seu rosto de menina, que já não era mais seu e talvez nesse momento ela já tivesse um corpo vazio. O nome dela me assombra a cada vez que eu passo por esse bar e lembro quando ela passou por aqui e ainda era uma menina. O nome dela é a cada ano mais esquecido. Ela morre de novo a cada pessoa que passa pela rua que não tem o nome dela, que tem o nome da família dele, que fez isso com ela. Eu tenho vontade de colar a foto dela na porta inteira, em toda a fachada do prédio, de modo que qualquer um que passar por ali só consiga pensar nela, que qualquer um que passar por ali não seja capaz de olhar o celular, de rir pro amigo, de mastigar uma bala, fumar um cigarro, que não seja capaz de pensar em outra coisa que não seja a Araceli morta, estuprada, desfigurada, a Araceli que não é mais uma criança.
Trecho do espetáculo “Todas as ruas têm nome de homem”, Confraria de Teatro (2016).
Vivemos na cidade de Vitória onde Araceli foi morta. O caso Araceli, instituiu o Dia Nacional de Combate ao Abuso Sexual contra Crianças no dia 18 de maio. A menina tinha 8 anos quando foi raptada, drogada, torturada, estuprada e morta no ano de 1973. Todos os anos, na marcha organizada para marcar a luta contra o abuso sexual de crianças e adolescentes, fazemos um minuto de silêncio em sua memória, na rua que carrega o nome de um dos acusados – a Dante Michelini.
Diante dos ataques à direitos conquistados e das violências sofridas por mulheres em casos chocantes, o Brasil demonstra outro frescor – e por que não alegres levantes– da insurgência feminista. O que fica conhecido como #PrimaveraFeminista e depois deriva em #PorTodasElas e tantas outras hashtags, movimentações, protestos e encontros aqui em Vitória e que irrompe numa rua capaz de atravessar os nossos corpos. Pois é na Avenida Dante Michelini [5], na altura do píer de Iemanjá, que as manifestações tornam-se um ritual: Araceli presente. Nós a carregamos em nosso corpo.
A nossa resistência continua no presente marcada por essa rua e pelo seu nome, não só porque Araceli morreu brutalmente assassinada, não só pela impunidade dos envolvidos de duas famílias tradicionais do Espírito Santo, mas porque nosso corpo diz sim à vida. Se a encarceraram, espancaram, recortaram seu pequeno corpo de criança e lhe tiraram o rosto, a violência tinha fim de ocultamento. Nós caminhamos ano após ano para mostrar que o nosso corpo existe por Araceli. Nós caminhamos ano após ano porque nosso corpo reXiste às regras que tentam governá-lo. Essa peça existe sim – mesmo que o texto diga que ela não devesse existir – para que o corpo de Araceli em pedaços seja reunido e exista diante de nós.
Nem tudo é teatro, infelizmente.
Confraria de Teatro
Seguimos para a rua. As atrizes Luana Eva, Luciene Camargo, Ludmila Porto e Thiara Pagani repetem em reciprocidade, por entre os prédios e becos, as breves escadarias – entre as ruas do Centro de Vitória somos público e participamos desse protesto, guardamos as ruas que podemos passar, o melhor caminho, o que parece seguro. Ser mulher e transitar numa cidade com nome de mulher educa os corpos. Nossa deriva é um processo de metamorfose incessante: quais são os fragmentos desse corpo resistente? A peça na rua é protesto – insistimos em ocupar – não nos satisfazemos com as normas disponíveis. Em que medida fomos desapropriadas de nossos corpos? Ora, pois a sociedade moderna, impregnada de tamanha auto-referencialidade, designa à mulher a tarefa eterna e autoritária da procriação dos seres humanos na Terra.
Meu corpo, minhas regras!
