Silvia Federicié ativista feminista, historiadora, pesquisadora e professora radicada em Nova York. É professora emérita da Universidade Hofstra (NY) e co-fundadora do Feminist International Collective que, nos anos 1970, criou o movimento de salários para o trabalho doméstico. Na década de 1980, trabalhou na Nigéria, onde fundou o Commitee of Academic Freedom in Africa. Silvia faz parte do Midnight Notes Collective e escreveu diversos livros, entre os mais conhecidos estão “Revolution at Point Zero. Housework, Reproduction, and Feminist Struggle” (PM Press/Autonomedia, 2012) e “Caliban and the Witch. Women, the Body and Primitive Accumulation” (Autonomedia, 2004). Esse último acaba de ser traduzido pelo Coletivo Sycorax.
P. Como foi a sua militância no movimento por salários para o trabalho doméstico? Queremos conhecer melhor essa história, pois para nós, no Brasil, a questão do trabalho doméstico é muito problemática, sobretudo para as mulheres negras. Acaba sendo um meio de as brancas se emanciparem desse trabalho, mas que passa a ser feito por mulheres negras, quase sempre exploradas.
S. Acredito que o futuro da luta das trabalhadoras domésticas vai ser limitado se o movimento das trabalhadoras domésticas, que fazem esse trabalho em troca de um salário, não se ampliar para um movimento que inclua também as mulheres que fazem o trabalho doméstico não pago. É preciso formar um território de mulheres que fazem o trabalho doméstico pago, mas também das mulheres que fazem esse trabalho sem receber por ele. A campanha foi lançada nos anos setenta, quando o movimento feminista estava começando, forte e entusiasmado. As feministas buscavam respostas para grandes perguntas: de onde vem a opressão contra as mulheres? de onde vem a questão da subordinação? quais são suas causas fundamentais? Esse debate começou a tomar direções diferentes, havia as feministas radicais, as feministas liberais, as feministas socialistas… bem, e eu. Comecei a trabalhar com mulheres feministas que não pertenciam a nenhuma dessas categorias. Formávamos um grupo diferente e a campanha por salários para o trabalho doméstico foi organizada por esse grupo de mulheres, que chegavam de países diferentes. Todas nós tínhamos uma história na esquerda, com formação marxista.
Esse grupo se converteu em uma rede internacional. Houve uma história política particular, pois era formado por feministas italianas que tinham militado nos movimentos da nova esquerda na Itália, da esquerda que criticava o Partido Comunista (que havia rompido com toda a história do comunismo), mas também por companheiras que tinham militado nos anos 1970, por exemplo, no movimento estudantil na Itália, no movimento operário e de 68. Também havia as companheiras que chegavam com experiência da luta anticolonial, que viveram anos em Trinidad e acompanharam a luta pela independência.
Eu já estava nos Estados Unidos, onde já se sentia a influência da luta do movimento por direitos civis, do movimento negro, desse conjunto de experiências políticas que foi importante porque nos levou a articular uma perspectiva em que, desde o princípio, se colocava a questão do feminismo, da luta das mulheres, da exploração das mulheres num contexto diferente, num contexto, por exemplo, de continuidade da luta anticolonial. Começamos então a nos enxergar como as “sem salário”, não somente como mulheres destinadas ao trabalho doméstico, à família, à maternidade, tudo isso contra o que nos revoltávamos, mas passamos a ver também a condição da mulher em continuidade com todo um mundo de outros sujeitos políticos que os grandes movimentos marxistas, ou socialistas, não tinham considerado como sujeitos fundamentais na formação capitalista, como sujeitos fundamentais da luta anticapitalista: os escravos, os colonizados. Começamos, então, a pensar as opressões e a exploração das mulheres do ponto de vista das “sem salário” e enxergamos a questão do trabalho doméstico nessa perspectiva, mas articulando também com uma perspectiva marxista porém crítica do marxismo. Toda a teoria de Marx sobre a reprodução da força de trabalho nunca fala da mulher, do trabalho da mulher. Começamos a articular, assim, uma análise da situação das mulheres na sociedade capitalista e no processo de formação capitalista, começamos a dizer que a raiz da exploração da mulher, de sua subordinação social, não está no que os marxistas e os socialistas pensavam – que as mulheres são excluídas da produção social, que são excluídas do trabalho que produz capital, logo não têm poder para lutar contra o capital porque não produzem. Nós dissemos: “não, o problema da mulher não é esse”. Ao contrário, na verdade, isto que chamamos de “trabalho doméstico” é trabalho de produção da força de trabalho, na realidade é esse trabalho que tem sido depreciado e desvalorizado. Na verdade, esse trabalho é fundamental para toda a organização capitalista do trabalho porque é o fundamento de toda atividade laboral: a reprodução da força de trabalho.
A partir desse tipo de análise, rechaçamos as alternativas políticas práticas que os outros movimentos nos davam, pois qual eram essas alternativas? Qual era a alternativa das radicais feministas que nos propunham uma cultura feminista, com espaços separados etc? E a das liberais que propunham juntar-se ao mercado, valorizar-se como parte do mercado? Ou ainda a das socialistas? As companheiras socialistas propunham que nos juntássemos à classe trabalhadora, para trabalhar na fábrica, para lutarmos no sindicato. Só que nós já éramos classe trabalhadora! Não era necessário ingressar na fábrica – se queremos sim, se não queremos, não. Então, para nós, o problema estava sobretudo em publicizar, em denunciar o trabalho não remunerado.
O pensamento anticolonial foi muito importante para se entender que o fato de não ter salário não significava que não havia acumulação capitalista. Não precisamos buscar mais trabalho, já estamos trabalhando. Isso foi mal compreendido às vezes. Na verdade era uma estratégia para mudar a relação de poder, um objetivo de transição, não definitivo: uma forma de recusar a ideia de que precisamos lutar pelo trabalho. Queríamos traçar uma estratégia: “chega de doar esse nosso trabalho ao capitalismo”. E finalmente, para nós, o espaço doméstico é um espaço de recomposição e de união para todas as mulheres. Não importa se temos filhos, se somos casadas, solteiras, separadas, todas somos donas de casa. É uma identidade social que impacta todas as mulheres. Daí o interesse de nos juntarmos nesse território.
P: Como foi sua experiência na Nigéria?
R: Saí dos Estados Unidos porque, a partir dos anos 1980, a situação política nos Estados Unidos era terrível. Era o início do neoliberalismo, muito sufocante. Foi uma mudança de vida importante: conhecer um país diretamente colonizado, principalmente porque foram os anos em que começava a crise da dívida e o ajuste estrutural com intervenção do Fundo Monetário nos países africanos. Assistimos aos cortes de despesas, fechamento de indústrias locais, congelamento dos salários, desvalorização da moeda, privatização da terra, e o aumento das perseguições e criminalização dos movimentos sociais e principalmente das mulheres.
Essa experiência também foi crucial para redefinir o conceito de reprodução. Até então eu sempre pensava nele em termos de trabalho doméstico, mas aí percebi que na África o trabalho no campo não é apenas um trabalho para o mercado, é para a cozinha, para a sobrevivência. Nesses contextos, trabalho doméstico inclui o trabalho de subsistência no campo.
P: Como você vê o trabalho, a militância da mulher negra por direitos nos países em que já esteve. A relação da luta da mulher negra com as feministas brancas?
P2: Se me permite complementar… Ao vir para cá, estava com uma amiga negra, mas com outra concepção muito presente hoje no debate sobre o feminismo negro: o mulherismo, uma perspectiva afrocentrada. Quando eu explicava sobre a sua biografia e todo esse debate relacionado ao capitalismo, ao neoliberalismo, ao marxismo, ela colocou muitas questões. Na mesma linha, me parece que precisamos ter mais diálogo com as diversas concepções teóricas, para a ampliação do movimento.
S. Bom, é uma questão longa porque tem fases diferentes. Está se formando um feminismo negro nos Estados Unidos, agora em outra fase, pois a política estatal está mudando. Por exemplo, eu tenho falado de trabalho doméstico e é claro que o movimento feminista que se desenvolveu nos anos setenta nos Estados Unidos e na Europa foi predominantemente um feminismo branco. Ainda que não somente, havia mulheres negras, mas com predominância das mulheres brancas, logo foi um feminismo que expressou a revolta das mulheres contra aquele que parecia ser nosso destino: o da divisão sexual do trabalho, o trabalho doméstico, casar-se, fazer filhos, construir um lar, uma família. Um ponto central da teoria feminista era a crítica da família, do lar, mas feministas como Bell Hooks diziam que a experiência das mulheres negras era muito diferente, pois para elas a família e o lar representavam uma segurança, um momento e um local em que se sentiam tratadas como humanas. Logo, sair do espaço do lar não era o objetivo do feminismo negro, dado que o fora de casa era um lugar perigoso, um lugar de alienação completa e de desvalorização. Então, claro que havia experiências diferentes, muito diferentes; a Bell Hooks fala da casa como um momento de resistência. Creio que feministas brancas que sentiam um rechaço inicial pela casa, por ter uma família, foram superando esse momento, até porque começamos a nos dar conta que o problema não estava na casa, mas no tipo particular de vida familiar ou vida sexual que se tinha. A crítica, muitas vezes feroz, que fizemos à família, à vida doméstica, à maternidade, isso não mudou, mas começamos a nos dar conta que era preciso inventar. Rechaçamos um tipo de família que havia sido disciplinado, subordinado ao trabalho laboral, dentro dos objetivos do capitalismo. E esse é um ponto importante, não?
A partir do fim dos anos setenta, houve um processo de institucionalização completa do feminismo. Foi crescendo muito aquilo que chamo de “feminismo de Estado”, do Estado internacional, a formação de feministas globais. Ao mesmo tempo, grupos organizados como o nosso, claramente anticapitalistas – não socialistas, mas anticapitalistas – sempre foram marginalizados, desconhecidos. O feminismo de Estado tem transformado a agenda feminista, de uma forma que tem domesticado o feminismo, usando os termos, a categoria, mas de modo completamente desfigurado, sem nada de subversivo. Creio que esse tem sido um fator importante também no fortalecimento de movimentos mais brancos. Por exemplo, falando de estratégia, a luta focalizada na questão do aborto. As mulheres brancas sempre lutaram pelo aborto, proclamando que lutar pelo aborto é lutar pelo controle sobre nosso corpo. Mas isso sem pensar que, ao mesmo tempo, as companheiras negras enfrentavam o problema da esterilização em massa, sobretudo nos anos setenta e depois, houve muitos, muitos casos de mulheres esterilizadas e também oprimidas por uma nova forma de controle contraceptivo, que são um ataque ao corpo e também à autonomia da mulher.
Estamos agora numa nova fase, também porque estamos numa fase em que surge uma nova geração de jovens brancas e negras. Acredito que essa geração tenha mais possibilidades do que a geração anterior. Por exemplo, o movimento do Black Lives Matter, a demonstração de apoio e mesmo a participação de mulheres e homens brancos nesse movimento, acho sem precedentes. Não quero dar uma imagem totalmente positiva, mas está aumentando o envolvimento de homens brancos e de mulheres brancas, o que é um movimento importante, que se coloca de forma geral contra os abusos da polícia, contra a matança realizada pela polícia, porque a polícia está matando muitos, muitos jovens negros, quase todos os dias. Por isso, o movimento parece que está ganhando mais força, algo está mudando.
P. Aqui no Brasil, recentemente, estudantes ocuparam as escolas, com muitas meninas na linha de frente. O debate sobre o feminismo foi muito intenso, pois a forma como as meninas, muito novas, se colocaram na luta, mostra que elas já estão aprendendo a lutar de outra forma.
S. Sim, os estudantes do Chile também. Causa grande emoção. Não somente estudantes de universidades, mas de uma escola média que foi ocupada, vi num vídeo que se chama “Tres instantes, un grito”, de Cecilia Barriga, um filme chileno poderoso. Quando meninos e meninas decidem que vão desocupar, eles se abraçam, não querem se separar, e dizem: “eu sei, eu sei que a parte melhor da minha vida está aqui, tenho vivido aqui, que aqui tem sido a experiência mais fundamental, aqui eu dei o melhor da minha vida”. Haviam compartilhado muito naqueles meses de viver junto, de debater, de limpar juntos, de organizar suas vidas, essa experiência coletiva tão criativa. Ali viram algo diferente da vida comum que viviam.
P. Você falou de institucionalização do feminismo, que algumas autoras chamam de terceira onda. Queria que você falasse um pouco dos pontos principais desse feminismo institucionalizado, sobre como ele mudou a agenda do feminismo.
S: Por exemplo, a violência contra a mulher. Depois de Nairobi, depois de Beijing, da Cidade do México, depois da primeira Conferência Global das Nações Unidas, a violência tornou-se um ponto fundamental. Mas falava-se da violência como sendo um problema familiar, como a violência de parentes… Não se fala de violência institucional, da violência dos sistemas econômicos. No mesmo período em que se fazem as quatro Conferências das Nações Unidas, em nível global, as mulheres experimentam um terrível empobrecimento, porque é algo estrutural – a expropriação da terra, o neoliberalismo global, mas isso não é considerado violência. Não se fala da violência institucional que todo esse sistema provoca, mas só da violência familiar. Por que muitas meninas não vão à escola? Deve-se pensar como chegar aos parentes, aos pais e mães que não mandam as meninas para escola. Essa também é uma missão das Nações Unidas, não? Mas o Banco Mundial impõe à África, impõe à América Latina o corte dos subsídios das escolas, então os parentes não mandam as crianças para a escola porque custa caro, porque devem pagar, e não têm dinheiro para os uniformes, não há professores suficientes. E depois, se tem dito que a via principal para a emancipação das mulheres é o trabalho. Mas setenta por cento desse trabalho é um trabalho de merda, verdadeiramente, desculpa. É trabalho que não te dá nenhuma segurança, um trabalho que não te dá capacidade de sobreviver economicamente, realizado em condições ecológicas horríveis, sem saúde etc. Bom, para isso, usa-se a temática feminista, mas de um modo que exime de culpa a instituição, faz parecer que é uma questão de homens e de mulheres. Há ainda a máquina estatal que tem se criado, em que fica parecendo que pensar nas mulheres é criar os ministérios das mulheres.
O controle que o capitalismo tem imposto sobre o trabalho não remunerado das mulheres é realizado por homens. O capital e o Estado delegaram esse controle aos homens. O poder do salário se converte em poder social, de poder controlar, supervisionar o trabalho não remunerado das mulheres, e por isso começamos a compreender que a violência doméstica é parte do trabalho doméstico. A violência doméstica não é, como se diz, uma degeneração de alguns homens. A violência doméstica é uma coisa que tem sido institucionalizada e, por isso, tem sido tolerada pelo Estado. Porque a violência doméstica é como o patrão que usa da violência contra o escravo para fazê-lo trabalhar. E assim eles fazem: “ah, a comida não está pronta?!”. Muitas vezes a violência doméstica começa assim, conectada ao não cumprimento do trabalho doméstico, e é uma violência que tem sido tolerada, institucionalizada. Por isso, quando uma mulher chamava a polícia porque havia sido espancada, nunca, no passado, um homem era encarcerado por isso.
Sou contra todos os cárceres, creio que precisamos de um tipo de justiça diferente. Mas quero dizer que sempre se tentou justificar a violência doméstica. Da mesma forma, ainda é necessária uma grande luta das mulheres contra o estupro. O estupro que também não é produto de uma degeneração, mas tem sido parte de uma definição fundamental de quais são os papéis sociais das mulheres. Foi criada toda uma ideologia que, no fim, justifica a violência sexual, justifica o homem te forçar sem se sentir mal, porque pensa que isso é parte de ser um homem – é construído assim.
Uma coisa que se passa agora é o retorno da violência contra a mulher. Hoje é incrível, por exemplo, que esteja regressando a caça às bruxas: milhões de mulheres, todos os anos, são mortas, queimadas, decapitadas. Acredito que isso seja parte de um modelo econômico, não? É ideológico, mas é também econômico porque é parte do que se passa com os homens que são continuamente expropriados, desempoderados, então precisam mostrar que têm o controle sobre suas mulheres.
P. Você disse que na Nigéria, no momento em que a globalização chegou com os cortes do Fundo Monetário e toda a política de desregulamentação econômica, começou uma repressão terrível. Queria que você falasse mais um pouco sobre isso porque estamos vivendo hoje no Brasil uma crise e estamos nos preparando para algo muito pior, essa repressão se sente muito forte aqui nos últimos anos.
S. O discurso era o de que, para disciplinar a sociedade, era preciso reprimir, isso era necessário porque a sociedade não trabalhava o bastante, não tinha estrutura etc. E para disciplinar a sociedade era necessário disciplinar antes as mulheres, porque a crise do país estaria, em suas raízes, no problema das mulheres que não cumpriam seu trabalho; a crise era fruto do fato de as mulheres demandarem muito, queriam ser consumistas, não davam a seus filhos e filhas uma esperança de vida, por tudo isso era importante regressar a uma disciplina moral, o que se chamou “guerra contra a indisciplina”.
P: E que relação existe desse processo com a caça às bruxas?
