Afetos e afetações: Universidade qual é o seu lugar em mim, no outro, em nós?

Como a produtividade no meio acadêmico vem fazendo com que os encontros – entre pessoas, entre campos distintos de conhecimento, com o não saber, com o outro, com desconhecidos – torne-se cada vez mais rarefeito? Ana Kiffer e Thamyra Thâmara conversam num tempo paralelo de vivências e fluxos. Em algum lugar, no quarto ou na mente, elas refletem sobre suas trajetórias acadêmicas, sobre como foram e são atravessadas por elas. Contornando sentidos, desejos, escolhas e perguntas. De que maneira o tempo de ruminar, o tempo rarefeito do dispêndio foi se confundindo com o isolamento e o ostracismo dos muros universitários? E enfatizando a sua incomunicabilidade com a vida, com a realidade e com a sociedade? Num desejo quase que vital de desvelar os muros e repensar as brechas, colocam na mesa as cartas sobre seus anseios e estratégias de um Devir universitário muito além do produtivismo e das políticas de aceito.

[T] A primeira vez que escutei sobre racismo foi na escola, no primeiro ano do ensino médio.  A professora virou para uma aluna preta que estava na primeira fileira da sala e perguntou: “Como é ser negra no Brasil?” A menina que provavelmente nunca tinha pensado sobre isso ficou bastante constrangida e começou a chorar. Não soube o que responder. Hoje quando relembro o episódio penso que o racismo talvez estivesse na própria pergunta. A maioria dos alunos daquela escola pública de Brasília eram negros, mas a única da sala que tinha a pele mais preta era ela e por isso foi a única interrogada como tal. Logo depois veio a faculdade de jornalismo, mas esse tema nunca apareceu por lá, na minha vida ele só foi voltar lá no mestrado.

Era um dia qualquer a não ser pelo fato que eu tinha passado em sexto lugar na seleção de mestrado para Universidade Federal Fluminense (UFF). Eu estava radiante e tinha saído para comemorar. Conversa vai e vem numa mesa de bar, até que o rapaz chega a mim e diz que eu tinha passado em sexto lugar porque era negra. Como assim? Não entendi. A seleção nem teve cotas, disse (o que não seria um problema se tivesse). Eu não entendia a lógica dele. Para ele o único motivo de eu ter chegado naquele lugar era “me ajudaram porque eu era preta”.

[A] Espere aí, eu estava muito cansada desde o ano passado e decidi fabricar um curso que funcionasse como uma espécie de recreio. Fui buscar os pensadores dos ‘intervalos’, encontrei muitos aliados, e o surpreendente, descobri com esses que se achegaram, que no recreio é preciso e necessário fazer escolhas, e mapeá-las, conhecendo os meandros das quadras e os becos sem saídas que encerram os pátios. Esse tempo do dispendere eu diria que é um tempo resistente, re-existente. Diria mesmo, agora já numa perspectiva mais antropofágica, que é um tempo resiliente.

Descobri em meio aos resíduos que esse mapear significava antes de mais nada num criar relações com o mundo real. Ao invés de nos encerrarmos  nos mundos imaginários da teoria ou da arte. Isso porque habitar e convocar resíduos quer dizer operar com táticas locais, que necessitam de um ou outro modo a saída das duas grandes gavetas que sustentam os muros acadêmicos: as teorias gerais (sistêmicas, dadas a priori e que se alojam indiscriminadamente sobre os objetos a serem pensados, estudados ou fabricados) e os sujeitos que pesquisam, pensam e criam (como detentores de uma racionalidade prévia e um olhar hierárquico sobre o mundo). Sair de si significa também sair desses mundos imaginários que herdamos sem saber. O que já é em parte a possibilidade de criar novas relações com o mundo real: modos de fazer, práticas, cotidianos, impasses subjetivos como modos de produção de novos caminhos de subjetivação, mas também um modo de integrar os conceitos e a reflexão a algo que enfatiza numa pesquisa o seu desejo estético e mesmo erótico, assim como o seu caráter funcional – um modo de dizer como um modo de usar…