Confraria de teatro
Ser mulher é um ato cálido. A personagem universitária (no limiar da ficção e realidade), prostitui-se para pagar a faculdade de direito, mas não tem o direito de interromper a gravidez. Ligia sabe – como todas nós sabemos – que as normas em que é reconhecida pelo outro, não são as mesmas pelas quais o outro se reconhece. O corpo da mulher continua invisibilizado por não ser reconhecido no social. O corpo é aquilo que nos localiza, ocupa um espaço – como não poderiam deixar de ser.
A prostituta de 1930 vive num pequeno quarto preenchido de plantas. Canta ‘Ciranda Pra Janaína’ e conta da vida apegada ao mar. Carmem está construindo um barco para navegar para longe. O público sentado na cama de casal ou em algum banco de madeira não tira os olhos da personagem. Ela liga o rádio que toca uma balada engasgada e aguarda uma dança. O corpo de Carmem só pedia um minuto de afago – qualquer dança parecia servir. O que encena um corpo na cidade e o que pode o nosso corpo diante das normatividades?
Cumplicidade e consentimento, do corpo ao olhar, a peça é um projeto in progress. As atrizes e o público compõem uma zona temporária de intensidades, seja nas cenas da rua onde a peça é protesto, seja nos monólogos onde o roteiro ganha ares confessionais. Em 1930 e depois em 2016, uma atriz, uma noiva e uma prostituta, entregam em cenários distintos da Cidade Alta seus desejos, anseios, alegrias e tristezas.
Ao final, sentir-se viva para extravasar e fazer da nossa caminhada um ato político. A peça em múltiplas camadas monta um corpo em transe-mulher. Nossos mundos – são tantos! – ocupam-se da diferença. A subjetividade numa certa autonomia – talvez ainda não seja liberdade –, tem no horizonte uma pele nômade, anônima e livre. É apto a reXistência capaz de desviar da norma dominante.
“No meu novo mapa todas as ruas têm nome de mulher”: essa é a última frase do espetáculo.
“Lembre-se. Lembre-se do poder da mãe
– retome posse da terra sobre a qual você está,
retome posse da aspiração e do terror
– faça seu esse poder com uma consciência (…)
que te permita conhecer em você mesma
o movimento dos grandes poderes da vida e da morte...”
Starhawk
Alguns dias atrás, F. Paumari mandou me chamar.
Recebi uma mensagem avisando. “Ela precisa falar contigo, liga de noite aqui em casa”. Esperei e liguei. F. estava com a voz apagada e senti nela um desânimo imenso. Algo havia acontecido com M., sua filha mais nova. Aquela que já tem vários filhos, sem pai, ou melhor, filhos de muitos pais. Aconteceu de novo. M se juntou com mais um homem, sem o acordo da mãe, impondo a sua escolha. Só que F. não aguenta mais criar os próprios netos. São muitos. E sempre sobra para ela. Mais um casamento da filha, é mais um neto para criar. E mais um homem branco, forasteiro, que não irá ajudá-la como um genro deveria.
Era desgosto, o que tinha na voz dela nessa noite.
“Desgosto” na língua Paumari é um sentimento que não dá para traduzir em uma só palavra. Nahina-ra nofiravini afojahakini é algo assim como“não querer-desejar mais ir atrás de nada”. É um afeto. Ou melhor, um desafeto. Consequência de um acontecimento desagradável, triste ou traumático, esse desafeto toma posse do corpo-alma da pessoa e a impede de parar de pensar no que ocorreu, o que a faz então parar de sentir e de ter vontade de satisfazer seus próprios desejos. O desgosto provoca desinteresse, desânimo, tristeza e dor. É um despotencializador dos desejos e da força, o que para os Paumari já é sintoma de doença. O fígado, va’i, é oórgão onde se situam sentimentos, mas o desgosto acaba afetando também o estômago e a garganta, deixando pouco a pouco a pessoa sem apetite, sem vontade de falar ou responder. Ele aniquila a força vital, bloqueando a vontade de se alimentar e, portanto, de se relacionar com os parentes.