S. A caça às bruxas agora se dá em vários lugares: Índia, África, este é um projeto que tenho com outras mulheres: criar uma rede de mulheres que trabalham sobre isso, analisando a caças às bruxas hoje. Porém, conectando com as outras formas de violência contra as mulheres e conectando a todas as formas de violação – econômica, social – do capitalismo hoje. O trabalho não remunerado necessita de violência, não é? Mas, hoje, a violência tem um caráter quantitativo e qualitativo diferente; é muito mais intensa e se dá sob formas não vistas anteriormente, como o regresso da caça às bruxas, como o fenômeno da matança pelos dotes na Índia, e também a forma de violência que se dá em áreas de espoliação, com os avanços das companhias de mineração ou a militarização. Rita Segato, uma feminista que vive aqui, tem um livro muito lido sobre a temática da violência contra as mulheres e a nova forma de capitalismo, sobre a nova forma de trabalho. Estou tentando criar essa rede para compreender melhor a violência contra as mulheres hoje, que tem tomado essa forma inacreditável de caça às bruxas.
P: Causa muita angústia a forma pela qual nós, mulheres negras, e as mulheres em geral, temos sido mais do que crucificadas, temos sido exterminadas no processo de crescimento do capitalismo. Isso me deixa profundamente assustada, a gente tem um número expressivo de jovens negros exterminados no Brasil, há uma política clara de extermínio de uma raça, da raça negra; o mesmo acontece com as mulheres a partir do feminicídio.
S. Sim, claro. Me disseram que no Rio, todos os dias, dois meninos negros são mortos e, em um ano, quase 20 mil são mortos. Pensei que nos EUA eu estava num lugar pior porque matam muitos negros e também mulheres. Na rua, como execução. Acredito que, no fim das contas, essa violência é uma força econômica. Podemos pensar no nível da espoliação, do empobrecimento e da expulsão que estão em curso. Sim, há um nível de violência maior, sobretudo contra os que parecem os mais combativos, porque não é uma coincidência que se mate sobretudo os jovens negros, é porque se sabe que os jovens negros são os que têm mais disposição de se rebelar. Nos EUA, é bem claro como os jovens negros até hoje são identificados com o movimento pelos direitos civis, os panteras negras, os rebeldes.
P: Voltando ao tema da caça às bruxas de hoje. Está muito claro que podemos fazer hoje um paralelo entre o feminicídio e a caça às bruxas. Mas você falou também que existem outros tipos de violência contra as mulheres que estão na mesma matriz. Pode falar um pouco mais disso?
S. Agora, nos Estados Unidos, estão tentando introduzir leis que estabelecem como as mulheres devem se comportar quando estão grávidas, para que seja possível a sociedade acusar juridicamente quando uma grávida usa drogas ou está se “comportando mal”. No estado de Utah, tentaram passar uma lei que estabelecia o que a mulher grávida não poderia fazer e, entre várias coisas, não podia viver com um homem violento porque representava perigo pro feto. Além disso, a medicalização do parto foi se tornando cada vez mais cruel para as mulheres, que são obrigadas a parir seguindo um esquema industrial e agora são aterrorizadas com o que devem ou não fazer ao longo da gestação.
P. Para tentar finalizar de um modo um pouco otimista…
S. Sim, mas veja, se há tanta perseguição é porque há muita luta. Creio que é muito importante compreender que estamos enfrentando um sistema, um Estado que não dá mais nada às pessoas, um Estado que destrói, que deve usar a violência o tempo todo porque não tem nada a nos oferecer.
P: Gosto muito da sua reflexão a respeito dos comuns. Como uma possibilidade muito concreta de produzirmos outras relações entre nós, mas também com o espaço, com a terra e com a própria economia. Se você puder falar um pouco mais disto: dos comuns como uma questão feminista.
S. As mulheres estão criando os comuns no mundo todo. A Maria Galindo fala muito sobre isso. Quando fui a La Paz, vi as mulheres que enfrentam a crise, saem de casa e transportam a reprodução para a rua, organizam o cuidado das crianças, se colocam contra a polícia, fazem bancos e criam toda uma vida comunitária. Essa tem sido uma resposta pela sobrevivência, não é como num pensamento ideológico, é algo que as mulheres compreenderam na prática: que se juntando poderiam criar novas formas de sobrevivência, melhor que sozinhas. As mulheres, depois do golpe no Chile, começaram a formar redes. Na América Latina, a história dos últimos trinta, quarenta anos, é uma história de mulheres que produzem comuns: as mães, as cozinhas populares… Muita gente diz, como no caso da proposta dos salários para o trabalho doméstico: “ah, mas essa não é a solução porque os comuns não destroem o capitalismo”. Claro que não é a solução, claro que a destruição do capitalismo virá de tantas lutas que se juntam, porque é um sistema que se ocupa de todos os aspectos da vida, então, temos todo um arco de lutas e nosso desafio hoje é como juntar essas lutas. Mas os comuns são algo muito importante, pois são formas de sobrevivência, trata de uma forma de organização, de uma forma de se reapropriar da capacidade de iniciativa, de um jeito de dizer “eu sou capaz de fazer algo para mudar a minha vida”, porque somos muito desempoderadas pelo Estado que promete coisas e não dá, pelo partido idem. Temos aí uma possibilidade de pensar o autogoverno, isso me parece uma coisa revolucionária. Essa ideia de que nada se faz sozinho. Que é preciso juntar-se com outras pessoas para organizar uma vida econômica, criando uma forma de solidariedade, num mundo que tende a nos separar, a nos individualizar. Creio que é muito importante caminhar por aí, essa é uma condição para se poder lutar em todos os contextos. Então, isso não significa abandonar completamente a luta pelo salário, a luta pela moradia, bem ao contrário, essas lutas se fortalecem uma com a outra.
P. O que você pensa sobre as diferentes estratégias de luta das mulheres hoje.
R. Não há apenas uma estratégia, são várias e são contextuais. Variam segundo as situações. Mas para mim há uma estratégia mais geral, em torno da qual todas as lutas precisam se articular, que é uma questão fundamental: precisamos conhecer nossos inimigos. Quem é o Banco Mundial, por exemplo, que há anos se apresenta como promotor dos direitos da mulher e de sua “autonomia”, mas cujo objetivo continua sendo expropriar terras. Hoje, há o extrativismo, a mineradora, Monsanto, há uma só direção nisso tudo. Estamos diante de uma estratégia global que desapropria, obriga as populações a se concentrar em cidades monstruosas, espolia terras para controlar os recursos minerais e agrícolas. É fundamental perceber isso. A luta pela terra é a luta mais importante hoje no planeta. Nós perdemos o controle sobre o que comemos, bebemos, respiramos. É uma derrota gigante. Essa luta se dá mais intensamente na América Latina, na África, mas vale para todo mundo. E são as mulheres que estão levando essa luta adiante. É uma luta pela reprodução. Um exemplo é a Nicarágua, onde o feminismo se centra na questão do controle das sementes. As mulheres são diretamente afetadas por isso: tem a ver com terra, com espaço, com ar, com reprodução. No México, camponesas me disseram que naqueles lugares onde as mulheres são protagonistas dessa luta pela terra, a memória coletiva está mais viva. E é justamente aí, nesses contextos, que nascem as lutas pelo comum, que é essa capacidade de criar e construir alianças entre lutas diversas.
Seleção e transcrição: Alana Moraes, Oiara Bonilla, Thamires Sarti
Imagens: Diogo Campos dos Santos
O que se convencionou, mais recentemente, chamar de intolerância religiosa no Brasil foi constitutiva do processo de colonização do país, deixando suas marcas no âmbito cultural e político-estatal até os dias atuais, com mudanças que dizem respeito aos atores que perpetraram essas violências (ora colonizadores, ora agentes do estado, ora líderes religiosos) e aos argumentos em que se ancoravam suas ações.
O Diabo cristão
O Diabo, principalmente a partir da Alta Idade Média, foi considerado o agente universal de todo mal sobre o mundo. E mais que isso, ele foi visto como o principal aliado de todos os opositores, efetivos ou imaginários, da Igreja cristã. Além disso, o Cristianismo creditou importância fundamental à heresia. Para os gregos a heresia, haíresis, significava apenas uma escolha entre diferentes filosofias. O Cristianismo transformaria, entretanto, essa “escolha” em um crime.
No fim da Idade Média com os grandes medos gerados por coincidências trágicas que envolveram epidemias mortais, sublevações, guerras religiosas e políticas, a Igreja meditou sobre o fim do mundo e produziu uma variedade de textos apocalípticos. O imaginário coletivo ocupou-se de um grande medo do fim do mundo e da vinda do Anticristo.
Assim, a visão de mundo dualista do Cristianismo tornou herético e diabólico todo sagrado não oficial. Os judeus, os muçulmanos, as mulheres, doravante transformadas em bruxas, e todos os grupos de possíveis inimigos da Igreja foram vistos como representantes do Diabo na Terra.
Bruxaria e demonização da mulher
O medo da mulher não foi inventado pelo Cristianismo, mas foi desde cedo integrado e alimentado em suas doutrinas. Nas diversas interpretações bíblicas para o segundo capítulo do livro do Gênesis, além de ter sido secundária na ordem da criação divina, a mulher, representada por Eva, ainda foi capaz de introduzir o mal na Terra ao comer o fruto proibido da árvore do conhecimento, condenando toda a humanidade.
A mulher, como um ser mais próximo da natureza e da matéria, responsável pela procriação da vida, mas também pela morte, juiz da sexualidade masculina, dona de uma impureza fatal e de uma força misteriosa, impedia, segundo a mentalidade da época, os homens de realizar sua espiritualidade.
O tema da natural inclinação feminina para os comportamentos desviantes fazia parte do programa educacional de padres e religiosos das mais variadas ordens. Os médicos também reafirmaram em seus escritos a inferioridade física e moral das mulheres, assim como os juristas deram sua contribuição para reforçar a inferioridade estrutural do sexo feminino, utilizando como sustentação teórica as leis do direito romano. A produção literária e a iconografia da Renascença foram igualmente hostis à condição feminina.
Assim, a longa tradição misógina ocidental transformou, em meados do século XV, a mulher em um poderoso agente de satã, na forma de bruxa. A perseguição às feiticeiras de Satã foi uma das bandeiras e causas do Estado absolutista.
A partir da segunda metade do século XV até a primeira metade do século XVIII, milhares de mulheres foram processadas pelo crime de bruxaria na Europa, por tribunais eclesiásticos e civis. A feitiçaria e as práticas mágicas são acontecimentos universais que estiveram presentes em todas as sociedades desde a Antiguidade até os tempos mais modernos. No entanto, a grande “caça às bruxas” foi um episódio limitado no tempo e no espaço, mantido pelos países europeus no começo da Idade moderna.
As crenças mágico-religiosas do Novo Mundo
Segundo o historiador José Pedro Paiva, as instâncias de poder portuguesas não empreenderam uma loucura persecutória contra as bruxas, como feito noutras partes do continente europeu, mas, nem por isso, deixaram de se preocupar com as práticas supersticiosas do povo comum, eivadas de magismo, e com a possibilidade do pacto com o Diabo.
Muitos cronistas e eclesiásticos, certos de que estavam reencontrando no Novo Mundo – territórios encontrados pelos europeus na América, Ásia e África durante as grandes navegações do século XVI – um velho inimigo, descreviam as práticas mágico-religiosas dessas populações utilizando como parâmetro as concepções e as terminologias demonológicas que lhes eram familiares. Assim, os rituais e a religiosidade dos povos indígenas e africanos foram reduzidos, muitas vezes, ao seu potencial para o mal, sendo criminalizados e classificados como heréticos e diabólicos.
O Brasil colonial produziu manifestações religiosas híbridas, confluindo elementos das tradições pagãs europeias, das tradições africanas, dos costumes ameríndios; do judaísmo; e da religião católica oficial. Nesse cenário multifacetado foi constante o uso de soluções sobrenaturais como um meio de sobrevivência ligado, principalmente, às necessidades cotidianas e relacionado aos problemas concretos enfrentados pelos colonos (conflitos, miséria, doenças, ódios e amores).
Nesse contexto, a fiscalização do comportamento religioso das populações era realizada pelo Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição, instituição dentro do sistema jurídico da Igreja Católica Romana, cujo objetivo era combater a heresia. Esse controle introduziu na sociedade colonial uma percepção de culpa, que levou as pessoas a identificar infrações, antes inconscientes, em comportamentos rotineiros. E despertou a vontade geral de colaborar, de alguma forma, com os inquisidores, fosse para mostrar boa vontade ou para se livrar de possíveis acusações.
No caso da feitiçaria, tratava-se, mormente, de extrair dos culpados a confissão dos pactos diabólicos. Nela estava a confirmação da heresia. Na maior parte das vezes, todavia, os condenados negavam a existência do pacto. Até que a dinâmica inquisitorial, com ininterruptos interrogatórios e torturas, abalava as convicções do réu, que acabava por aderir ao que lhe atribuíam.
Para os colonos os diabos, diabinhos e diabretes que cercavam sua mentalidade e sua vida cotidiana eram bem distintos dos demônios descritos e representados nos tratados eruditos europeus. O diabo era, quase sempre, mais um intermediário com o mundo sobrenatural, assim como Deus, a Virgem e os santos, que poderia trazer benefícios e resolver problemas, ainda que através de um contrato, sabido, ilícito.
Dona Isabel Maria da Silva, por exemplo, foi acusada pela Inquisição em 1763, na cidade do Pará, de invocar três pretinhos através de algumas cantigas. Os “diabretes” eram os responsáveis por lhe contar tudo o que acontecia na cidade e as pessoas a procuravam em busca dos seus poderes adivinhatórios. (ANTT, Inquisição de Lisboa; processo nº 12889).
Já Joana Maria foi presa e acusada de feitiçaria pelo Santo Ofício por vender um fragmento da hóstia consagrada dizendo que se tratava de uma Relíquia do Santo Lenho. A mulher branca, cristã-velha, disse que o objetivo era conseguir a prisão pelo Tribunal e, assim, livrar-se dos maus tratos e crueldades do seu marido, que estava especialmente furioso por conta do sumiço de dois frangos e uma galinha, furtados de sua casa em sua ausência.
Africanos, indígenas e mestiços foram os grandes curandeiros do Brasil colonial. O conhecimento que tinham do uso de ervas e os rituais específicos dos seus cultos foram somados aos saberes europeus da medicina popular. A doença era vista como fruto da ação de espíritos malévolos assim, a forma mais eficaz de se obter a cura era através dos meios sobrenaturais. No século XVIII, o número de denúncias e confissões que envolviam as curas era abundante.
O índio Raimundo Antônio de Belém foi acusado de faltar às missas, incentivar os demais índios a também faltarem e agir como pajé entre eles. era muito popular pela sua capacidade de curar doenças na cidade. Foi acusado várias vezes de invocar demônios cantando com um maracá e entrar em transes que faziam o réu mudar de vozes e falar coisas confusas. O réu foi processado por bruxaria e pacto com o Diabo. (ANTT, Inquisição de Lisboa; processo nº12886).
Escravos faziam feitiços para livrarem-se dos castigos dos seus senhores ou para vingarem-se destes ou de outros escravos que pudessem prejudicá-los. Joana Maria, preta crioula, com 22 anos, moradora no engenho de Nossa Senhora de Guadalupe (Pará) foi acusada pelo seu senhor, Gonçalo José da Costa, de fazer feitiços para envenenar a índia Felipa, escrava e moradora do mesmo engenho. A princípio, Joana disse ao Santo Ofício que nada fez contra a índia, no entanto, depois, reconheceu que por duas vezes fez uso de algumas raízes, conhecidas como cipó pucão, e indicadas para abrandar os corações das pessoas. (ANTT, Inquisição de Lisboa; processo nº 2691).
Joana disse ter ganhado as raízes de uma mulata chamada Quitéria, moradora de um engenho vizinho, que a aconselhou a usá-las para abrandar o ânimo do seu senhor e impedir os castigos físicos que, constantemente, recebia. Segundo os ensinamentos de Quitéria, as raízes deveriam ser esfregadas nos pulsos ao mesmo tempo em que se proferiam as palavras: “Senhor paitinga [sic] assim como vossa mercê tem raiva de mim, assim se lhe abrande o coração”.
Quando foi presa a escrava estava há quase um mês, desde que incidiram sobre ela as acusações de feitiçaria, amarrada em um tronco. Ela confessou a utilização de cruzes, feitas três vezes com as raízes nos pulsos e na testa e a colocação das raízes debaixo da língua para conseguir convencer as pessoas. Também assumiu colocar as ervas na comida da índia Felipa, mas não para prejudicá-la e sim para impedir que ela lhe tivesse ódio. Enfim, insistiu que o uso das raízes sempre foi com a virtude de abrandar e não causar danos ou malefícios.
Ela não confessou o pacto com o demônio, apenas assumiu que fazia coisas supersticiosas e mostrou-se arrependida frente ao Santo Ofício. O tribunal a considerou uma ré diminuta, mas demonstrou “clemência” com a escrava, tendo em vista os anos que passou na prisão e os castigos corporais a que fora submetida. Pelos seus atos supersticiosos “e que só podia produzir efeito por intervenção, e concurso do demônio” Joana foi condenada a um mês a mais de prisão e a ser instruída nas coisas da fé “necessárias para sua salvação”. (ANTT, Inquisição de Lisboa; processo nº 2691).