[T] Durante os anos do mestrado eu sentia um fio invisível que perpassava os lugares que eu ia, as aulas que eu participava e que me apontava sempre que eu era uma exceção. De alguma forma me sentia, na maioria das vezes, tendo que explicar porque eu estava ali. Para quem era de fora ou dentro da universidade havia sempre aquela pergunta de surpresa “Nossa você faz mestrado!”. De um lado parecia que eu devia ganhar um troféu diante de tantos elogios. É como se eu tivesse vencido na vida, chegado lá, mostrado alguma coisa. Mas toda aquela comoção mascarava que, na verdade, aquilo não era comum. Não era o meu lugar ali, ou melhor, não era comum, pessoas com a minha vivência estarem nesse lugar de conhecimento ou “intelectual”. Não porque eu era incrível e sim porque o racismo não nos deixava chegar até ali.  A atriz Viola Davis, depois de receber o prêmio Emmy na categoria de melhor atriz de série dramática, disse a seguinte frase: “a única coisa que separa mulheres pretas de qualquer outra pessoa é a oportunidade”.

E eu tinha tido a minha…

[A] Essa distância clássica que a universidade vem exigindo e tomando em relação à vida,  diria,  é um modo específico de distanciamento dos assuntos tratados que pressupõe um certo número de noções constelares: não ser tocado, contaminado, contagiado pelo que se estuda; posição normalmente hierárquica sobre o objeto – saber e superioridade; exclusão das paixões, da relação propriamente erótica com o que se estuda, se diz, se pensa; desvalorização das dicções menos racionalizantes tais como a poética, a musical, a gráfica no seio do discurso lógico e concatenado, e mesmo de dispositivos de conhecimento menos racionais, como os sonhos, as intuições, os afetos que sabemos atuam e poderiam atuar muito mais como princípios, starts e guias do processo de construção do conhecimento… Nesse sentido, algo irrompe hoje fazendo com que as pesquisas e os desejos se aproximem de forma mais frontal, apontando radicalmente para o esgotamento e o cansaço de certas estruturas generalizantes, na emergência de vozes e contornos minoritários… Chega desse abuso de falar pelo outro, nesse país tão solidamente racista, naturalizamos isso, a nossa literatura é canônica, e sob esse aspecto encastelada e devedora de forma abusiva dessa ideia de que fala pelo outro ou nada tem a ver com ele… mesmo quando tem as melhores intenções…

[T] Estar na universidade como mulher, pobre e preta é ter que provar três vezes porque você está ali e sobre o que se pode falar. É estranho porque ao mesmo tempo em que a universidade é esse lugar (ou deve ser) de formação, encontro, aprendizado, descobertas e experimentação do outro lado para o pobre e para o preto (a) é o espaço de constante “teste” em que você deve provar porque merece estar naquele lugar. Se você é um aluno cotista precisa provar que está valorizando a “oportunidade” que lhe deram e se for pobre tem que provar que tem capacidade para levar o curso até o final. Na sala de aula a pergunta não é sobre os conceitos de Foucault, Benjamin ou Sartre e sim sobre como é ser negro no Brasil, como é a vivência na favela, como está o complexo do alemão. O único mérito que nos dão (quando acontece) é o direito de falar sobre seu próprio lugar, sempre na categoria de narrativa livre ou depoimento, nunca visto como conhecimento ou ciência. Semana passada, voltei à universidade para fazer uma prova de seleção para doutorado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). No corredor, antes da prova, passei o meu olhar rápido pelas pessoas tentando encontrar algum irmão. Quem sabe sentir que estava entre os meus, torcer por algum igual. Na sala da prova só tinha eu de preta. É, a universidade continua sendo o lugar em que o mérito tem uma só COR e ela é BRANCA.

[A] Constatar isso só nos ajuda a afirmar que política hoje é algo que toca o coletivo tanto quanto o individual, o grande tanto quanto o pequeno, o público tanto quanto o privado, a possibilidade mesma da vida de todos e de cada um!!!

Se nos anos sessenta precisávamos ouvir o louco e dar crédito à experiência da loucura, hoje no Brasil, não dá mais para ficar surdo ao que calamos, a nossa dívida é histórica e ancestral. A forma como não vemos, não ouvimos e não falamos mais sobre como calamos, dizimamos, silenciamos, aterrorizamos o povo negro e indígena se espalha hoje numa cultura infinita do medo. Nos enjaulamos em nosso próprio castelo de medos.