A única saída para o desgosto é sair. Se afastar dos seus, de seu corpo de parentes, de sua parentela, sua aldeia, sua casa, seu rio, seu lugar. Se afastar também da lembrança. Se distanciar de tudo o que lembra aquele evento ou pessoa. Como no luto. Quando, após a morte, tudo do falecido é aniquilado, eliminado, queimado, enterrado, esquecido, e seu nome, seu lugar de vida e relações são abandonados.
O distanciamento também preserva da obsessão e da saudade doentia. Porque lembrar incessantemente é um estado perigoso que atrai seres sobrenaturais super agressivos, como o pitai. Aquela ou aquele do qual se sente falta acaba surgindo, mas é uma miragem. O pitai é um monstro canibal que aparece sob a forma do ser desejado, para se aproximar e matar quem o deseja. Ser devorado pela saudade, consumido pela lembrança. Isso não pode, então é preciso sair. Se afastar. Sair como movimento de retirada, de um lugar e das relações que fazem dele um espaço habitado pela lembrança daquela pessoa. Sair como interrupção espaço-temporal.
Me lembro bem de B. que tomado pelo desgosto, após a traição de sua mulher, saiu da aldeia, e se instalou na cidade, por vários anos. Lembro também de K. que após questões políticas na cidade decidiu sair e foi trabalhar num canteiro de obras em outra região, voltando quase dez anos depois, quase irreconhecível. E de R. que após sua mulher falecer no parto de sua filha, também se foi, mas nunca mais voltou, acho que porque não quis mesmo, não deu.
Conversei então com F. Ou melhor, ouvi o que ela tinha para dizer e procurei entender, e sentir aquilo que estava tentando me dizer, misturando frases em paumari, termos em português, imagens e lembranças comuns. Ela disse então que ficaria na cidade, longe da aldeia, esperando minha chegada, em setembro. Após um silêncio, acrescentou: “Amanhã vou para consulta, o agente de saúde me disse que a doença que tenho chama depressão”. Fiquei muda. E a conversa terminou com ela insistindo que me esperaria ali, na cidade, porque não tinha gosto para voltar para casa.
Desgosto? Agora desgosto é “depressão”, pensei. Pensei no agente de saúde. Em todos os agentes, pensei. Todos os agentes que nas últimas décadas passaram a interferir nas vidas, nos corpos e nos desgostos dos Paumari e de tantos outros povos.
Então lembrei das mulheres guarani e kaiowá, e das crianças super arrumadas e penteadas para ir para a escola. Dessas mães guarani carregando as compras pesadas do mês nas costas, na garupa da moto, percorrendo quilômetros no sol e na poeira das estradas, gastando todo o dinheiro do “benefício” para garantir, todo mês, roupas novas e materiais escolares bonitos para os filhos não serem discriminados nas escolas da região. E lembrei dos jovens e dos homens guarani trabalhando duro nas fazendas que asfixiam suas terras e seus corpos. A asfixia guarani. A mesma asfixia que provoca os suicídios de tantos jovens indígenas lá. Asfixia capitalista, ruralista, asfixia pelo cerco do Estado. Cercam-se as terras, os corpos, as pessoas, a alegria. Eis outro lugar cheio de agentes, acho que mais cheio ainda do que no Amazonas.
E outros desgostos. Com outros nomes. Mas para os quais o Estado tem sempre o mesmo nome, e o mesmo remédio.
Desgosto agora tem tratamento?
Suicídio agora tem tratamento?
Lá também o tratamento vem com enfermeiros, assistentes sociais, médicos, conselhos tutelares e outros agentes que diagnosticam e contabilizam muitas depressões. Então receitam-se antidepressivos. Talvez mais do que nunca, porque hoje os índios, no Mato Grosso do Sul, no Amazonas, no país todo, se tornaram “beneficiários” de políticas públicas: da saúde pública, da educação pública, do dinheiro público. Eis o Estado cuidando de seus cidadãos originários. Todas as intromissões benfeitoras públicas possíveis estão lá: diagnosticando, receitando, medindo, vacinando, avaliando, alimentando, documentando, controlando, encaminhando. “Encaminhar”, verbo de Estado que merece reflexão. Encaminhando, cercando e asfixiando, sempre com todas as boas intenções do mundo, claro. Quem sou eu para dizer o contrário?