Os calundus também fizeram parte dessa atmosfera híbrida de crenças e costumes. Suas descrições, por vezes imprecisas na documentação inquisitorial e nas devassas eclesiásticas, remetem a reuniões festivas de negros, nas quais estes cultuavam ídolos, dançavam, pulavam e entravam em transes temporários, nos quais podiam falar em nome de espíritos para realizar curas e adivinhações. Ficavam ao som de batuques e, às vezes, faziam defumações. Segundo a historiadora Daniela Calainho, oram frequentes na Bahia e também na região das Minas durante o século XVIII, dada a grande quantidade de escravos negros.
A resistência ao sistema escravista no mundo colonial se deu de diversas formas, desde manifestações explícitas, como fugas, revoltas e formações de quilombos, até as mais cotidianas, como suicídios, roubos, assassinatos e feitiços. As práticas mágicas eram, portanto, necessárias e essenciais nesse mundo escravista, como uma alternativa de combate ao sistema colonial. Entretanto, a compreensão dessas práticas não perpassou apenas a dimensão da resistência.
Durante o Império, o catolicismo continuou a vigorar como a religião oficial no país, o artigo 176 do código criminal de 1830, por exemplo, punia a celebração, a propaganda e o culto de outras religiões. O código penal de 1890 também criava mecanismos legais para combater os chamados “feiticeiros” (Maggie, 1992). Só a primeira Constituição da República, em 1891, torna o Estado laico e prevê a separação entre religião e poder político. A partir daí a liberdade religiosa passou a ser defendida por lei, o que não impediu a perseguição das religiões afro-brasileiras durante todo século XX até os dias de hoje.
Aos poucos, na sociedade contemporânea o debate acerca da religião verdadeira foi banido da esfera pública e relegado ao foro íntimo e privado. As questões teológicas perderam impacto na vida pública e o direito fundamental à liberdade religiosa foi a resposta política apropriada aos desafios do pluralismo religioso na modernidade. No entanto, mesmo após a laicizarão do Estado, no qual a religião deixou de ser um fator de unidade política, o catolicismo permaneceu como religião hegemônica e influente no Brasil, enquanto que o imaginário social e policial criminalizava as expressões religiosas afro-brasileiras presentes na religiosidade popular.
A partir de meados dos anos 2000 o debate religioso voltou a ser protagonista das discussões políticas atuais, principalmente pelo comportamento e discurso extremista de algumas Igrejas, de denominação neopentecostal. A recente “conversão” de traficantes de drogas ao Neopentecostalismo e a expulsão de pais de santo das favelas e periferias do país, notadamente no Rio de Janeiro, reascendeu as polêmicas sobre um velho problema que vem se arrastando por toda história do Brasil.
O mito da democracia racial, que outrora camuflou o racismo no Brasil, assim como o mito da paz religiosa que, pouco a pouco, desmorona, procurou esconder a desigualdade de oportunidades de direitos que acompanha a história do país. Práticas racistas e segregadoras, mesmo que não sejam oficiais ou definidas por lei, continuam a ser perpetuadas, condenando uma parcela significativa da população a estereotipização e a marginalização. Pode-se indagar que se existem elementos mágicos em quase todas as religiões do Brasil contemporâneo (a igreja católica com seus defumadores e água benta e grande parte das igrejas evangélicas com sabonetes de arruda e águas curativas), se existiu um hibridismo entre esses diversos cultos desde o Brasil colonial, se o Diabo é cristão e não pertencia a visão de mundo dos africanos, porque justamente as religiões de matriz africana foram demonizadas e perseguidas ao longo da história do nosso país? A resposta é evidente: porque é “coisa de preto”. É preciso entender todas as dimensões e estruturas do racismo que cerca a história do Brasil e combatê-lo de todas as formas possíveis. AXÉ!
então, durante a cópula talmúdica, Lilith fez uma reviravolta mirabolante e ergueu-se sobre Adão – nesse movimento, o sol sumiu por um instante e Adão conheceu a sombra. O corpo de Lilith tomou uma dimensão que ele jamais imaginara possível, e ali Adão sentiu medo. Lilith acomodou-se sobre o falo de um Adão sem verbo e gozou lindamente. Em seu íntimo, Adão foi feliz pela primeira vez. O corpo negro de Lilith revelou ao mundo o verdadeiro sentido da palavra potência e logo a felicidade de Adão, fugaz como são todas as felicidades, deu lugar ao medo.
Adão tentou se mover para deitar sobre Lilith, mas não conseguiu. Pediu então a Lilith que se retirasse de cima dele e voltasse ao seu lugar – sob seu peso, sujeita à linearidade, sem ângulos, obliquidades e voltinhas ameaçadoras. Lilith negou-se com um sorriso no canto da boca. Adão tentou ordenar, em vão. Ameaçou. Implorou. Chorou enquanto Lilith inundava o mundo com seus fluxos criadores. Quando por fim Lilith decidiu desmontar de Adão, foi para comer um figo, porque a fome lhe chamara. Adão custou a levantar-se, porque lhe faltava a força nas pernas. Quando por fim pôs-se em pé, jurou para si mesmo que aquilo jamais se repetiria e para livrar-se da culpa e da vergonha de ter sido parte de um inteiro onde não cabia a ordem, foi queixar-se com Deus.
Foram necessários dois minutos de choramingo adâmico para um Deus inseguro dar o veredito. Lilith lambia contente a ponta dos dedos sentada em meio a arbustos de alecrim quando lhe chegou a ordem: submeta-se. O paraíso não é lugar para seus arroubos. Aqui você não apita. Obedeça.
A Lilith, lua negra, com seus pezinhos de coruja e olhos felinos, com suas curvas, seus pelos escuros, seus seios grandes, soltou um guincho de dor e raiva, gritou “Não” e saiu voando do paraíso – daquela que era a sua terra, sua fonte, de cujas areias, pedriscos, raízes e lodo seu corpo havia sido criado. Como é possível eu ser humilhada assim na minha casa?
Chorou. Odiou. Gritou e uivou sozinha no deserto. Sentiu-se injustiçada, roubada, traída, sequestrada, enganada. Quis arrancar suas asas. Quis morrer e quis matar. Mas não o fez. Abriu um caderno e ali rabiscou vários planos. Aprendeu a fazer do uivo um assovio. Ensinou-se a dançar, ainda que sentindo dor. Trepou com muitos espécimes sem nome – jamais imaginou que os bíblicos, mais tarde, criariam tantas palavras para nominá-los, no afã de conhecer e apreender suas almas transgressoras. Teve filhas e filhos, aos milhares, todos marcados por sua negação. Inventou coisas incríveis e, sobrevivente que era, deu muitas gargalhadas altas. Fez do deserto sua morada e jamais temeu a amplidão, o mar vermelho, o céu noturno. No silêncio, na noite, na areia fria, ela rabiscou muitos esquemas, divertiu-se com rastejantes, assobiou melodias que embeveciam os chacais, requebrou os quadris, ondulou a pélvis, fez contas, arrumou seus cachos de diversas maneiras, sussurrou segredos para suas filhas (muitas e muitas vezes, de modo que os eternizassem), misturou cheiros e sabores em cadinhos sobre fogueiras, coseu as meias e as mantas de todas as que viriam depois dela, de todas as bruxas.
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As bruxas souberam e sabem ser sozinhas e fazer o sabbat, o dia do não. Sabem parar, não-fazer, negar-se à obrigação e vivificar o ofício sagrado em festivais de paixão e compaixão, quando à luz do fogo copulam percepções em movimento, dissolvem-se identidades: ali, na interseção de futuros e passados, partícula e onda gargalham ao mesmo tempo na roda e giram, giram, giram, seus copos cheios, seus sexos em brasa prontos para derramarem-se em bênçãos sobre o mundo. Compaixão ameaça horrores. Para segurar essa gira foram feitos sapatos apertados, bons modos, masmorras, hospitais, escolas, redes de televisão, lingeries, photoshop, remédios de tarja preta, o iogurte light e gluten-free. Investimento pesado anti-compaixão, anti-bruxas.
Sabbat, esbat, tanta confusão na praia de Copacabana. Cansaço. Vou não.
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Diz-se que Lilith é assassina de crianças. Que lhes suga a energia vital nos primeiros dias de existência. Fiz isso muitas vezes ao longo desse tempo que habito, e certamente o fiz muitíssimas vezes mais em outras trajetórias apagadas da memória, mas presentes em mim. Assassinei minhas crianças, muitas crias ainda no útero, quando eram apenas ideias. Algumas mereceram lápides: páginas de cadernos rabiscadas com anseios e volúpia, onde sobraram resquícios de concepções às quais neguei um destino, um caminho. Outras, paridas junto com o sol ascendente, ocuparam um espaço estreito em manhãs de terremoto, quando prometi mudar tudo e dar-lhes esperança, sopro. Antes das 10 horas já haviam perecido, e eu, fingindo sobriedade e nenhuma culpa, fechava os cadernos, os arquivos, calçava os sapatos e voltava para a rua. Matei muito. Meu computador é um cemitério, as caixas de papeis e cadernos antigos que tenho em baixo da cama são depositórios de holocausto de palavras e frases às quais, um dia, pensei dar à luz.
Observei a mim mesma criticamente, friamente, executando esses gestos assassinos e conheço meu impulso: agora mesmo, sinto ganas de estrangular este texto tão miúdo e indefeso que sequer mexe braços e pernas. Neste afã, antes de matar, agarro a mão de Lilith e peço – me permita esse percurso, me permita correr o risco do encontro com o limite, me permita trazer ecos dos guinchos que anunciam a tua e a minha dor para dentro da bitola das palavras. Parece ofensivo, eu sei. Mas hoje, para mim, é necessário. Aperto as mãos de Lilith. Uma, ossuda e ressecada, me arranha. Outra me afaga, sublime mão de avó. Permita-me esse percurso – eu peço. Com todos os riscos de mágoa e espanto que ele traz consigo, me permita tentar dizer de minha matéria essencial, prima matéria, mater ejus Luna. Permita-me essa jornada rumo à inexorável incompletude. Assim eu sigo, negociando com o anseio de morte.
Lilith é anterior ao verbo e tudo que eu possa fazer para traduzir em linha aquilo que pulsa no meu umbigo – golfada de leite, sangue e grito – é pouco. Sobram crianças pegajosas, rosadas e sempre insuficientes – merecem morrer. Vamos ver por quanto tempo consigo velar seu sono.
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Chegou em casa, amanhecia. Um dedo negro, longo e em riste a acompanhara da rua à casa, assim como a acompanharia mais tarde, da casa à rua – e ela sabia que seria assim. Um chinelo arrastado e invisível fazia a trilha incidental para o dedo. Por cima do ombro, de relance, ela intuía a velha persistente. Era a mesma bruxa de sempre, sussurrando: uma hora isso acaba. Olhou pela janela, meteu pra dentro um ar fresco de arrebol. O prazer se sobrepôs ao medo. Fez uma transposição mágica.
As transposições mágicas que as mulheres fazem em diferentes momentos ao longo da vida merecem um olhar amoroso. Geralmente elas são feitas por mulheres abarrotadas, mesmo em seus vazios. Um olhar de esgueira para o nosso eu futuro – olhar abarrotado de potência: deu-se uma transposição mágica. Uma porta ruidosa, batida com força sem nenhum olhar pra trás, força abarrotada de convicções. Transposição mágica. Corrida na estrada esburacada, olho na faixa de chegada – onde começa a maratona -, pernas e estômago abarrotados de dúvidas sobre merecimento, mantidas secretas. Transposição mágica. Um abandono ao gozo, entranhas abarrotadas de eternidade, sentindo florescer hibiscos e camélias do umbigo à glote. Transposição mágica. Uma cria nos braços, nas mãos, um amor para o qual o mundo inteiro não basta – um segundo abarrotado de solidão –, transposição mágica. A mãe, a avó, a tia, a amiga que vai, junto com aquele olhar, o único que sabe de que somos feitas de fato. Fecha-se o caixão, acende-se a pira, dois corpos queimam: o morto e o vivo. Na saída do rito, resta o dia – comprar feijão, banana, ovos, pagar uma conta na casa lotérica e depois ir trabalhar, medula abarrotada de saudades. Transposição mágica.
Na coleção dessas transposições muitas mulheres se descobrem bruxas. Algumas se sabem bruxas antes de tudo, e fazem das transposições mágicas seu tecido, sua tensegridade, sua coreografia de movimentos de libertação. Há outras mulheres que transpõem sempre, transpõem tanto, com graça e com dor, mas não sabem de seu atravessar – nos seus instantes mágicos se deixam distrair pelos recados do mundo e escolhem estar ausentes quando borboleteiam ao seu redor os mais ricos significados.
Há um tempo para tudo. Há tempo para tudo.
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Desde sempre o sacrifício de bruxas é um espetáculo.
Os sacrifícios contemporâneos têm vinhetas e apresentadores, patrocínio da Eli Lilly, Pfizzer, Victoria’s Secret e uma marca de colágeno em pó com vitamina C cujo nome não lembro agora. Ao redor da praça de sacrifícios desfilam modelos sílfides de cabelos longos distribuindo free trial packs com aparência cândida. Memes de gatinhos oferecem outro tipo de alívio entre as doses.
O inquisidor pergunta, divertido: No que você está pensando? Não ouse não oferecer resposta. Você existirá, ele assegura. Responda e o polegar dará o veredito – quanto clique silencioso em angústia. A fogueira arde, o cadafalso range, o carrasco manda um smiley, é difícil identificar a origem da dor do martírio por ela ser tão difusa, de efeitos administráveis. A dor punge em momento eterno, não há depois. Tudo se desmilinguindo na luz fria que frita miolos, miúdos e mucosas. O churrasco é fenomenal.
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Salimon era conhecida como uma bruxa traiçoeira e tenebrosa. Morava numa gruta por onde todos tinham que passar se quisessem subir e descer a montanha. Salimon controlava os fluxos e apavorava os homens, hora com suas pernas peludas e patas fendidas (assim diziam), hora com sua cabeleira descontrolada, passos silenciosos e língua maliciosa. Na gruta da montanha, saltitando entre pedregulhos e cantando hinos cátaros com deboche, Salimon tocava o terror no sul da França.
Salimon pervertia moças. Ensinava-as a não contar o tempo; a afastar os ombros das orelhas em movimentos lânguidos; a mover-se com ritmo e prazer; ensinava-as sobre a força de seus maxilares, de suas tripas, sobre a agilidade de seus dedos. Salimon mostrava às moças inocentes como rodopiar e mover os braços em direção ao longe e como cantar alto com a boca fechada. Depois disso nada voltava à ordem, era um inferno – vinham homens e mulheres direitas de todo lado, com paus e palavras de ódio e desprezo, com cruzes e livros para atormentar Salimon, que não achava a menor graça em visitas de cerimônia.
Salimon nunca pereceu. Salimon perdeu lugar na boca do povo, o que para ela foi um grande alívio. Salimon não está no Facebook. Salimon tem um caderninho encardido cheio de pedaços de histórias colados aleatoriamente. Salimon tem um saco de gravetos, pedras e farelos de ervas secas que carrega consigo o tempo todo. Salimon quase não fala, mas move-se com lepidez. Salimon anda descalça e às vezes partes de seu corpo sangram. Salimon faz bonecas de pano e dá de presente a meninas perdidas. Salimon nunca teve pai. Salimon nutre amizades antigas com salamandras e cotovias. Salimon só cozinha quando lhe dá na telha. Salimon ri de seus cabelos brancos, de suas unhas sujas de terra, de seus joelhos ralados pelo tempo. Salimon sai da montanha com frequência – e visita mulheres inconformadas nos desertos do ser cindido, para um chá.
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que não me venham falar em lua cheia. Não me atraem as facilidades. Minha criação se dá a partir do nigérrimo, do lugar onde tudo cabe porque nada se vê. Um ser partido em dois, uma fenda, um hiato – isso dói, costas com costas sentindo saudades dos rostos familiares, vão me dizer que isso aparece na festa da lua cheia? Gêmeos separados pela espada, um imolado e o outro exilado no deserto, é disso que se trata o vazio contemporâneo. Não há festa ao bode na lua cheia. Cuidado. É difícil ser bruxa no deserto sem lua, mas é lá que tudo faz sentido. Na lua cheia se dá a paixão, mas é na lua escura que se dá a compaixão com a exilada, com o outro expiatório e expiado, com o corpo imolado.
Noite sem lua. Ali, na dor da areia noturna levantada pelo vento frio, açoite do deserto contra as peles marcadas, na secura infernal, no desconhecido de si em si, a bruxa deita seus líquidos e aviva suas brasas, testa com a língua a acidez de sua pedra hume e sente, sente fundo, sem refletir imagem nenhuma, incandescente. Escura, inteira, velha e nova. Lua negra.
Toda a cultura ioruba assenta reflexões constantes e profundas acerca do homem e do seu corpo. Todas as partes do corpo são tomadas como elementos importantes para a nossa trajetória na Terra (Àiyé).
Com essa orientação fui educada e educo os meus… aprendizado de família preta: passado e repassado de voz em voz.