Entendo também que mapear o nosso intolerável não é igual a montar um arquivo ideológico de injustiças, memória plena de um povo para com sua própria história, mas, ao contrário, é um gesto que abre sucessivamente no seio de nossas experiências presentes o inaceitável. O intolerável, desse modo, desliga-se do lugar de receptáculo do passado, e por conseguinte, de fonte do ressentimento, para se inscrever continuamente na abertura do presente.

Mulheres na Universidade

Convidamos professoras universitárias para falar de suas experiências frente às atuais pressões de tempo, produção, avaliação e performance na vida acadêmica. Nosso desejo é criar um campo comum de falas e experiências e deslocar a ênfase dos resultados individuais para a reflexão coletiva.

Participaram dessa entrevista:

Daniela Tonelli Manica, mãe de H., de 6 anos. Professora de Antropologia Cultural da UFRJ

Giovanna Dealtry, mãe de Bento. Professora de Literatura Brasileira da UERJ

Patrícia Valim, mãe de Ana, Maria e Bento e avó de Maria Antônia. Professora de História da UFBA

O TEMPO QUE FALTA

Patrícia: A sensação de falta de tempo é um legado do capitalismo e por isso é constantemente ressignificada. Atualmente, essa sensação tem sido alçada ao patamar de epidemia contemporânea em razão da aceleração de conexões e supressão de fronteiras que invadiu todas as esferas da nossa existência, deixando-nos em um constante estado de angústia causado pelas possibilidades não alcançadas, em uma época cujo espírito é o “tudo ao mesmo tempo agora”. Na vida universitária brasileira, essa angústia causada pela falta de tempo é pautada, sobretudo, pela pressão da aceleração quantitativa da produção científica, com objetivo de atender critérios numéricos das atuais avaliações, obrigando-nos a lecionar, pesquisar, publicar, participar de eventos em escala e ritmo quase industriais.

Quando pensamos esse processo por meio do marcador de gênero, essa sensação de angústia pela falta de tempo se intensifica, uma vez que nós – mulheres, companheiras, mães, professoras, pesquisadoras, militantes –fomos e ainda somos constantemente pressionadas a estender o regime de dedicação exclusiva da esfera do nosso trabalho acadêmico para as demais esferas da nossa existência. A universidade é pensada como um espaço de predominância masculina com códigos de conduta, vestimenta e quantidade de produção científica que retroalimentam um “modelo masculino de sucesso acadêmico”, criam desigualdades e hierarquizam cargos e progressões da carreira. Esse processo é visível em algumas situações: há inúmeras docentes que internalizaram a lógica masculina de carreira acadêmica para ter alguma projeção e acabaram por abrir mão de algo que queriam na própria vida; há, por outro lado, docentes que resistem à essa lógica em diversas frentes, mas são constantemente constrangidas por isso.

É o caso da docente que engravida. Eu mesma passei por algo semelhante quando engravidei do meu terceiro filho, ainda no doutorado. Na época, 2010, não foram poucos colegas, mulheres e homens, que me aconselharam a largar a pesquisa sob o falacioso argumento de que a maternidade é incompatível com a universidade. Além disso, naquele momento as agências de fomento não previam a licença maternidade com bolsa de pesquisa. Felizmente, a relação com a minha orientadora, mulher e mãe, fez toda a diferença para que eu seguisse adiante, inclusive passando a militar na maternagem ativa dentro da universidade. Tanto que,um ano depois, as agências de fomento nos concederam o direito à licença maternidade com bolsa e essa decisão se deve à pressão de várias pesquisadoras que resistem à “lógica masculina de sucesso acadêmico” por meio da construção de novas subjetividades políticas dentro da universidade pública brasileira.

Giovanna: Acho que essa percepção atinge todas as mulheres em uma sociedade em que o trabalho doméstico não é majoritariamente compartilhado e que as mulheres, em especial as mães e mulheres das camadas pobres, ainda têm que demonstrar a mesma capacidade produtiva de um homem que, na maioria das vezes, mesmo casado e com filhos, cumpre apenas um turno de trabalho. Então, diante da realidade brasileira, sinto-me privilegiada por ter uma certa flexibilidade de horários. O mesmo não acontece com professoras divorciadas – universitárias ou não – que trabalham à noite e não tem com quem deixar os filhos.