Agora é a tarja preta que vem reforçar o cerco dos corpos, barrando desgostos. Está tudo resolvido então? Resolvemos o problema. Dinheiro para conter a fome dos índios transformados em pobres (sem terras demarcadas, mas com escolas, ou algo parecido com escolas), saúde para conter doenças e remédios para conter os desgostos, restituir a alegria.
Tá legal, agora F. toma antidepressivos e voltou para a aldeia.
Partos indígenas na cidade. Mesmo dispositivo de Estado. Outro dia D. ganhou neném na cidade, como a maioria das mulheres Paumari hoje. Até uns anos atrás elas se recusavam a ganhar filho na cidade, longe de suas mães e parteiras, se sentiam (e eram) maltratadas pelas enfermeiras, envergonhadas de parir na frente de médicos forasteiros e assustadas pela frieza de todos os procedimentos médicos, sem falar nos boatos de envenenamento dos bebês indígenas que circulavam sempre por lá. D. sentiu contrações fortes durante a madrugada, chamou sua acompanhante, uma sobrinha de 12 anos que foi atrás do médico. Mas o médico dormia. E não ouviu os chamados e nem os gritos. Nem ele, nem ninguém ouviu nada. O bebê nasceu, dizem que prematuro, e caiu do alto da maca, de cabeça. Resistiu só alguns dias. D. ganhou e perdeu seu bebê na cidade, mas são tantos né? Pra quê nos preocupar? Afinal ela já voltou para a aldeia, devidamente medicada.
Disciplinar, internar, conter corpos e almas, limitar os movimentos e violentar a diferença. Um só e único dispositivo genocida. Sempre o mesmo.
Não sei se o desgosto paumari é o mesmo que o guarani. Imagino que não. Mas ambos têm algo em comum: é que desgosto se trata com movimento. Levantar-se, mover-se, partir, deixar, retomar, ocupar. Dinâmica radicalmente inversa à imobilização forçada, ao confinamento, à internação, à medicalização, à contabilidade dos corpos e seus males.
O movimento da mulher paumari, guarani, da mulher tout court, como antídoto.
Corpo em movimento. Sedento e suado. Transportado e transportando. Na canoa, rio acima, exposto. Rio abaixo, exposto. Sol, chuva, temporal, ventania. Olhares. Predadores. No mato. Na cidade. Na aldeia. Corpo suado e cansado de subir, subir e descer, descer e subir o barranco. Carregando água, enchendo pote, esvaziando pote. Tomando banho. Lavando roupa. Carregando criança, enchendo criança. Dando banho. Balançando criança. Estendendo roupa. Deitando criança, desmamando criança. Rio enchendo. Do rio para casa, da casa para o rio. Lavando roupa, carregando roupa, estendendo roupa, batendo roupa. Rio vazando. Pé afundando na lama. Corpo suado, ensaboado e cansado. Ensanguentado e carregado. Corpo que vive, que ri, que resiste.
Não vazio. Nem Doente. Nem Anestesiado. Nem Dopado. Nem Tranquilizado. Nem Morto. Nem Morta.
Mas por que os corpos e as pessoas indígenas só passam a existir, ou melhor, só se tornam visíveis aos nossos olhos quando já neutralizados? quando já mortos? Um ou outro cadáver, quase sem nome, exibido pela mídia sedenta de audiência e likes, e aí sim, de repente, os percebemos, por alguns instantes. Então são apenas cadáveres, de vidas cuja existência efêmera só se dá pós-mortem, em uma imagem, duas, e que torna mais visível x jornalista que as exibe do que qualquer realidade da vida que se foi. No matagal. Na beira. A corda, a bala, o feto, a maca, o cadáver. Desgosto. O fim do mundo é o fim da potência do movimento, e da alegria. Tudo, qualquer coisa, continua existindo mais aos nossos olhos de brancos do que a existência indígena.