No barro preto do terreiro aprendemos que o corpo tem que ser valorizado e respeitado. Perdi as contas do número de vezes que embirrava com as garrafas de minha avó:
– Vó pra que beber isso?
E ela respondia :
– Negrinha deixa de história e bebe logo isso…
Como vocês acham que nosso povo resistiu às chicotadas, chibatas, troncos?
Deixe de ser rebelde e bebe…
Você ainda vai me agradecer …
Cresci e entendi…
O mundo e as memórias de matriz africana estão fundamentalmente inscritos e escritos no corpo.
Foi difícil, confuso, perverso, mas entendi o que dizia a mais velha. Existimos e co- existimos em dois mundos.
Para o ocidental o corpo é percebido como objeto a ser disciplinado, vigiado e controlado, além de ser filosófica e mesmo ontologicamente separado da mente.
Em contraponto, para o povo preto, se a memória pode ser considerada uma forma de escrita, sua grafia está sem dúvida localizada e incorporada no próprio corpo, pulsando de forma viva: com casca, limo e raiz.
Aprendemos no barro preto a saudar todas as partes do nosso corpo.
Aqui, neste depoimento, vou destacar de forma breve a visão, a compreensão e o respeito que temos por aquele que nos sustenta e nos mantém eretos. Aquele que nos permite a movimentação com desenvoltura: o pé!
Ao pé dizemos a saudação: Mojubá pelebè èsè. Que significa para vocês “Eu saúdo a sola dos pés”. Dos pés saudamos a sua sola!
Sempre ouvi meus mais velhos dizerem: “cuidem de seus pés com muito respeito ele é o seu condutor…”. “Peçam sempre que os seus pés lhes levem ao encontro de boa sorte”.
Assim hoje lhes digo eu: peçam que os pés de vocês lhes levem ao lugar certo, com pessoas certas e na hora certa. Desejem que seus pés estejam sempre em consonância com ori (cabeça) para que vocês não pensem uma coisa e os pés de vocês levem para outra coisa.
Peça que os pés lhes levem a adquirir boa sorte.
Na vida dos terreiros todos os ritos são de pés plantados e enraizados no chão.
Sem falar da demonstração de humildade de nossos Orixás. Eles que ali estão, mesmo que todos aparamentados e elegantemente vestidos, estão se apresentando para nós com os pés no chão. Em respeito ao solo. À terra. Ao barro. Por onde dançam com leveza, contando a sua história.
Compreender o aprendizado do povo preto, tanto nos terreiros quanto no contexto familiar pede por ouvir, olhar, gravar na cabeça e a partir da repetição do gesto, do canto que comunica, do atabaque que proporciona o movimento do corpo e da dança perceber, sentir e acreditar na magia e no saber ancestral passado pelos mais velhos de geração em geração. Enfim é respeitar o fogão de lenha que cozinha as receitas da vovó, que nos dá sustentação e força para suportar o duro dia a dia.
“Comecei a escrever sobre poder porque era algo que eu tinha muito pouco”.
Octavia Butler
1976, Los Angeles: Dana – uma jovem mulher negra – escreve. Aos 26 anos, entre sub-empregos que pagam pouco o suficiente para uma (sub)existência de comida e aluguel baratos, mas não ocupam a mente o bastante para atrapalharem as muitas horas de escrita diária na jornada pós trabalho. Dana é escritora – quase ninguém parece entender. Optou pela precariedade do conto em conto, livro em livro, das páginas escritas depois do dia de trabalho ruim, das poucas horas de sono, pelos sonhos dos romances vendidos que poderiam pagar meses de aluguel. Em 1976, Dana pode optar, ainda que nas margens pequenas de uma sociedade que não incentiva mulheres negras escritoras.
Kevin, o marido branco de Dana, já não tão jovem, também escreve. Entre a orfandade e os parentes de ambos que não aceitam bem o casamento interracial, Dana e Kevin formam o seu próprio e modesto núcleo familiar: em um apartamento novo com muitos livros por serem ainda arranjados nas estantes, com duas máquinas de escrever e dois escritórios. Então, um mal estar repentino e Dana já não está mais lá…
1824, Maryland: Dana não escreverá mais por muitos anos (ou por alguns dias). Kindred: laços de sangue (Octavia Butler) é a jornada de Dana misteriosamente lançada inúmeras vezes de volta ao século XIX. A cada deslocamento Dana permanece mais tempo no passado escravocrata. Primeiro alguns minutos, depois algumas horas e, por fim, dias e meses. Em 1976, o tempo mal parece passar: os meses de horror como escravizada em Maryland correspondem a poucas horas ausentes do apartamento em LA. Desde a infância é Rufus Weylin quem a puxa de volta. Rufus o antepassado branco de Dana. Rufus filho de e futuro senhor de escravos em Maryland. Rufus sempre prestes a morrer e Dana necessariamente o salvando, para que um dia ela possa existir (e escrever) na segunda metade do século XX na Califórnia.
1979, entre Los Angeles e Maryland: Octavia Butler (mulher negra, já não tão jovem) escreve a jornada de Dana. Butler escreve sobre poder. Ela diz que escreve sobre poder porque não o tem.
1976, Maryland: A viagem no tempo de Dana não terá por objetivo consertar o passado. Dana como Butler (mulheres negras que escrevem) possui muito pouco poder. Por isso, o seu corpo de mulher negra no início da século XIX em uma fazenda escravocrata de Maryland precisará negociar cada milímetro de agência possível para garantir a sobrevivência do seu destrutivo tataravô Rufus, apenas para que ela um dia possa existir. Dana então precisa garantir a própria existência, sem nenhuma possibilidade de ignorar a sua genealogia familiar fruto do estupro estruturado socialmente como regra.
O corpo de Dana torna-se então mais do que a sua máquina de viagem temporal, mas também, no limite, o seu único espaço de poder e controle. Dana é a sua própria embarcação (Luedji Luna, 2017), embora o controle dos deslocamentos não seja exclusivamente seu. Mas é o seu corpo de mulher negra a própria máquina do tempo de sua jornada – transportando objetos triviais como canetas e pentes; assim como aspirinas e remédios para dormir, itens essenciais para a sua sobrevivência a violência dilacerante e material das surras de chicotes dos seus antepassados senhores de escravos. Seu corpo também transporta Kevin, o seu marido branco, para um lugar no qual o relacionamento entre os dois torna-se inconcebível socialmente para além de uma relação de estupro e posse.
De início, a sua presença, o seu corpo feminino negro não codificado e destruído pelas tecnologias sociais do século XIX causam estranheza e medo. Há sempre um jogo sobre como Dana é vista pelos outros e como ela se vê como elemento externo em relação ao período e aquelas pessoas (os seus laços consanguíneos). Dana é vista sob diferentes perspectivas como a: “preta médica”, “preta que lê”, “preta branca”, “preta que não sabe o seu lugar”, “preta animal selvagem”, “Preta louca”. A mulher negra que escreve e ensina, perigosa. Os limites dos olhares classificatórios dos seus antepassados brancos são o medo e o desejo (nem sempre agindo separadamente). A cada retorno mais longo e imersivo de Dana ao passado essa negociação torna-se mais impossível. Dana possui pouco poder e possuirá cada vez menos. Gradativamente a questão deixa de ser proteger o corpo, e torna-se a de calcular o limite de agressão ainda possivelmente suportável para ela.
“Preta médica”: Dana detém tecnologias e conhecimentos do presente superiores ao dos brancos. Esses servem de elemento de barganha (ela é a que cura/ensina), mas não a protegem suficientemente. O conhecimento científico e cultural não supera a estrutura supremacista branca de poder daquela sociedade.
Será que já superaria em 1976? É o que parece nos perguntar Octavia Butler. Supera em 2017? É para onde sua obra ainda nos leva. Qual o poder das mulheres negras que escrevem em uma sociedade estruturalmente racista?
Nesse cálculo torna-se evidente que Dana não tem controle sobre a sua magia corporal, sobre o seu corpo máquina do tempo e a suas voltas ao passado. O poder é do outro, de Rufus. Resta-lhe pouco controle sobre como é percebida e aceita fora do seu tempo. O poder sobre a sua magia está em última instância no controle sobre a sua própria vida (o medo de morrer). Se o processo de escravização de pessoas negras africanas pode ser pensado como um processo de abdução alienígena, Dana também não deixa de ser uma alienígena em seu próprio país, mas vinda de outra nave – “uma espécie de náufraga”. Ela como os seus antepassados também passa por um doloroso processo de estranhamento de si mesma.
Kindred nos lança em uma série de temas e relacionamentos terríveis e complexos das relações afetivas, raciais e sociais que formam Dana (e os descendentes da diáspora africana nas Américas). Esta complexidade implode uma perfeita classificação nos gêneros narrativos: uma fantasia histórica que também é um drama familiar e que concentra nesse núcleo familiar as histórias dos séculos de escravização nos EUA. E é também escrito pela mulher negra considerada a dama da ficção científica estadunidense. Mas Kindred não é sci-fi, Butler não o permite: Dana é lançada entre os séculos sem ajuda de elementos científicos – é a iminência da morte de Rufus que a puxa para o passado e é o seu temor de morrer (e, por fim, também o seu desejo de fazê-lo) que a devolve para o século XX.
Mais do que os gêneros narrativos nos parece que são as temporalidades afrofuturistas, nas quais presente, passado e futuro perdem a linearidade racional e causal, que nos ajudam a pensar a obra. Afinal, Kindred é a jornada do dilema moral de Dana em relação ao seu antepassado branco. Dilema que consequentemente é o da sua própria existência como sobrevivente das brutalidades que iniciam a árvore genealógica do núcleo familiar que ela conhece.
Sem elementos cientificistas de efeitos borboletas e desvio em multiversos, é a realidade histórica da escravidão que emerge da viagens no tempo de Dana: memória fragmentada e trauma. Trauma que no fim da jornada se materializa na mutilação do seu própria corpo: não há retorno completo possível diante da escravidão (nos lembra Butler). A jornada de Dana se faz assim entre a fragmentação das memórias da escravidão, o passado familiar desconhecido e ocultado e a sua dolorosa reconstrução como experiência efetiva. Memórias e experiências que, ainda assim, jamais serão plenamente recompostas. Ainda que 1976, 1979: Dana e Butler sejam mulheres negras que escrevam para fazê-lo – ou, ao menos, para acessarem um pouco de poder.
O que pode um corpo? O que a tecnociência faz os corpos fazerem? O que é o útero? Do que ele é capaz? Órgão marcado por gênero, escrutinado pela tecnociência em suas relações com demais órgãos, elementos e substâncias, como ovários, hormônios, óvulos, vagina, sêmen, feto. Órgão aprisionado pela fisiologia reprodutiva, da perspectiva biomédica.
Útero, matriz, matéria. De onde, até o presente momento, todos viemos.
Historicamente caracterizado como um foco potencial de diversas (des)ordens, dentre elas a histeria. Lócus desse potente e temido descontrole psíquico-emocional que acometeria mulheres-bruxas, sobretudo quando expressam suas vontades e descontentamentos.
Ambíguo, um dentro-fora que habita intempestivamente esses corpos classificados como “femininos”, enclausurados na eterna marcação do diferente, não-humano. Corpos que sangram, gestam, parem, amamentam. Sangram, mas não morrem.
Órgãos femininos são escravizados pela função reprodutiva. Será possível ainda sonhar com alguma forma de libertação, de des-organização, quando sequer podemos decidir o que fazer com nossos próprios corpos? Quando querem nos obrigar a gestar fetos violentamente inseminados por estupradores?
O que pode um útero da perspectiva da tecnociência? Endocrinologistas, ginecologistas e obstetras têm várias respostas para essa pergunta. Todas seguindo a teleologia reprodutiva.
Mas há outras potências do corpo, do útero, outros agenciamentos possíveis para o sangue menstrual. Movimentos de descolamento da menstruação da figura de “choro” do útero pela ausência de um bebê. Da imagem de excremento, inútil, abjeto, feminino. Engajamentos que transformam o sangue menstrual em tinta, que celebram sua presença em fotografias e imagens compartilhadas amplamente, que exploram sua plasticidade e a estética-política da sua visibilidade.
Há cientistas que cultivam as células do sangue menstrual. Há células-tronco no sangue menstrual. As CeSaM (células mesenquimais do sangue menstrual) foram assim batizadas no Laboratório de Cardiologia Celular e Molecular (LCCM) do Instituto de Biofísica da UFRJ. A ideia de trabalhar com isso veio da Professora e Pesquisadora Regina Goldenberg, quando procurava uma fonte de células adultas que fosse mais acessível do que as até então mais usadas nas pesquisas científicas e terapias celulares, como a medula óssea, o cordão umbilical, a placenta. A equipe de Regina, liderada pela atualmente pós-doutoranda Karina Asensi, conseguiu desempenhar de maneira bastante eficaz o cultivo das CeSaM em laboratório, e tem conduzido diversos experimentos de pesquisa nessa frente desde 2008.
Esse cultivo envolve isolar as células que interessam – as células mesenquimais, que habitam a parede interna do útero e que trabalham na renovação celular após o descamação que ocorre com a menstruação. Essas células possuem características similares às células tronco embrionárias, embora não tenham a mesma potência de diferenciação. O procedimento técnico implica uma sucessão de diluições e centrifugações que separam os diferentes componentes do sangue menstrual de maneira a deixar presentes na placa de Petri apenas as células que “aderem” a ela. Uma vez aderidas, essas células são alimentadas, crescem e vão se multiplicando até formarem populações expandidas de células. Que, por sua vez, são utilizadas em experimentos científicos para terapia celular, bioengenharia e medicina regenerativa.
Em laboratório, as CeSAM expandem rápido, e resistem bem a condições de privação. Esse é um dos fatores que as tornam interessantes tanto para pesquisas quanto para tratamentos clínicos. Mesmo uma pequena quantidade de sangue menstrual inicial pode ser revertida em milhares de células.
O perfil das CeSaM tem se mostrado equivalente aos das células mais frequentemente usadas em pesquisas com terapia celular, como as células da medula óssea. Elas têm uma sobrevida maior que a observada em células de outros tecidos, demorando mais tempo para perder a sua capacidade proliferativa em cultura. Têm, ainda, uma capacidade superior de resistência a condições desfavoráveis, tais como privação de nutrientes e de oxigênio.
Comparativamente com os demais substratos corporais utilizados (medula, cordão umbilical, gordura etc.), o sangue menstrual é aquele que tem a maior disponibilidade potencial e ausência de invasividade para ser obtido – basta coletá-lo durante o fluxo menstrual, e em pequenas quantidades. As pesquisas realizadas até o presente momento demonstraram que o sangue menstrual é um excelente vetor de acesso para células humanas adultas, que podem ser cultivadas em laboratório, com plasticidade e capacidade de diferenciação vantajosas para a pesquisa científica e, possivelmente, para a terapia celular.
Contudo, é um substrato marcado, de partida, por gênero e sexualidade. Não só vem do tecido interno do útero, como passa pela vagina no seu caminho para “fora” do corpo. Essa passagem não é banal, nem neutra, e isso se reflete no universo de pesquisas possíveis com células mesenquimais no LCCM. Não é à toa que a iniciativa do uso dessas células tenha sido tomada por uma pesquisadora mulher. E que sejam ainda poucas, e fundamentalmente mulheres, as pesquisadoras que participam das investidas com esse substrato corporal no laboratório.
Apesar da primeira publicação importante sobre as CeSaM, neste laboratório, ter sido parte da pesquisa de um pesquisador homem, e a célula ter demonstrado a sua excelência e utilidade, rapidamente outros substratos corporais (como o sangue de cordão umbilical e a gordura) passaram a ser também estudados para desenvolver o mesmo tipo de ação. Embora estes tenham, proporcionalmente, uma quantidade inferior de células, demandando uma amostragem inicial maior, ou mais tempo de cultivo e expansão, parece haver uma preferência maior (ainda consensual na comunidade científica da área, e também no laboratório) de evitar o uso do sangue menstrual, sempre que for possível.
Diferentemente das demais células de tecido adulto pesquisadas, as CeSaM são muitas das vezes pensadas como sendo células exclusivas “das mulheres” – que seriam empregáveis apenas em mulheres nos eventuais tratamentos futuros. Não há, entretanto, do ponto de vista científico, nenhum impedimento adicional ao trânsito das células do sangue menstrual para corpos masculinos, comparativamente a outros tecidos utilizáveis, desde que sejam compatíveis – a não ser em casos de tratamentos autólogos (nos quais se utilizam as células do próprio paciente). A marcação de gênero opera de maneira a impossibilitar que a CeSaM seja tratada como uma célula-modelo, que pudesse ser universalmente estudada para tratamentos em corpos humanos.
As pesquisadoras das CeSaM encaram vários desafios para levar adiante suas pesquisas: convidar mulheres a doar material, “dar o próprio sangue” menstrual para a pesquisa, apresentar o trabalho em congressos científicos, falar sobre a pesquisa com outras pessoas, defender e divulgar seus resultados. Isso implica também, encarar os eventuais – mas inevitáveis – comentários jocosos, piadas machistas, apelidos engraçados sobre a fonte da célula. Cenas de bastidores, que muitas vezes passam desapercebidas. Mas que sobrepõem uma misoginia (implícita, e às vezes mais explícita) da sociedade, às próprias células.