E o nome disso aí continua sendo genocídio.
Onze vezes, e onze delas a termo: as vizinhas todas perguntavam como ela fazia para não perder menino – dos filhos todos vivos só dois tinham morrido, mas aí já foi de doença, os outros graças a Deus ela conseguiu criar de ventre cheio. Ela tinha muita força na reza, foi o que disse às vizinhas, afinal era ela quem puxava as novenas. E agora fazia meses que tinha a novidade atrasada. Mais uma vez. Onze vezes.
A verdade é que quando alguém carrega o décimo primeiro filho, já adivinha com toda evidência o que o corpo vai executar. Célia estava sentada na cozinha e, na mesa à sua frente, deixava pela metade o biscoito de polvilho. Tinha também um copo do café frio que não conseguiu beber. Eram os enjoos, ainda. Desta vez, porém, tudo parecia um pouco diferente. Ela estava velha. Tinha impressão de que seus órgãos já não estavam no lugar, agora a barriga de grávida lhe pertencia mesmo sem deitar filho, sempre inflada para frente. Ela nem sabia por que o homem a procurava ainda daquele jeito; que a deixasse finalmente em paz com seus órgãos atrapalhados. Mas não: ela sempre suportou com silêncio a procura – bastava duvidar se ainda era mulher e logo vinha ele de novo para prová-la barriga adentro, naqueles que eram seus momentos de mais ódio. Não que ela não o amasse. Sentiu a cabeça doer.
Ontem Dória veio visitá-la. Célia não via como, mas Dória achou um modo de descobrir. Não foi pela barriga, que embaralhada como está já nem se mostra. Nem pelas sardas que lhe apareciam no começo, porque com essa idade a cara já está cheia delas. Quando Dória respondeu que escutava o feto, Célia imediatamente se arrependeu de ter perguntado como soube. Virou-se para botar a água no fogo, rápida que era para dissimular a faceta de bruxa da vizinha. Enquanto mexia o açúcar na água, Célia abominava aquela Dória sentada à sua mesa.
Dória era sua vizinha há anos – odiavam-se, mas não se desentendiam. Quase todas as tardes tomavam café juntas. A verdade é que Dória não era boa o suficiente para sentir vergonha: ela vinha às tardes como se fosse convidada, bebia café como se fosse seu. Às vezes chegava mesmo a pedir broa, sentindo-se freguês. A Célia fazia a broa porque sabia que Dória viria, quando Dória não pedia, ela sentia-se obrigada a oferecer logo no primeiro gole. Célia odiava mesmo a Dória. Mas ontem Célia botou o tabuleiro na mesa ainda antes de ferver a água, a Dória tinha começado a sussurrar numa voz doce, falava até como se gostasse dela. Naquele jeito meio de bruxa, ela previa seu pensamento, e dizia: antes de batizar não tem problema. Não tem nome, é verdade: sem batizar nem é gente ainda, Célia recapitulava sozinha em frente à sua metade de biscoito. Quase simultaneamente, porém, ela pensava nos dez pais nossos que rezaria à noite: perdoa-me, meu Deus, por maldizer os filhos do Senhor.
Naquele dia, Dória havia chegado de mais uma de suas viagens. Dória sempre viajava. Teve só dois filhos, agora já grandes e casados, mas mesmo quando pequenos ela não ficava amarrada. E ela não suportava homem vigiando, tampouco: seu Alberto, marido dela, vez por outra tentou botá-la no prumo, mas o que se dizia por aí é que ela é que dava o domínio no homem. Descarada, ela ganhava dinheiro de todo jeito – vendia ovo, bijuteria, perfume, até o cabelo liso das virgenzinhas das fazendas ela cortou de graça um tempo atrás, correndo depois para vender na cidade. Célia odiava toda aquela prerrogativa.
Ela passou a mão nos cabelos, curtos e secos. Gostava quando podia sentar-se à mesa e pensar – a cozinha era uma espécie de templo só seu. Célia tinha parido apenas machos e eles andavam por ali só de passagem, ela ficava quase sempre sozinha naquele reino. Suspirou. Olhou para baixo e viu a barriga, passou as mãos: a décima primeira. Ainda duvidava se caberia criança dentro daquele monte confuso de órgãos, vai ver já tinham se atravessado uns nos outros lá dentro. Bem que ela podia estourar: Célia já não sabia se querer morrer era pecado – matar um filho é que não matava. O fato é que tentava qualquer solução. E não entendia por que havia falado disso a Dória no dia anterior, nesses assuntos era melhor a sonegação.
O que Célia não suportava mesmo era essa sensação tão próxima de virar bicho. Os olhos chegavam a arder ao pensar em ficar cheia de instinto de novo. Célia escorou a testa nas mãos, o biscoito na mesa ficou bem perto do nariz. O cheiro. Nada mais descia, o feto mudava o gosto das coisas. Toda vez que embarrigava, ela se perguntava como podia um filho tão dentro mudar o que estava fora nela: era como se ela provasse pela primeira vez todas as comidas de novo – e nada era bom. Os olhos ficavam embaciados, secos, e tinha todo aquele sono que dificultava terminar as tarefas, era como se a barriga subisse para a cabeça. Seu ventre também ia se torcendo, ao modo da cabeça, o que lhe dava umas dores muito fortes. Sem contar ficar empachada daquele jeito na latrina. E depois que nascia, não aguentava mais todo o resguardo, a precaução toda. Banho disso, assento daquilo, quarenta dias de frango, nada de comida dormida. E o cabelo lambuzado, a coceira, oito dias sem lavar. Tão bicho. Ela não aguentava perceber-se desse modo, dona de cria. O marido brincava que ela chegava a esturrar. É verdade. Faltava pouco para cravar no homem as unhas, meter os dentes, do tanto que ela o detestava naquelas horas.
O cheiro do café frio lhe deu ânsia, levantou-se e entornou o líquido na pia. Quando voltou, percebeu a garrafa no outro lado da mesa. Dória que trouxe, hoje cedo de manhã. Célia olhava. Fez que não com a cabeça: se ela se emprenhou, foi Deus que quis assim. Deus que quis.
Deus é homem, isso sim, ela pensou: Deus não sabe o que é carregar onze meninos. Deus criou só com pensamento. Depois assustou-se com a blasfêmia. Implorou para deus: me perdoa, meu Deus, me perdoa que meu pecado é muito maior. Ela teria de rezar todo o terço à noite – seu pecado era não apenas maior como muito mais interno: vinha dessa carne que crescia dela, vinha dela que crescia, como podia ela estar tão grande perante Deus? A verdade é que ela se sentia multiplicar. Ela ficava cismada com a ganância daquele ser tão pequeno dentro dela: ele parecia acreditar demais que merecia o mundo.
Célia duvidava se seria capaz de amá-lo um dia. Arrependia-se da dúvida antes mesmo de firmar o pensamento, mas a verdade é que não queria ser obrigada a isso. Aquele ser impunha-se inteiramente a ela. Ele fazia o corpo dela ter a única tarefa de fazê-lo, e ela estava cansada. Seu interior talvez já cheirasse a podre, era assim que ela se sentia. Cozinhou demais, cozinhou dez vezes, agora passou do ponto, estragou. Ela achava que nem pegar menino mais ela pegava, parece que esta vai ser a última vez. Se ao menos fosse a última vez.