Apesar de produzirem resultados bons de acordo com as expectativas da área científica em questão, as CeSaM ainda ocupam, no universo de pesquisas do LCCM, uma posição secundária ou marginal em relação a outras fontes de células. Sua perspectiva de um engajamento central em pesquisas maiores, de fôlego, projetos grandes e coletivos que concorram nos maiores editais é praticamente nula, ou bastante improvável. Pelo contrário, nesse tipo de projeto ela sequer costuma ser incluída entre as células a serem utilizadas na pesquisa. Maior visibilidade é dada a substratos corporais menos marcados, ainda que o uso destes envolvam procedimentos mais invasivos (ou menos disponíveis) para obtenção. São privilegiadas a medula óssea (que já tem um lugar tradicional e consolidado nesse universo de pesquisas), o tecido adiposo, os excedentes do parto e gestação (líquido amniótico, cordão, placenta), e até mesmo a polpa do dente de leite.
Curiosamente, ao que tudo indica, a CeSaM resiste, como uma espécie de ícone do que se espera ser uma ciência e uma prática feminista, ou afetada por um feminismo, que não se furta de valorizar o corpo entendido como feminino, em sua possível especificidade: ela responde bem a situações desafiadoras, como falta de nutrientes e pouco oxigênio, e perdura, resiste, quando tensionada pelos experimentos em questão. Isso pode ter a ver, conforme argumenta Regina Goldenberg, com o fato serem células de um tecido que é “desafiado”, “estressado”, “impactado” muito mais frequentemente que os demais tecidos disponíveis para pesquisa. É um pressuposto implícito das pesquisas em questão que a descamação periódica do tecido endometrial com a menstruação talvez tenha favorecido o desenvolvimento de células com uma alta capacidade de resistência a situações adversas. Uma espécie de ontologia da resistência.
Por virem de órgãos mais impactados e de corpos que têm mais vitalidade, essas células “vivem” muito bem nos laboratórios, “trabalham” bem nas pesquisas para as quais são convocadas, que envolvem inclusive colocá-las na posição de restauro e reparação, de cura e de cuidado. As CeSaM, para além de comporem uma excelente analogia acerca do trabalho, do corpo e da vida de mulheres e minorias, performam, também, efetivamente, em laboratório, um mundo potencial no qual quiçá o sangue menstrual poderá sair da sua condição de excremento abjeto para a nobre função de vir a salvar vidas. Isso se essas células conseguirem ultrapassar o machismo institucional das pesquisas científicas.
As CeSaM fazem, assim, o útero “poder” muito mais do que a sua função reprodutiva. E isso pode representar uma inspiração feminista, mesmo que partindo de um universo tão branco e androcentrado como a tecnociência. Inspiração pelo excesso de potência, pela força intrínseca, pela valorização do útero para além da sua função de gestar fetos, pela sua magia.
No entanto, a julgar pelas formas como corpos marcados por gênero (e raça/etnia, e classe, e sexualidade) costumam ser engajados nos empreendimentos tecnocientíficos e biomédicos, é de se supor que essa sua potência (caso seja efetivamente reconhecida) tenda a ser capturada e, novamente, aprisionada por dinâmicas restritivas, comodificadas, limitadoras. Nada garante, de partida, o consentimento e a autonomia das doadoras de sangue menstrual, a universalidade e gratuidade no acesso às células e terapias, as políticas de propriedade intelectual e do mercado biomédico e farmacêutico que incidem/incidirão sobre terapêuticas possíveis. Pelo contrário, o próprio modo de existência das CeSaM já implica, em sua gênese, um custoso aparato high tech, cujo acesso sabemos que é/será restrito.
Nas aventuras contemporâneas das tecnociências – que vão desde a ginecologia e sua teleologia reprodutiva às formas e arranjos que compõem a bioengenharia, a terapia celular e a medicina regenerativa – corpos, úteros e células do sangue menstrual existem, e resistem.
Estou escrevendo esse texto no meio de uma onda de calor em Florença, e eu juro que deve ser a cidade mais quente da Itália, pois é tão distante do interior e cercada por um anel apertado de altas colinas arborizadas que tornam quase impossível para um avião pousar quando há muito vento. Este é o verão mais quente e seco na Itália desde a década de 1960 e há discussões intensas sobre o racionamento de água em Roma, enquanto isso a agricultura sofre terrivelmente. Florença, como todas as grandes cidades italianas, é uma cidade fantasma, esvaziada de seus moradores, muitos escritórios fecham para o verão e todos se dirigem para a costa, mas ainda consegue ser barulhenta como de costume. Estamos prestes a ir para a minha cidade natal no Adriático também; as malas estão prontas, vamos partir a qualquer momento. Escrevo este texto me sentindo levemente culpada por estar atrasada, como de costume, encharcada de suor, com meus filhos ficando loucos e aborrecidos, e relutantemente tentando espremer o trabalho em todas as brechas que eu consigo encontrar. Os verões são sempre assim. Sinto como se acima da minha cabeça algumas nuvenzinhas de pensamentos furiosos estivessem pairando, ligeiramente e precariamente ligados por alguns fios invisíveis muito finos, e que tudo o que leio, o que vejo na minha vida cotidiana, o trabalho de campo, estivesse misturado levantando-se e juntando-se em uma grande bola confusa e enredada.
A escrita ajuda, pois dá clareza, mas com frequência, começar é difícil. Muitas vezes, quando finalmente começo, sou interrompida e preciso fazer outra coisa por algum motivo estranho, e minha atividade cerebral é feita dessas ondas constantes de parada e recomeço. Escrever este texto é um trabalho ainda em andamento e me ajudará a entender o intenso ano de pesquisa de campo que acabei de passar na Sicília com minha família. Por intenso, significo literalmente que toda a experiência deixou impressões muito fortes, mas não necessariamente que eu trabalhei em níveis altamente eficientes e produtivos. Me senti tão tonta e perdida no meu retorno de Siracusa no mês passado, quanto do retorno do meu trabalho de campo de doutorado no nordeste da Amazônia. Tudo parece brilhante e abundante, das vitrines aos pavimentos, as estradas parecem impecáveis e ordenadas; esse tempo de retorno está mais confuso porque tenho me movido entre pólos distantes do meu país de origem, mas me senti tão estranha quanto quando vivi no sul do Suriname entre o Trio e o Wayana. Estou impressionada com a forma como alguns processos de deslocamento aparecem da mesma forma e, além disso, minha mente ordena ideias da mesma maneira. Curiosamente, ainda me sinto como uma antropóloga ‘amazonista’ que trabalha no Mediterrâneo e na Europa. De um modo perspectivista, vejo o mundo através da roupa de uma ‘amazonista’, e provavelmente nunca conseguirei tirá-la completamente, muito familiarizada com o meu tempo passado lá. Por enquanto, com as férias escolares de verão das crianças e a casa de cabeça para baixo, ainda estou processando o ano passado e me ajustando à vida. Minha cabeça ainda está cheia de flashes de imagens de lugares que fizeram minha vida cotidiana, cujas memórias estão mais enraizadas do que outras, alguns lugares que eu continuo visitando através dos mesmos movimentos. Além disso, estou assombrada pelo Mediterrâneo. Aqui em Florença, uma cidade de pedra e árvores, penso no mar, do azul cego e intenso que estava em toda a nossa vida em Siracusa. As crianças também sentem falta, bem como de seus amigos e a liberdade e autonomia que eles desfrutavam em um dos raros lugares onde as crianças vivem e brincam nas ruas o tempo todo, sem seus pais e apenas vizinhos para cuidar deles de longe. No momento em que partimos, eles se estavam verdadeiramente familiarizados com a vida siciliana, seus corpos, movimentos, a cadência de seu discurso foram transformados. Suas experiências foram intensas, de fato muito mais do que as minhas, e vejo com espanto o quão profundamente o trabalho de campo os moldou. Esta foi a novidade desta pesquisa de campo como mãe.
No sul da Sicília, o mar está em toda parte, não apenas para mim, a sua presença engloba tudo e todos, como fonte de vida e morte, como um lugar histórico profundo de reunião, intercâmbio e reprodução nas margens, mas também como um lugar de frenesi internacional e reconfigurações geopolíticas. O Mediterrâneo, o mar da mitologia, o rico patrimônio cultural e a poesia, é também a fronteira internacional mais mortal do mundo. A rota de migração do Mediterrâneo Central, que atravessa a região da Líbia para se fundir no Níger, até a Líbia, e depois para o norte em direção à Europa via Sicília e Lampedusa, é a rota mais mortal do Mediterrâneo. Aqueles que chegam à clínica ambulatorial (poliambulatorio) em Lampedusa, onde trabalhamos, ou nos hospitais do sudeste da Sicília, onde eu trabalhava, muitas vezes estão profundamente marcados fisicamente e psicologicamente, por conta de longos meses de detenção, abuso e tortura através das instalações formais e informais na Líbia. Para as mulheres, no entanto, a Líbia é o ponto culminante de uma longa jornada cheia de abusos, que muitas vezes começa em casa, quando a primeira viagem se faz seguindo uma promessa de emprego em um país vizinho. A Hope (nome fictício), por exemplo, é uma jovem doce e tranquila do norte da Nigéria que conheci em um santuário para as vítimas do tráfico e seus filhos localizado em uma pequena cidade, não muito longe de Siracusa. Primeiro, ela foi enganada pelo tráfico sexual ao aceitar uma oferta de emprego como garçonete no Mali. Como é comumente relatado em casos semelhantes, não havia trabalho de garçonete esperando por ela. Entretanto, até então, voltar para casa também não era uma opção. Para as mulheres é perigoso deslocar-se, especialmente quando estão sozinhas e são presas fáceis; é por isso que, muitas vezes, elas aceitam a proteção de um companheiro de viagem masculino em troca de favores sexuais. Além disso, a vulnerabilidade aumenta com o tempo de viagem; quanto mais tempo a mulher estiver presa em um só lugar, mais ela fica visível e provavelmente será notada. Para essas mulheres vulneráveis, a invisibilidade e a mobilidade são chaves para a sobrevivência. No entanto, a mobilidade é algo a ser negociado em todos os principais pontos de passagem ao longo de rotas que são organizadas e controladas por poderosos gatekeepers. As histórias que colhemos de mulheres migrantes que viajam da África Ocidental e do Chifre da África ao longo da rota do Mediterrâneo Central referem-se regularmente a estes grandes acampamentos de encontro na intersecção das principais rotas, onde as mulheres arriscam ser apreendidas para escravização no trabalho doméstico ou sexual. O tempo trabalha contra as mulheres de forma crucial nessa jornada também por causa da falta de acesso aos anticoncepcionais. Neste caso, o tempo tem um valor monetário concreto, pois as passagens podem ser negociadas com grandes pagamentos em dinheiro. Até agora, grandes ONGs e agências governamentais publicaram relatórios sobre os abusos sofridos pelos africanos sub-saharianos na Líbia, sejam eles migrantes internacionais que tentam atravessar o país, ou migrantes econômicos para esse país já rico e que ficaram presos quando surgiram conflitos.
Neste contexto, as distinções entre migrantes econômicos e os requerentes de asilo são desfocadas em experiências compartilhadas de detenção e abuso. O mar é relativamente a única saída segura da Líbia para a Europa. O Mar Mediterrâneo, a beleza que me obceca, o mar de cristal, têm muitos rostos; muitas vezes é uma fonte de terror para aqueles que tiveram que viajar através dele em condições extremamente precárias. Muitas histórias que coletamos contam do terror sentido por aqueles que viram o mar pela primeira vez no dia em que foram abarrotados por uma realidade sombria, pois sabiam que não iria flutuar por muito tempo com uma carga tão pesada, e poucos poderiam nadar. O mar também significa intensa dor física; uma das doenças físicas mais comuns tratadas pela equipe médica nos barcos e nas clínicas fronteiriças são as queimaduras causadas pela exposição da pele à água do mar misturada com combustível vazado. Então, o mar deixa muitas cicatrizes também no pessoal do resgate envolvido com a Guarda Costeira Italiana e a equipe médica a bordo e em terra. Nas minhas recentes questões de pesquisa, explorei o vínculo íntimo que liga a tragédia e a cura, através do encontro de migração e, em particular, através do resgate de migrantes grávidas. Minha atenção passou das maternidades para os serviços de emergência e os cemitérios e para maternidade novamente, já que todos estão intimamente ligados aos ciclos de parentesco e reprodução que ligam as pessoas à terra e a laços familiares distantes através do mar e além. O sul da Itália é uma terra de emigração e também um lugar onde a consanguinidade está profundamente enraizada na paisagem.
Os parentes mortos permanecem membros integrantes da casa e pedem dedicação e atenção, eles requerem pensamentos, orações e pequenos presentes. Em algumas ocasiões, como o dia dos mortos, no primeiro de novembro, o falecido também retorna presentes, especialmente para crianças pequenas. Hoje em dia, os presentes são freqüentemente entregues a crianças no Natal, mas o primeiro de novembro ainda é um dia de ofertas e celebrações. Os mortos merecem respeito como membros plenamente ativos da família. Também é dito que, em tempos de seca, se nenhuma chuva cair na terra entre o verão e o final de outubro, os mortos terão sede e voltarão para assombrar os vivos. Os fantasmas também estão em toda parte em Siracusa, um dos mais antigos locais de habitação humana contínua no mundo. Na frente da escola em que meus filhos estudavam, em Ortigia, há um antigo palácio abandonado, que é dito ser o lar de muitos fantasmas. Histórias sobre fantasmas foram contadas às crianças pelos professores, meus filhos adoraram e continuaram querendo conhecer os espíritos torturados que viajavam ao redor de suas salas de aula. Os mortos parecem muito vivos em Siracusa, certamente não ousaria me aventurar nessas ruínas à noite. Pois os mortos estão em toda parte nas margens do Mediterrâneo também, na Sicília, em Lampedusa, como no Egeu do Norte, e estes mortos são lamentados pelos habitantes locais porque sofrem uma morte anônima, longe de parentes que não podem fazer seu luto e nem ornamentar uma lápide em sua memória.
Os cadáveres migrantes são enterrados em cemitérios na Sicília e no sul da Itália, e as iniciativas locais tentam dar-lhes dignidade na morte, outras tentam apoiar as equipes forenses que procuram contribuir para a identificação das vítimas e seus parentes. Os vestígios das tragédias da migração também reconfiguram o fundo do mar do Mediterrâneo, à medida que os vasos afogados descansam no fundo do mar e se transformam lentamente em habitat para a vida marinha e alteram as correntes locais. Naor Ben-Yehoyada, um antropólogo do Mediterrâneo, fala desses pescadores do sul da Sicília, cujo conhecimento profundo do mar inclui uma compreensão profunda dessas mudanças na navegação e na pesca trazidas pela tragédia. Fico impressionada com o fardo que repousa no ombro dos habitantes locais, pessoas como os pais dos amigos dos meus filhos. A migração está em toda a parte da Sicília e atravessa o tempo e o espaço, através da afinidade e da consanguinidade, numa terra com uma longa história de emigração e terras vazias, e onde os migrantes são muitas vezes vistos como uma oportunidade: para a redenção e regeneração individual e coletiva, mas também para exploração ou lucro rápido. O bem e o mal, a esperança e a tragédia, a hospitalidade e a hostilidade, muitas vezes, se misturam em uma realidade de padrões de migração contemporâneos.
Em meio a tudo isso, meu trabalho com mulheres grávidas em travessia se instalou perfeitamente na imagem, porque os bebês nasceram contra todas as probabilidades, às vezes a bordo de navios de resgate, na maioria das vezes na pequena clínica ambulatorial em Lampedusa ou nas maternidades dos hospitais da Sicília, foram vistos como o triunfo da vida sobre a tragédia, e um momento de cura coletiva para trabalhadores de resgate e migrantes. Às vezes, histórias de nascimentos de migrantes no mar são manchetes na imprensa regional, nacional e internacional. Mas não ocorrem muitas vezes, embora tenha havido um aumento quantificável no número de mulheres grávidas que entram nas fronteiras da região sul da UE, especificamente desde 2011. Ainda não analisamos completamente os dados que coletamos, mas as primeiras impressões parecem apontar para dois fatores: em primeiro lugar, o surgimento de refugiados e requerentes de asilo que fogem do conflito, especialmente no Oriente Médio, e entre os quais as famílias são um grupo demográfico predominante. Os refugiados sírios com os quais trabalhamos em Atenas, por exemplo, muitas vezes formam famílias durante seu longo êxodo, quando se encontram em campos de refugiados, se apaixonam ou engravidam muito depois de terem que deixar suas casas. Em segundo lugar, como mencionei anteriormente, o aumento da violência contra as mulheres ao longo das rotas de migração, o que significa que uma boa proporção de gravidezes atendidas pela equipe de cuidados reprodutivos no sul da Sicília não foram planejadas. Este é um contexto cruel, desconcertante e surpreendente de emergência e resgate, de cruzamentos internacionais e regimes de fronteira. Adicione à essa mistura um circo de mídia constante e uma controvérsia subjacente sobre a partilha de encargos, obrigações humanitárias e solidariedade entre os Estados-Membros europeus. Me sinto consolada ao trabalhar nesse tema em Estados-Membros da UE que são estados assistenciais e que, como no Brasil, têm planos de saúde universais.
Além disso, os direitos reprodutivos são garantidos e estendidos aos pacientes indocumentados pelo estado. Devido às histórias nacionais pró-família específicas da publicação WW2 e ao surgimento do humanitarismo na arena política na década de 1990, a gravidez e o parto são classificados como cuidados urgentes e se beneficiam de um status protegido sob cláusulas legais específicas na França, Grécia, Itália e Espanha. Em particular, hospitais e maternidades são abrigos, pois as mães têm direito a cuidados e assistência universal gratuitos, independentemente das circunstâncias pessoais. Os direitos reprodutivos também são garantidos para essas mulheres, quando não querem prosseguir com a gravidez. Entretanto, a garantia de assistência maternidade e direitos reprodutivos pelo Estado não é algo generalizado na UE. Existem dois Estados-Membros da UE, Irlanda e Malta, onde a interrupção da gravidez ainda não é legalizada. O atendimento universal gratuito de proteção à maternidade também não está disponível em toda a Europa, nem o acolhimento de grávidas e recém-nascidos, especialmente no norte da Europa. Como mulheres e pesquisadoras feministas, penso que é importante estarmos atentas aos detalhes da legislação e da política de saúde, pois revelam as ambivalências culturais enraizadas em países que parecem similares em sua superfície. É nosso dever não deixar que esses detalhes passem despercebidos, especialmente diante de fáceis generalizações e de fácil recuperação moral. No momento, estou estudando o processo de tradução da política de saúde na prática diária de periferias distantes e sub-financiadas, muitas vezes associadas ao conservadorismo, e a uma profunda lentidão e corrupção. Descobri realidades múltiplas, compartilhadas, e sim há esperança, mesmo em periferias distantes e confusas, como o sul da Europa.
À convite das Divas Revolucionárias, reúno aqui os relatos que publiquei em minha página do facebook sobre os abortos que fiz. O primeiro, de 2015, respondia à campanha contra a legalização do aborto, mulheres grávidas andavam fotografando suas barrigas nas quais se lia “pró-vida”. O segundo relato foi feito de supetão, em novembro desse ano, antes de sair de casa para a manifestação contra a PEC181, que pretende proibir o aborto no Brasil nos casos já previstos em lei, como em situações de estupro ou de risco para a mulher.
Entendo que falar abertamente sobre o aborto é, no limite, tangenciar as normas de controle e criminalização de nossos corpos. Contudo, a decisão pela exposição dessas histórias atendem ao desejo de dar contorno às dimensões afetivas que as situações de aborto suscitam.
Aborto exige cuidado. Falar, ouvir e elaborar sobre essas situações são modos de sobreviver enquanto mulher diante das forças misóginas no Brasil de 2017.
em 2015:
Eu não fiz um aborto. Foram 2! Ambos aos 22 anos de idade. Engravidei no resguardo de um deles, e claro, fui atravessada por uma sensação terrível de irresponsabilidade. O fato é que, como muitas de nós, eu estava desinformada. Não sabia, por exemplo, que quando se faz uma curetagem fica mais fácil o espermatozóide chegar ao útero… Com a necessidade de fazer o procedimento, fiquei sabendo de outras coisas: sabia que não precisava tomar e inserir uma caralhada de comprimidos (como muitas fazem), bastava administrar uma dosagem mínima, dependendo do tempo da gestação, e fazer uso intervalado. Assim, o risco é menor, a dor também, e o efeito, no meu caso, foi o mesmo. Sabia também que no hospital elxs não tinham como saber se o aborto foi provocado ou espontâneo, os maus tratos eram fruto do preconceito, que eu não sofri tanto por estar muito tranquila, me sentindo relativamente segura por estar acompanhada por familiares, que criaram barreiras de proteção: não fui eu quem falou na recepção, nem com xs médicxs. Além disso, e isso é muito importante, eu tinha plano de saúde na época. Outra coisa que eu sabia, deveria procurar um hospital para curetagem, sob risco do procedimento não se completar ou de sofrer uma infecção grave. O fundamental era: eu sabia que não queria estar grávida naquele momento e isso era o que importava. Senti pouca dor física, o equivalente às minhas cólicas nos piores meses. Senti pouco moralmente, nunca partilhei da ideia de que a maternidade é obrigação, curso natural da vida ou o lugar onde a mulher se completa. Não fiz feliz, não gostaria de ter feito, mas principalmente, não me arrependo. Conversei muito antes de decidir fazer e como. Tive a sorte de ser bem informada, nossas redes continuam, clandestinas e ilegais, mas estamos juntas! Tive muita sorte de ter apoio e carinho. Não carrego a culpa que essa campanha de grávidas ‘pró-vida’ ‘contra o aborto’ querem nos fazer carregar. Um filho naquele momento seria o abandono de tudo que eu queria fazer da minha vida, não sei se seria melhor nem pior, mas não vou carregar esse fantasma. Ninguém fala das muitas de realizações das quais uma mulher abdica para ser mãe, ninguém põe o dedo na cara de uma grávida para dizer o que ela deixou de viver, então meu amor, balance seu rebento em paz, no meu corpo, sob o risco do meu cadáver, mando eu e não o Estado, queira você ou não.
em 2017:
Tempos atrás fiz um relato sobre os abortos que havia feito. Eram dois e de lá pra cá fiz mais um. Era pra ser o mais “seguro” porque meu ex-companheiro tinha dinheiro, fiz esse com menos risco de morte, como fazem as brancas e ricas, ainda bem. Mas foi de todos o mais violento, porque não houve recurso afetivo pra dar conta do processo emocional e hormonal que é anterior, e segue após o procedimento. Adoeci. Sangrei em muitos sentidos. Hoje, falar de aborto é falar de desejo, e nem é só sobre o desejo de ter ou não ter um filho, é sobre o desejo de cultivar relações onde caiba o cuidado sobre as feridas que o procedimento provoca.
Precisamos que o aborto seja legal, gratuito e seguro para que a gente tenha opção de escutar umas às outras para além do marco da proibição. O que leva cada mulher a decisão pelo aborto são situações que dependem de atravessamentos de raça, classe, da trajetória de cada uma. Mas a gente anda tão ocupada com a pauta pela legalização que nem consegue criar mecanismos para lidar com esses atravessamentos.
A decisão de abortar precisa ser nossa, mas a responsabilidade sobre esse corpo em vias de abrir-se, e depois de arrebentado, deve ser partilhada não apenas com os possíveis progenitores. Nessa história, homens se sentem confortáveis tanto para se esquivar da responsabilidade de uma futura paternidade, quanto para se recusar a cuidar das feridas que um aborto provoca. Já ouvi muito dizer que maternidade é solidão. Aborto também é. Toda nossa saúde reprodutiva é controlada por uma máquina macropolítica que nos ocupa em responder aos homens brancos, enquanto esfacelam nossas corpas e nos distanciam umas das outras. No fim, o plano deles é nos deixar num estado de vida que não é vida.
Para decisão ser das mulheres, a responsabilidade de amparo e segurança das nossas corpas precisa ser partilhada socialmente. Pra que a gente aprenda enfim a escutar nosso desejo, e saber melhor como seguir quando, por muitas razões, não podemos sustentá-lo e quebramos junto com ele. Para isso é preciso desde logo sair da sombra da criminalização e da moralidade.
Nenhum aborto é tranquilo, legalizar é pra ontem, então: RUA!
“O aborto já deveria estar obsoleto.
E eu – e provavelmente várias outras feministas – desejaríamos que ele fosse obsoleto
Porque o aborto não é um valor em si – é simplesmente o direito à escolha.
Esse sim um valor essencial
Betty Friedman
Os recentes resultados da pesquisa do Instituto Patrícia Galvão em parceria com o instituto Locomotiva, que datam de dezembro de 2017, merecem atenção. Os institutos concluem: o grau de proximidade influencia a opinião que os brasileiros têm sobre aborto. Os números são os que seguem:
O que essas cifras nos dizem? Além de mostrar que o aborto é uma questão que está próxima da vida de milhões de pessoas, comprova que a interrupção da gravidez já é aceita por parcela importante da população dependendo da situação.
Apesar da maioria dos brasileiros e brasileiras se declararam contrários à interrupção da gravidez, 8 em cada 10 brasileiros e brasileiras apoiam a realização dos direitos reprodutivos nos casos que seguem:
Em resumo, 81% dos brasileiros e brasileiras são a favor da interrupção da gravidez caso a mulher esteja diante de uma dos casos acima. E há um número ainda mais interessante: 75% dos que se disseram contrários ao aborto em princípio, quando colocados diante da questão sem nenhuma nuance, se mostraram favoráveis à interrupção da gravidez diante destes casos concretos.
Além disso, 8 em cada 10 brasileiros e brasileiras acreditam que o aborto deve ser tratado como tema de saúde. Notícia excelente. Apenas um em cada 10 defendem que aborto é caso de polícia.
Enfim, diante da frase “ eu jamais interromperia uma gravidez”, metade das mulheres questionadas afirmaram que concordam com a a afirmação. Mas 33% disseram não concordar nem discordar. E 16% afirmaram discordar.
Pode não haver a compreensão total do que significa experimentar essa realidade, mas há a disposição de respeitar aquelas que a experimentam e dar a elas o direito de escolha. Trata-se de um avanço considerável para o novo normal. E os resultados nos oferecem, a nós, feministas em disputa pelos direitos reprodutivos, dicas de suma relevância para enfrentar o conservadorismo e as desqualificações constantes às nossas lutas. É possível assumir posturas mais progressistas ao mediar afirmações frias e impermeáveis com o repertório concreto da experiência da maioria que conhece mulheres que fizeram aborto. Quando defrontados com o conhecido, a práxis, o dia-a-dia, a discussão ganha corporalidade: um rosto, uma trajetória, uma história. É recheada de afeto. E slogans, enfim, deixam de ser dísticos – significantes vazios e repetitivos – para tornarem-se vivência cotidiana..
Diante do dístico, o Brasil acessa o que não viveu, e dessa forma responde com receio e medo do novo. Medo que o conservadorismo alimenta e cultiva. Diante da vivência, contudo, da proximidade, as reações extremas e a defesa de punição privativa de liberdade tendem a ser diluídas e substituídas por compreensão. Quiçá acolhimento. Ficam para as feministas uma série de lições que podem ser assim resumidas: a proximidade dissolve tabus. A narrativa que mobiliza o conhecido é capaz de enfrentar o interdito.
Blacklash:
Os ganhos do feminismo na construção de uma narrativa a respeito dos direitos reprodutivos, baseada nas evidências acima, capaz de transformar concepções leigas ou conservadoras e ter impacto na legislação, não passará impune. Nenhum ganho passará impune. O patriarcado há de se articular para reverter qualquer avanço.
E nessa articulação, a desqualificação da luta feminista é sempre mobilizada: o famoso blacklash. Termo que ainda carece de tradução precisa, mas que remete a uma experiência bem conhecida por nós, mulheres brasileiras. São os argumentos arregimentados pelo patriarcado para transformar a luta feminista em algo sem sentido ou fundamento. Não importando as evidências.
Leiamos Faludi no Brasil, agora mais do que nunca.
Em 1991, a feminista norte-americana Susan Faludi ganhou o prêmio Pulitzer com a obra “Backlash: The Undeclared War Against American Women”. À época, Faludi identificava um grande movimento de retrocesso cujo objetivo seria voltar o relógio aos anos 50. Duas premissas centrais orientariam este movimento:
a) a ideia de que o feminismo teve conquistas reais e que mulheres e homens já seriam, nos Estados Unidos dos anos 90, suficientemente iguais no que tange aos papéis de gênero;
e b) a noção de que o feminismo seria portanto, um exagero, algo desnecessário cujo resultado seria cruel para as relações íntimas, e desagregador no âmbito dos projetos políticos.
Tais premissas teriam sido, a princípio, articuladas por uma nova direita que surgira sob a presidência de Reagan no anos 1970 e se tornara mainstream nas décadas seguintes. Contudo, Faludi é clara ao nos lembrar que tais mensagens são repercutidas também pelo que a autora chama de emissários da esquerda. A hostilidade da esquerda diante do feminismo seria, enfim, parte de um fenômeno maior de rearticulação do patriarcado frente às conquistas das mulheres rumo à igualdade.
Em tempos de Rebecas e Rosas, de Manifestos e reações agressivas. Em tempos de retrocessos, o backlash se disfarça de infinitas maneiras: está no despudor do engravatado que em Brasília nos retira direitos aos risos, bem como no homem de esquerda, de terno de veludo, que aponta excessos dos supostos movimentos identitários, acusando-os de ignorar a luta de classes (quando sabemos que homens brancos ocupam há séculos o topo da pirâmide social).
Atenção para o refrão: precisamos estar atentas e fortes. Esquivar-nos das tentativas de manutenção do status quo. Desde as que se traduzem na desfaçatez das comissões majoritariamente masculinas de Brasília até as que se disfarçam em debate iluminista e iluminado. Que lança mão de Kants e de cânones do pensamento político brasileiro para que tudo permaneça, os privilégios sejam garantidos, e a luta feminista jogada na vala comum do exagero. Quantas vezes não fomos chamadas de exageradas?
Não temos tempo de temer a própria morte. Nem de gastar latim com aliados que precisam ser paparicados. Estamos mudando o mundo. Nas ruas, nos corredores dos três poderes, nas redes. Os cães podem ladrar pois nós passaremos cada vez mais fortes. Nuas, pintadas de roxo. Cantando e dançando. Aprenderemos a refinar nossas narrativas para transcender o outono que nos querem impor.
Conversa com Isabelle Stengers sobre as feiticeiras neopagãs e a ciência moderna.
Por Mathieu Rivat e Aurélien Berlan
Entrevista realizada por Mathieu Rivat e Aurélian Berlan em 20 de abril de 2015, publicada originalmente em francês no número 1 da revista Jef Klak, cujo tema é Crer/Poder. Agradecemos imensamente à revista por autorizar a publicação desta versão em língua portuguesa. A versão original em francês encontra disponível on-line: http://jefklak.org/?p=1711.
Cientista de formação e atualmente professora de filosofia na Universidade Livre de Bruxelas, Isabelle Stengers aponta para as palavras feiticeiras que o capitalismo e a “ciência” utilizam para justificar seu domínio. Séculos de uma cultura ultra-racionalista e industrial erradicaram e descreditaram tudo o que se ancorava no comum, nos deixando impotentes e vulneráveis. Para recuperar uma potência de pensar, agir e cooperar, Isabelle Stengers convoca as ativistas do Reclaim [1] e outras feiticeiras neopagãs que nos convidam a resistir à feitiçaria capitalista indo além das alternativas reforma ou revolução.
Em A Feitiçaria Capitalista [2] escrito com Phillipe Pignare você descreve o capitalismo como um sistema feiticeiro sem feiticeiro. Você entende por isso que o sistema social e econômico em que estamos mergulhados depende de uma ordem mágica?
Quando não se reduz a uma simples metáfora, a palavra “magia” atualmente tem servido somente para estabelecer oposições entre nós – que vivemos um mundo onde supostamente predomina a racionalidade – e os outros povos que “ainda acreditam na magia”.
Eu, de meu lado, quis levar a sério a magia sem colocar a questão em termos de acreditar nela ou não. Com Philippe Pignarre, nós falamos de “sistema feiticeiro” (ou seja, um sistema que utiliza uma magia maligna) para dramatizar aquilo que nos deveria fazer pensar hoje: a manutenção, ou mesmo a intensificação da empreitada capitalista, enquanto nas últimas décadas, com o desencadeamento da a guerra econômica, a referência ao progresso perdeu todo sentido.
Nos anos 1970, podíamos imaginar que ao criticar a noção de progresso, atacávamos a ideologia que assegurava o domínio capitalista. Ora, hoje em dia, salvo para alguns iluminados, a noção de progresso parece não ser mais do que um reflexo condicionado, um ritornelo. Entretanto, o domínio não perdeu força, muito pelo contrário. Associar nosso sentimento de impotência à eficácia de um “ataque feiticeiro” é em princípio dramatizar a insuficiência da noção de ideologia ou de crença ideológica, é chamar a atenção para o modo pelo qual o domínio pôde continuar a funcionar, fora da crença. É também dramatizar o fato de que, contrariamente às tradições culturais para as quais os ataques feiticeiros são um tema de preocupação prática, nós, que pensamos em “ideologia”, somos vulneráveis. Nós não possuímos os saberes pertinentes para identificar e compreender os dispositivos de captura e de produção de impotência. Ora, lá onde se pensa que os feiticeiros existem, aprende-se a reconhecê-los, a diagnosticar seus procedimentos, a se proteger deles, e ainda a contra-atacar. Nós, nós criticamos e denunciamos as mentiras, mas se a denúncia tivesse sido eficaz, o capitalismo estaria morto há muito tempo.