Às vezes tinha a impressão de que sentia o sangue correr também dentro do menino. Era seu sangue: o dela. Se não tinha forças nem para ela mesma, como podia se dividir entre ela e ele? Sentia-o criando-se nos seus fios de sangue, feito um tecido grosso teado, e ela perdendo pouco a pouco o seu aspecto de saúde. Célia vinha ficando cada dia mais pálida, era como se sua cor se escondesse na carne que crescia ali dentro. Nenhuma outra gravidez tinha sido assim. Antes seu sangue só demorava a circular, as pernas é que inchavam. A criança ficava tragando bem devagar, gota a gota, e então ela conseguia se aguentar até o fim. Desta vez, não. É como se crescesse dentro dela um pequeno voraz, que queria engoli-la toda de uma vez e ficar inteiro no seu lugar. Célia está muito velha para brigar.
Toda gestação foi sempre assim: uma luta entre quem fazia e quem era feito. Parir sempre é perigoso. Só que agora ela já não sabia quem venceria quem: confundia quem levantava o comando. Tudo o que sentia era esse pequeno diabo no seu ventre. Ela tremeu, rezar apenas um terço não seria suficiente. E ainda havia aquela garrafa à sua frente – como ela odiava a Dória. Não sabia onde a mulher tinha juntado sabedoria. Agora ela estava virando raizeira, o povo já corria para ela para qualquer doença. E ela fingia modéstia – ontem, mesmo, ela ficou falando com aquela voz de amizade, disse que Célia tomasse todo o seu tempo para pensar e descobrir, mas que havia uma lista inteira de possibilidades, quina, carqueja, buchinha, losna, jurubeba, canela e muitas outras, a melhor era chá de casco de burro. Todo mundo faz, disse Dória. A gente só não conta pro marido.
Eu vou morrer, Dória. Célia havia dito a ela: é uma espécie de preventimento, se essa criança escapa, eu morro, se ela morre eu vivo. Os olhos de Dória se encheram de lágrimas; mas, bruxa que era, não deixava as coisas se decidirem por si próprias. Dória disse: pede a Deus, Celinha, pede para ele lhe mandar um sonho. Pede para entender. E Célia nesta manhã esperou com pressa a vinda de Dória, que também veio com pressa. Trazia uma garrafa nas mãos. Célia queria muito contar: sonhei com meu enterro, Dória. Sonhei que era eu deitada na mesa, já com roupa de luto, mas minha barriga se mexia, era o bicho dançando dentro de mim. De repente ele apontava uma faca de dentro para fora, ele abria o seu próprio buraco porque do meu buraco finado ele se recusava. O sonho ficou tão verdadeiro. Mas como é que Deus mandou esse sonho? A Célia ficou desconfiando que o recado tinha se desviado, caído por engano no outro, não em Deus. Mas a Dória não entendia as coisas desse jeito. Não, só de Célia se lembrar já era um sinal – bastava agora encontrar no sonho a antecipação.
Dória partiu e Célia se questionou se foi ofensa da vizinha tê-la deixado a sós com todo esse segredo. Que podia fazer ela ali tão sozinha? Permaneceu sentada, já que não sabia se tinha permissão de fazer outra coisa. Foi lembrando as conversas de antes, aos poucos foi se sentindo à vontade. Tão sozinha, deixou que viesse nascendo um pensamento desnudo: ele cobrava a vida dela pela dele, um filho tão avaro não podia ser de Deus. E que menino já nasce em pecado? Faltava pouco para se decidir. Fechou os olhos e foi adiante, pensou no medo. Seu medo não era da barriga, devia estar em outro lugar, talvez no próprio medo, pensava na punição. Estava tão insegura das certezas privadas, era como se olhasse uma coisa grande demais. Mas agora ia descobrindo como sair delas – Célia sentiu-se subitamente poderosa: talvez fosse sua primeira vez.
Levantou-se da cadeira. Quem sabe até, quando morto, vou poder adorá-lo como um santo, ela pensou.