Nós não convidamos a acreditar em feiticeiros, mas a reconhecer os ataques feiticeiros. Esses que, por exemplo, transformaram a expressão já capenga “desenvolvimento sustentável” em “crescimento sustentável” não creem em feitiçaria, mas a praticam: eles capturam, distorcem, criam armadilhas. Nós estamos assim cada vez mais sujeitos às palavras enfeitiçadas. “Seja motivado”, “Tenha um projeto”: as palavras da gestão (a motivação, o engajamento, etc.) pertencem a dispositivos que funcionam como teias de aranha – quanto mais nos debatemos contra, mais ficamos presos como moscas. Não há, nesse caso, ilusão ideológica, mas uma terrível eficácia feiticeira.
A base da crença no progresso foi sólida entre as classes populares no início do século XX: o “nossas crianças terão uma vida melhor” justificava trabalho e sacrifício. Hoje em dia, quase ninguém acredita realmente que isso acontecerá. A crença no progresso é apenas uma maneira, diante da situação atual, de confiar nos experts, nos cientistas, nas novas tecnologias… a impotência face ao curso das coisas nos força a pensar que somente eles poderão nos preservar dos perigos que se acumulam no horizonte…
Encontramos aqui a significação pobre da palavra magia da qual eu falava há pouco. Queremos acreditar que como “por magia”, as coisas se arranjarão. Sem acreditar realmente nisso, esperamos que aquilo que estamos vivendo seja apenas uma crise da qual conseguiremos escapar, “como de costume”. Nós olhamos com desprezo nossos ancestrais que aterrorizados por uma natureza que eles não conseguiam controlar e compreender se atribuíam um pseudo poder mágico para se tranquilizar. Mas hoje, somos nós que merecemos esse olhar de desprezo porque somos nós que confiamos em uma crença mágica.
Isso assinala uma desorientação e uma impotência que traduzem a destruição sistemática de tudo que poderia nos permitir imaginar, ativamente, coletivamente, praticamente, politicamente o que demanda o futuro. Nós devemos “crer” que aqueles que “sabem” (e/ou possuem os meios) nos preservarão, ao passo que são eles, ou seus predecessores, que promoveram sob o nome de “desenvolvimento” o empreendimento literalmente insustentável de apropriação e de exploração do qual estamos conhecendo as consequências atualmente.
Seria uma forma do que vocês chamam de uma alternativa infernal?
Por “alternativas infernais”, nós entendemos um conjunto de situações formuladas e agenciadas de modo que elas não deixam outra escolha senão a resignação, pois toda alternativa se encontra imediatamente taxada como demagogia: “alguns afirmam que nós poderíamos fazer isso, mas olhem o que eles estão escondendo de vocês, olhem o que aconteceria se vocês os seguissem.”
O que se afirma com toda alternativa infernal é a morte da escolha política, do direito de pensar coletivamente o futuro. Com a globalização estamos em regime de governança no qual trata-se de conduzir um rebanho sem o fazer entrar em pânico, mas sob o imperativo “não devemos mais sonhar.” Afirmar que é possível fazer de outra maneira seria se deixar enganar por sonhos demagógicos. Dir-se-á por exemplo: “aqueles que criticam o livre comércio não vos dizem que as consequências das medidas protecionistas serão o isolamento total e o corte horripilante de todas as trocas com outros países. Se vocês querem que nosso país permaneça aberto é preciso aceitar o livre comércio e, portanto, os sacrifícios exigidos pela competitividade.” Ora, o protecionismo jamais significou o fim das trocas. Da mesma maneira, enquanto criticamos a inovação como sinônimo de progresso escutamos frequentemente: “renunciar à inovação é fazer a escolha por uma sociedade acanhada que recusa o futuro; nós não podemos mais andar pra trás, temos que nos adaptar e confiar”. Esse operador retórico, esse “não podemos mais” tem precisamente a vocação de calar aqueles que dizem: “mas o que vocês estão fazendo?”. Nós devemos confiar por que não temos outra escolha.
O problema é que isso funciona. Quando escutamos um político pronunciando isso não escutamos infelizmente por detrás dele um mugido de risos nem um show de gargalhadas debochadas. Reconhecer esses tipos de discurso e se proteger de sua influência, eis o que faria parte de uma cultura da feitiçaria. Se proteger deles é também saber rir, debochar, ter no bolso nossa trilha sonora de risadas que rugem – demonstrar desde o início falta de respeito.
Ora, o enunciador desse tipo de discurso não pode ser reduzido a um vendido, um corrompido, um bankster etc. O problema é mais complicado no sentido em que os mesmos que anunciam uma alternativa infernal se encontram também separados de sua potência de agir e pensar. Eles realmente não sabem fazer de outro jeito. É por isso que ouso pensar que a derrisão e a compaixão são mais eficazes que a denúncia. Essa pode reforçar o seu sentimento de heroísmo responsável face às acusações injustas. Trata-se antes de desmoralizá-los, de fazê-los abandonar seu papel de pastor moralizador e pedagógico – ou seja, de exigir deles que partilhem conosco o que os reduz à impotência, em vez de repercutir mentiras apaziguantes. Se eles pretendem lutar, que nos deem notícias do front, que nos expliquem com quem estão se batendo, que nomeiem os “feiticeiros” e as maneiras pelas quais agem – enfim, que parem de colaborar sob o pretexto de que sem eles seria pior.
Jean-Claude Michéa fala do “complexo de Orfeu” [3] para caracterizar a recusa de pessoas de esquerda em olhar o passado. Para a esquerda, seria indigno de tal forma que ela se encontra submetida a um superego progressista: seria coisa de mulherzinha, de criança, a atitude viril seria avançar sempre, seja qual for o preço. Parece, contudo, razoável pensar o presente e o futuro a partir do passado…
Esse progressismo a qualquer custo da esquerda em união sagrada com o racionalismo é particularmente presente na França. Há um reflexo condicionado contra tudo o que poderia parecer regressivo. Mas, de uma maneira geral a perda da referência no progresso desnorteou profundamente a esquerda. O encontro com preocupações ecológicas foi perdido e poderíamos dizer que desde então ela “sofre”. Isso dito, olhar para trás evidentemente não é suficiente – é também o que fazem os fascistas. Devemos nos reapropriar do passado fazer dele uma potência de pensar, e não uma referência nostálgica. A questão seria : de qual passado se trataria de herdar?
No fim de A feitiçaria capitalista nós evocamos as feiticeiras neopagãs nos Estados Unidos. É um movimento político próximo aos anarquistas que faz lembrar que a Europa se tornou moderna erradicando a cultura camponesa anunciando assim o que faria sofrer aos povos e civilizações colonizados. Essa destruição em nome do progresso começou a ser feita dentro das próprias fronteiras. As feiticeiras neopagãs procuram não esquecer que o capitalismo não apenas explora mas expropria: ele captura práticas e inteligências coletivas e as redefine a seu modo pela destruição e a apropriação.
A inteligência coletiva é sempre uma inteligência “conectada”, ou seja, se define em relação a uma situação e às conexões múltiplas que ela cria, sociais ou territoriais por exemplo. O capitalismo funciona destruindo toda conexão, inclusive aquela do passado, e considera como suspeita e perigosa toda inteligência coletiva que reivindica suas conexões.
Isso significaria que a ideologia do capitalismo mais do que se resumir ao neoliberalismo (o que é um ponto de vista bastante aceito) passaria pela noção de progresso?
Eu diria antes que a ideia de progresso foi partilhada pelos que lutavam pela justiça social e os que lutavam pelo desenvolvimento industrial com toda a exploração embutida. Era uma ideia partilhada. Aqueles que denunciavam o capitalismo ao considerá-lo um sistema destrutor eram considerados reacionários, opostos à ideia de progresso. Hoje em dia quando essa noção perdeu sua soberba, o neoliberalismo expõe mais claramente sua dimensão de expropriação. Ela se torna, abertamente, o preço do progresso. A flexibilidade é o imperativo categórico, o progresso não sendo mais que sua resultante postulada. O neo-management, a economia imaterial, a competitividade são palavras de ordem em nome das quais se destroem as razões pelas quais as pessoas se sentem conectadas ao que fazem e ao que podem fazer juntas. “A festa acabou” de algum modo. Nas universidades vimos isso todos os dias: em nome da competitividade a destruição dos laços entre as pessoas se tornou a regra. Os antigos progressistas se encontram nus; incapazes de fazer avançar um argumento positivo e consistente a favor do progresso, eles se reduziram a repetir que não podemos retroceder.
Para ir mais longe, poderíamos citar um exemplo: hoje em dia, os pastores são obrigados a identificar suas ovelhas com um microchip, legível sem contato (RFID), o que significa que colocou-se diretamente em contato o animal e o sistema de informática – que é de fato um sistema de gestão industrial de fluxo de mercadorias. Os pastores se encontram despossuídos do sentido de seu ofício e os animais são reduzidos a carcaças vivas. Claro que sua vocação é produzir carne, mas eles não se resumem a isso: há uma relação forte que se estabelece entre o homem e o animal, um companheirismo. No caso da informatização do tratamento dessas ovelhas não é a lógica neoliberal que está em curso, mas antes uma lógica neoburocrática com a nacionalização do gado por um estado que controla todos os animas presentes em seu território. O estado gere o gado nacional para a produtividade nacional. Estamos em um esquema que poderíamos quase qualificar como “neossoviético” [4]. Nesse sentido, o discurso habitual sobre o antiliberalismo é talvez um efeito de captura e feitiçaria: não estamos em uma sociedade somente liberal, mas em uma sociedade burocrática onde tudo é padronizado, regulado pela cúpula, em uma espécie de neosovietismo numérico.
De fato, a etiqueta neoliberal não é a melhor: a vigilância, a avaliação inquisitorial, o assédio, se tornaram a regra. Entretanto, nos grandes textos liberais do início do século XIX na Inglaterra já havia uma espécie de religião, uma moral sob a forma de um imperativo categórico: um “tu deves”. Ainda não era um liberalismo no sentido estrito de liberdade de comercio, no sentido em que esses liberais de então queriam reinventar a sociedade. Foucault viu isso muito bem [5]: há algo de ordem religioso que exige a destruição das conexões, porque toda conexão é um obstáculo ao mercado. E é ao Estado que cabe a tarefa de levar a cabo esse dever religioso. O capitalismo em si não tem nada de religioso. Para destruir aquilo que se torna obstáculo a seu funcionamento e a obtenção de seus fins o capitalismo precisou do Estado.
Foi dessa forma que em função das épocas e das questões que se apresentaram, foi estabelecida e pôde evoluir a distribuição entre o que o Estado deixa o capitalismo fazer e o que o capitalismo faz o Estado fazer. Não se pode compreender um independente do outro. Por exemplo, o capitalismo deixa ao Estado a tarefa de encorajar a flexibilidade do mercado de trabalho; mas quando o Estado, como é o caso atual, faz dessa tarefa uma religião sob a máscara da modernização, a flexibilidade torna-se sacrossanta, um “tu deves”. O mesmo para a gestão dos fluxos: os pastores devem se adaptar da mesma forma que os universitários e os enfermeiros, mesmo que isso destrua o que dava sentido ao seu ofício. O capitalismo talvez não exigisse tanto, mas o Estado deve “acreditar” na sua missão. Em compensação ele deixa o capitalismo fazer (laisse faire) esperando que, por mágica, os problemas se resolvam com o crescimento e o progresso capitalistas. Nossos governantes entretêm uma relação quase mágica com o capitalismo: quanto mais o deixam atuar, e mais delegam à OMC [6] mecanismos de comando que poderiam lhes permitir manter o controle, mais precisam acreditar que o crescimento e a competitividade são soluções para problemas dos quais eles tinham que cuidar. A irracionalidade do Estado atinge uma intensidade jamais vista. Nós estamos em um momento ultra-mágico da história.
Você mencionou as feiticeiras neopagãs, do movimento que se ampliou nos Estados Unidos no início dos anos 1980, sob a influência de Starhawk, uma de suas principais teóricas. Você escreveu o posfácio de sua obra fundadora Dreaming the Dark. Magic, Sex and Politics. Como ela é uma fonte de inspiração para o seu trabalho?
Eu encontrei aí um pensamento forte, lúcido e pragmático, despido de todo acento New Age, contrariamente ao que eu temia inicialmente. Sua análise histórica da caça às bruxas que ocorreu na Europa no século XVII transformou minha maneira de entender o sistema capitalista. Starhawk a considera não como um momento de loucura periférica, mas como um acontecimento político inseparável da revolução capitalista então em curso. É a época dos enclosures, dos “cercamentos de campo”: mesmo se elas pertenciam formalmente ao senhor feudal, as terras antes de uso comum, as Commons, foram cercadas. Procura-se a partir daí retirar das terras um lucro máximo: o valor de troca suplanta o valor de uso. A inteligência coletiva das práticas é destruída, o direito de propriedade se torna direito de exploração abusiva. O trabalho e o lucro tornam-se uma esfera autônoma, um fim em si mesmo, e a terra um simples recurso.
Eu não desejei virar bruxa ao ler Starhawk. Entretanto, a memória desse momento esquecido da história, quando nasce o que chamamos de “modernidade”, se ativou em mim. Isso me permitiu “desnormalizar” essa modernidade que nos ensinaram a pensar como etapa lógica da evolução.
Foi a partir daí que eu entendi e pensei o capitalismo não somente como exploração, mas como expropriação. E a noção de Reclaim que eu escolhi traduzir por “reapropriação” é uma resposta coletiva mobilizada pelas feiticeiras neopagãs para lutar contra a expropriação capitalista. Essa noção permite sair da polaridade, que envenenou a esquerda, entre reformismo e revolução. Ao considerar com justeza que o capitalismo não é reformável não parece restar senão a revolução, mas esta foi pensada frequentemente como o fim da exploração capitalista: para aquele que foi explorado tratava-se de encontrar no movimento revolucionário a potência de recuperar o que lhe havia sido tomado.
Com o Reclaim trata-se também de recuperar aquilo que foi destruído: cortando os laços que religam as pessoas a uma situação, a expropriação destruiu sua capacidade de colocar coletivamente seus próprios problemas, aquilo que poderíamos chamar de uma inteligência coletiva. Reclaim é recuperar mas também curar ou regenerar. Não é somente retomar o que é nosso: a expropriação é um processo muito mais grave, pois o que foi tomado é uma potência de agir e de cooperar cuja perda não é indenizável.
Por muito tempo acreditamos que os movimentos operários poderiam reencontrar essa inteligência coletiva. Mas enquanto o Estado foi encarregado de manter a paz social, os sindicatos não viram a ameaça de expropriação como no momento da tomada em mãos do movimento mutualista pelo Estado de bem-estar social do pós-guerra. A luta se concentrou sobre a questão da exploração e de uma justa divisão dos frutos de um trabalho (do qual a definição permanece, contudo, a cargo do patronato). Hoje os sindicatos viraram uma força somente defensiva, não mais inventiva, que protesta, mas que pode apenas partilhar dos sonhos de um retorno ao crescimento – as alternativas infernais capturaram fortemente.
O desvio que você faz em direção às feiticeiras não é um desvio artificial, quase um gadget? Às vezes temos a impressão que você coloca aí coisas interessantes, mas não necessariamente indispensáveis para colocar e pensar a questão da reapropriação…
Primo, esse Reclaim político que, eu torno a lembrar, se inscreve em um movimento político que existe há trintas anos nos Estados Unidos não é uma coisa qualquer. Esse movimento conseguiu existir durante os anos Reagan e está muito implicado no ativismo antiglobalização e no Occupy Wall Street. Eu acho que a maneira pela qual ele conseguiu resistir e aprender/ensinar em cada momento chave da sua história (o que requer “o trabalho da deusa” como elas dizem) marca a importância de praticas rituais que são de grande pragmatismo. Trata-se de cultivar as forças que permitem curar em um mundo que nos deixa a todos doentes e de honrar aquilo que ajuda a curar, a reencontrar as capacidades de uma inteligência coletiva. Isso demanda uma cultura prática, experimental mesmo, da qual nós nos enganaríamos ao rir, pois é precisamente o que falta aos sindicatos, e também à esquerda marxista.
E secundo, teste e desafio: toma essa, francesinho, homenzinho ! Porque é um desafio feminista. Podemos dizer certamente que estamos para além disso, mas isso significa um desprezo viril pelos ritos e maneiras, pelos artifícios “mágicos” que permitem aprender juntos. A verdade e a autenticidade de nossas convicções nos bastam… eu penso que é isso que nos bloqueia, é de cara o medo de regredir, o medo de ser ridículo, a crença em nossa auto-suficiência, ou seja a insegurança própria às tradições viris.
Ao lado da “feitiçaria capitalista” existe uma outra, a da ciência que você aborda sobretudo no seu livro Uma outra ciência é possível [7]. Você é uma das raras intelectuais que coloca por antífrase aquilo que você chama da “pequena questão” do vínculo entre desastre ecológico e desenvolvimento científico – que bem poderia ser a grande questão da nossa época. Você responde a isso dizendo que a ciência é um dos principais fatores do “desenvolvimento insustentável” que conhecemos hoje. Como e por que a ciência contribuiu para o desastre atual?
O papel de cada tipo de ciência deve ser distinguido. Do ponto de vista da responsabilidade na devastação ecológica, as ciências sociais desempenham um papel secundário, mas não na devastação das capacidades de ação, porque elas atuaram bastante na crítica das ilusões como se uma verdade triste pudesse ajudar a pensar e agir. Pode-se confiar nos sociólogos para “explicarem” um movimento como o das feiticeiras neopagãs através de grandes generalidades que servirão todas para eliminar, como sem interesse, aquilo que elas ensinam, a arte que elas chamam de “magia”.
Entretanto, penso sobretudo nas ciências ditas duras, cuja responsabilidade direta, constitutiva em relação à situação atual remonta à segunda metade do século XIX. Nessa época se estabelece uma verdadeira relação de simbiose entre ciências laboratoriais e o desenvolvimento industrial segundo o modelo que os cientistas chamam de “galinha dos ovos de ouro”, aquela que não se deve matar de modo nenhum.
A ciência conseguiu a subvenção do Estado porque seus ovos, transformados em ouro pelo desenvolvimento industrial, são reputados como benéficos a toda humanidade. Os cientistas ganharam a liberdade de lançar suas próprias questões mas admitindo, no mesmo movimento, se mobilizar sobre apenas essas questões. No que se tornam seus ovos, por um lado, não lhes diz respeito e, por outro, é o que lhes garante o reconhecimento da humanidade. E escutamos então os pesquisadores exclamarem “essa questão não é científica, isso não nos diz respeito, nos deixe chocar os ovos! Não nos retardemos quanto ao avanço do conhecimento que a única chave do progresso da humanidade”.
A mentalidade “galinha dos ovos de ouro” implica portanto que as comunidades científicas mantenham relações privilegiadas com aqueles que podem valorizar (transformar em ouro) seus resultados. Para o resto elas se orgulham de funcionar fechadas sobre si.
Os cientistas são formados para rejeitar como não científicos e, portanto, inaceitáveis os argumentos dos que se opõem a isso, os situando sob o signo de um medo acanhado da transformação – razão para satisfazer plenamente a indústria! Mas estamos distantes aqui do “espírito científico”, é apenas o efeito de um carcarejo de galinha, com uma imaginação rarefeita.
O que poderia ter sido a ciência em uma outra situação permanece como uma incógnita histórica. Aliás uma incógnita do futuro, se houver um futuro. Porque nós precisaremos de saberes científicos, mas não os que privilegiam a simbiose com a indústria.
Atribui-se teoricamente à Ciência um papel de expertise para justificar uma inovação. Sobre a questão dos OGM por exemplo, há duas linhas de crítica fundamentais: a primeira questiona os impactos sobre a saúde, a natureza, o meio ambiente etc., o que dá lugar às controvérsias científicas com Gilles-Éric Séralini, professor de biologia molecular, que monta um dispositivo experimental mostrando os efeitos cancerígenas dos OGMs sobre ratos. Nesse caso, a questão dos OGM torna-se um debate científico entre biólogos e seus protocolos experimentais concorrentes. Mas há uma segunda linha de argumentação a nosso ver mais pertinente e que não tem nada a ver com a ciência, é uma crítica política que consiste em dizer: os OGM seguem a lógica dos enclosures ao expropriar os camponeses de sua capacidade de semear os grãos que plantaram. A indústria consolida assim seu monopólio e assegura um lucro permanente.
Na primeira crítica confiamos em experts sobre dispositivos experimentais, na segunda podemos compreender a lógica em si mesma, se reapropriar dela e fazer dela uma potência própria. Já não temos a necessidade de referir a tal ou tal pessoa como autoridade, nem à “Ciência” supostamente desinteressada para nos opormos a ela: precisamos somente compreender que a tecnociência de hoje está, na realidade, a serviço de interesses políticos e econômicos.
Eu não vejo qual “potência própria” advém do fato de compreender a lógica “em si mesma”. Que a pesquisa deve servir ao crescimento e a competitividade é o que proclamam nossas autoridades. O que eu sei é que se a questão dos OGM foi a ocasião de uma reapropriação é precisamente porque novas questões foram colocadas em política e que aprendemos a fazer gaguejar os experts, a interrogar sua suposta expertise. E é apenas um começo.
Enquanto o Inra (Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica) declara: “Nossa responsabilidade é alimentar 9 milhões de seres humanos” ele não deveria poder fazê-lo impunemente. Todo biólogo do Inra deveria ser exposto à questão: O que vocês conhecem da fome? Qual é a sua expertise nessa matéria? Vossos colegas especialistas nesse assunto estão de acordo?
Não se trata de confrontar a autoridade dos dados de certos cientistas com a autoridade de outros, mas de sublinhar a falta de autoridade do biólogo do Inra e revelar sua dependência em relação a dados construídos em um ambiente de laboratório, purificado, rarefeito, excluindo todos os outros dados que implicam na produção de fome, mas que não interessam minimamente ao mundo da indústria.
Por consequência a questão não é se referir a uma figura de autoridade ou à “Ciência”. Séralini não é desinteressado, ele é inquieto e revoltado. E não é a uma controvérsia entre colegas a que estamos assistindo, é a um conflito aberto que não tem nada de politicamente neutro. Tenho a impressão que vocês têm a necessidade de caricaturar para fazer prevalecer uma reapropriação “puramente política”. O “precisamos somente” de vocês é precisamente do que desconfio, como se bastasse adquirir o bom posicionamento político, denunciar, ter razão, em perfeita autossuficiência. Não teríamos mais que nos interessar pelos cientistas, bastaria identificar os interesses a que servem. Não precisaríamos mais de Séralini nem daquilo que nos ensina a maneira pela qual o fizemos calar. Não teríamos que criar alianças transversais. Já não precisaríamos aprender como dar a uma situação o poder de fazer pensar junto todos aqueles aos quais concerne essa situação, como articular os saberes implicados nesse “conjunto”. Se reapropriar de alguma coisa seria então simplesmente, como de costume, pretender ter os bons critérios para definir uma situação. Ou seja, dar ao adversário os meios de encerrar um dossier como esse dos OGM – ele teria querido tanto poder dizer: “a oposição é somente política”.
Mas por que então, para você, os cientistas se deixaram levar pelo modelo da galinha dos ovos de ouro?
Poderíamos responder que pela atração do poder, mas eles queriam também defender alguma coisa que é justamente o que atualmente estão perdendo: o jogo das proposições e das objeções que decide a viabilidade de novos “fatos”. Esse jogo – que os reúne e os faz gozar, mas também pensar – é um jogo certamente “viriloide”, mas não despido de interesse, porque é um exemplo de inteligência coletiva, que supõe uma ciência inventiva, não dominada por uma metodologia objetivista.
Ora, hoje em dia, com a economia imaterial, a indústria monopolizou o poder de ditar as questões. O jogo deles acabou, portanto. Eles já não são os mestres das questões colocadas, das provas que decidem sobre o caráter fiável de uma resposta. Eles devem chocar projetos que devem atrair investidores, prometer inovações e produzir patentes. O registro de patente se tornou para eles a conquista por excelência, bem mais do que a maneira pela qual seus colegas avaliarão suas proposições. Seus campos de pesquisa são cada vez mais circunscritos por patentes que subtraem de seus questionamentos setores inteiros de sua disciplina.
A galinha dos ovos de ouro da forma que existia até os anos 1970 está morta. Mas a submissão às palavras de ordem capitalistas de lucrabilidade e de flexibilidade se traduz em amargura, cinismo ou oportunismo sem vergonha. A derrota raramente engendra outra coisa que não o ressentimento.
Para que a ciência não mais participe da produção do desastre atual, você defende a ideia de uma “inteligência crítica das ciências “, ou seja, de um publico de amadores interessados e dedicados à ciência. Por que não? Mas não seria um pouco naïf de um ponto de vista sociológico, como se a relação essencial fosse a de cientistas face ao público interessado – e não em relação aos financiadores e tomadores de decisão. Atrás da palavra “Ciência”, práticas sociais muito diferentes se desenvolveram. Atualmente o pesquisador precisa de um imenso capital para realizar a menor de suas experiências. Nesse contexto de “Big Science” o interlocutor não será jamais o publico de interessados (mesmo que possa se tornar um dia), mas os financiadores, privados ou públicos…
Você ainda possui uma atitude de sociólogo, com macro-posições. Meu argumento sobre os amadores que não são levados em conta está aí para dramatizar sua ausência, para “desnormalizar” os reflexos condicionados que tornam inimaginável a possibilidade de um “público” se misturando com aquilo que não deve lhe dizer respeito. Trata-se de provocar o pensamento, ou seja um sentido do possível, aí onde há desastre, seja qual for a probabilidade que vocês tem de ter razão. Eu tento evitar as palavras de ordem pesadas que servem de bandeira nos campos de batalha. Eu evito, por exemplo, opor a razão e os valores, e amaria permitir o surgimento de questões mais perigosas, portadoras de alianças mais inquietantes para a ordem pública. Com o caso dos OGM, um público interessado se constituiu em torno de questões de agricultura e isso interessa em três níveis. Primeiro, é um pesadelo para o Inra. Em seguida, é um eventual para os pesquisadores que estão esmagados pela Big Science. Enfim, é um apoio para aqueles que necessitam não de orçamentos faraônicos, mas do tempo necessário para a criação de relações com agricultores fora dos termos da expropriação.
Mas um possível desejável, não seria fazer a Ciência descer de seu pedestal, desertá-la mesmo, como propôs o grupo “Survivre e vivre” [8] nos anos 1970?
Todo meu trabalho é desfazer o amalgama a que chamamos Ciência, fazê-la descer do seu pedestal. Mas, eu tento fazê-lo de um modo que sublinha a singularidade das práticas científicas que o capitalismo está destruindo. Seria preciso permitir que os cientistas possam se reapropriar dessa singularidade contra as maneiras mentirosas que a tornam um modelo de racionalidade. É portanto importante não ignorar a alegria que eles experimentam nesse trabalho de argumentação e de invenção característico da atividade científica.
Sim, mas se aquilo que os faz gozar é também hostil à humanidade como a física nuclear, porque não lhes dizer, como os surrealistas de 1953: “esvaziemos os laboratórios!”?
Não! É a ligação com a indústria que pode ser hostil à humanidade. Quando Jean Perrin consegue contar os átomos, ou Joliot-Curie conseguem definir a radioatividade espontânea, mesmo que isso tenha permitido em seguida a construção da bomba atômica, é uma conquista, diabo! Mais precisamente, é uma conquista para os cientistas, para aqueles que se reuniram em torno do problema, que pensaram, agiram, debateram, ou seja, trabalharam juntos, dependendo uns dos outros. Uma conquista dessas não pode ser caracterizada como hostil à humanidade. Eu tenho medo dos que acreditam poder falar em nome da humanidade seja em termos de uma lógica missionária ou propagandista da “Ciência”, seja em termos dos que visam a destruição daquilo que julgam hostil. Todos pensam que sabem o que é bom para a humanidade.
Será que você não retorna à oposição entre pesquisa pura, desinteressada, feita em laboratórios e as más aplicações? Tomemos o caso dos OGM: a ação primordial foi a de quebrar estufas experimentais. Foi um ataque frontal contra a pesquisa. Não devemos nos iludir: os investidores não gastaram milhões nessas pesquisas para deixar alguns técnicos de laboratório brincarem. Se houver a mínima chance de lucrar, ela não será desperdiçada.
Mais uma vez é a conivência entre a indústria e a ciência que cria o problema – sem falar do exército que nem precisa fingir que serve ao progresso. As estufas experimentais que foram quebradas sublinhavam essa conivência. Essas experimentações preparavam um investimento industrial, o tornando “aceitável” para a população. Mas a questão não se limita à ciência desinteressada. A agro-ecologia, por exemplo, precisa de todo um outro tipo de instituição cientifica porque recusa as inovações que se traduzem por uma lógica de expropriação. É preciso buscar caracterizar as ciências com o mesmo cuidado que um romancista caracteriza seus protagonistas: não fabricar fábulas morais, mas questões que incomodam, que dividem a comunidade cientifica. Se agimos pelo insulto não arriscamos nada: os cientistas reagirão em bloco e se mostrarão tão ignóbeis quanto os representamos. Ao criar um bloco de inimigos furiosos não resta outra escolha senão a de erradicá-los , com a mais pura consciência política.
Sobre o tema da impotência, há em seu trabalho uma tensão entre dois polos. De um lado a impotência se deve antes de tudo às prisões mentais ou discursivas: ficaríamos fechados dentro de nossas cabeças e isso travaria nossa potência de ação. De um outro lado, você ressalta a expropriação e a exploração que parecem mais cruciais. Temos, efetivamente, o sentimento de que nossa impotência está mais ligada à organização material de nossa sociedade e sobretudo ao fato que nós deixamos de fazer uma série de coisas nós mesmos, nos remetendo a instituições por questões de racionalização e de organização: preparar a comida, construir a casa… delegamos tudo a instituições distanciadas que finalmente nos condenam à impotência e nos tornam dependentes delas. É por essa razão que é preciso se reapropriar das coisas: cuidar de si próprio, participar da produção coletiva da subsistência comum etc. Não há nisso nenhum sonho autárquico à la Robson Crusoé, mas uma necessidade de nos reapropriarmos das coisas simples para sair da dependência em que estamos presos – dependência que é a base da nossa dominação. Daí a questão: o que sela a nossa impotência? Há certamente o discurso, a travação da cabeça, mas não estamos também presos por uma organização social que é preciso conseguir questionar?
Os movimentos de reapropriação de que vocês falam me importam, mas por que criar um estandarte, um novo “é preciso”? Por que procurar a verdadeira resposta à dominação, aquela que ataca a sua base? Se reapropriar de alguma coisa nunca é simples, e as “coisas” nunca são simples. Isso aprendi com as ativistas do Reclaim e com seus artifícios cuja necessidade foi por elas comprovada. A reapropriação é uma re-criação, implica uma reivindicação de práticas, uma regeneração que não se acomoda em nenhuma oposição simplista entre “aquilo que está dentro de nossas cabeças” e aquilo que é “mais crucial”. É uma tentação bem francesa, novamente viriloide, procurar o “mais crucial”, de colocar de lado aquilo que tem o poder de desqualificar “o resto”, como por exemplo os raros médicos que lutam contra a dominação farmacêutica. Nesse contexto, ou seja, independentemente das suas experimentações efetivas e das aprendizagens que elas impõem, os exemplos de vocês me parecem sobretudo fazer rimar simplicidade com alguma coisa da ordem do verdadeiro, do autêntico. Quanto à ideia de que existe uma organização social a questionar, que nós estamos em situação de dependência radical, é também o sentido de minha afirmação segundo a qual as alternativas infernais não são somente discursivas: quando os políticos ou os patrões dizem: “É isso ou a deslocalização!”, muitas coisas se agenciam por detrás para que os ferrolhos se coloquem e a deslocalização represente uma verdadeira ameaça. Uma alternativa infernal não existe somente “dentro das cabeças”, ela se organiza e se monta com todas as peças, materialmente. Assim, com o tratado transatlântico [9], não é apenas a Europa ou as nações, mas a menor das municipalidades que poderá ser impedida amanhã de adotar uma medida que diminua a lucrabilidade de um investimento, mesmo que ela seja apenas descontada. Temos diante dos olhos o triunfo absoluto de uma rede densa e nova de alternativas infernais. Todo o poder de se determinar localmente, em qualquer grau, será submetido a um tribunal não judicial, mas arbitral, julgando no sentido que a OMC julga, as infrações ao livre comércio e ao lucro. Dessa forma as alternativas se fabricam, e uma vez fabricadas, elas tornam-se um fator de impotência material longe de ser imaginária.
Mas poderia certamente existir aí efeitos limiares. Os “feiticeiros” se tornam visíveis demais, apressados demais, talvez confiantes demais. O que eles estão fabricando responde a uma lógica de expropriação muito crua. O que eles certamente poderiam suscitar é um novo modo de ilegalismo, a renovação daquilo que os estados modernos combateram com todas as suas forças, se impondo como representantes do interesse comum e criminalizando as práticas consideradas desleais em relação ao poder do Antigo Regime.
O ilegalismo [10] desde que atingiu a propriedade burguesa no século XIX interessou bastante a Foucault. São práticas e um novo tipo de deslealdade que poderiam ser promissoras. Nesse caso, a questão crítica seria: como derrotar a criminalização do ilegalismo que venceu no século XIX? Eu encontro aí a urgência de alianças transversais, a necessidade de encontrar relações de cumplicidade, até mesmo de solidariedades múltiplas, pragmáticas, entre todos aqueles que mostram sua recalcitrância. É essa costura que constitui a única rede de proteção contras as previsíveis operações de isolamento e diabolização. De maneira bem pragmática, com muitas diferenças e com prudência, podemos pensar em práticas aparentadas com aquelas da Resistência sob a Ocupação. Evidentemente o regime atual não tem nada a ver com o regime nazista: o sangue não corre, ao menos não massivamente, não há tortura, deportação etc. Entretanto nós somos completamente regidos por uma potência invasora/usurpadora à qual é legítimo resistir. É uma das coisas que, à sua maneira, a história dos OGM conseguiu mostrar: face ao ilegalismo dos movimentos anti-OGM, os poderes públicos fracassaram em virar a população contra eles; sem a multiplicidade de seus aliados, entre os quais cientistas, os ceifeiros [11] (faucheurs) teriam sido considerados “terroristas”.
Tradução: Mariana Patrício
Revisão: Fernanda Bruno e Nathalia Kloos