Senti também quando meu filho nasceu e eu “apenas” cumpria minhas obrigações de ensino, deixando a pesquisa de lado, para cuidar dele. Ora, isso é visto como um “atraso” na sua vida acadêmica, ainda que eu continuasse trabalhando. A academia, como qualquer outro espaço de trabalho voltado para a produtividade, ainda privilegia a mulher que deixa o filho do lado de fora do espaço de trabalho. Eu, como mãe, não tenho a disponibilidade de horários que outras mulheres sem filhos têm. Não à toa vemos professoras adiando ou mesmo desistindo de ter filhos, quando é um desejo delas. Ainda existe esse fosso. Mas, comparando com outros espaços e classes sociais, ainda me sinto uma privilegiada.

Daniela: Eu compartilho sim essa sensação de falta de tempo, que ultrapassa a vida universitária. O tempo é o que temos de mais precioso, o tempo é a vida, e é o que “vendemos” através da nossa força de trabalho. Eu me encantei pela universidade pela possibilidade de aliar a esse processo de trabalho assalariado à dimensão do prazer, do crescimento pessoal, do aprendizado constante, de uma presença interessada no e pelo mundo, e na e pela vida. Mas depois que me tornei professora, aqueles momentos de prazer e crescimento que me encantaram tanto quando eu era estudante diminuíram de maneira muito significativa.

Isso tem a ver, claro, com toda a dimensão estrutural que exige a manutenção da universidade como um espaço autônomo, na qual nos engajamos como professoras. Mas tem a ver também com a precariedade da nossa estrutura de trabalho, com a sobrecarga de atribuições que temos, com uma excessiva burocratização e a nossa adesão à cultura da avaliação/auditoria. Passamos boa parte do nosso tempo útil fazendo projetos e relatórios e prestando contas, e avaliando processos de outras pessoas que estão fazendo o mesmo. Não que isso não seja importante, eu concordo que o dinheiro público investido em nosso trabalho precisa ser concretizado, e que esses resultados devem se tornar visíveis, e sobretudo disponíveis (gratuitamente!), mas eu acho que há uma inversão de valores que envolve o tempo que gastamos fazendo essas coisas e o tempo que gastamos demonstrando, de diversas maneiras, que as fizemos. Me parece que essa lógica pressupõe que, se você não produz corretamente as provas do seu trabalho (como coloca Claudia Fonseca), isso pode significar que você não está trabalhando. E isso é incompatível com a multiplicidade de atividades que envolvem a vida universitária, muitas delas desvalorizadas e invisibilizadas.

EFEITOS DA AVALIAÇÃO DA PRODUÇÃO

Giovanna: Critérios de avaliação são necessários para que não tenhamos dentro das universidades professores que não contribuam de forma mais global com a sociedade. Se a universidade pública sustenta-se sobre o tripé pesquisa, ensino e extensão é preciso que esses três eixos sejam avaliados, inclusive respeitando a diversidade de cada área do conhecimento. Como o sistema está colocado hoje nota-se  que a produtividade acadêmica, e a palavra produtividade já nos mostra o caminho pelo qual as agências de fomento nos avaliam, está muito mais valorizada do que a inovação, a originalidade, e as resoluções efetivas de integração entre academia e sociedade; em resumo, quantidade ao invés de qualidade. O que nos leva a uma outra pergunta. Os melhores artigos, por exemplo, estarão realmente publicados nos periódicos Qualis 1A? Ou estamos produzindo pesquisas “seguras”, com uma bibliografia atualizada (que parece ser um critério importantíssimo para os pareceristas), mas que não estão, necessariamente, tendo um papel inovador?

Outro problema é a busca desenfreada por ‘atingir os padrões Lattes”, que tem como efeito colocar em segundo plano o ensino da graduação. Penso que isso sempre existiu. A Pós-graduação vista como um certo Olimpo e a graduação destinada aos professores “que estão começando” ou não tem uma produção científica sólida ou, ainda, povoada por professores substitutos. Na UERJ, essa condição já foi resolvida e hoje temos nossos quadros formados apenas por professores concursados. As agências estão, a meu ver, contribuindo ainda mais para esse fosso. Como se avalia um professor em sala de aula? Quem avalia? Por que publicar o enésimo artigo sobre o mesmo tema é mais valorizado do que um semestre dentro de uma sala de aula nas graduações de licenciatura de onde vão sair os futuros professores?

Não se trata, portanto, de recusar os critérios, mas de tentar flexibilizar os critérios para cada área de conhecimento. Um pesquisador de Literatura Brasileira pode ser avaliado da mesma forma que pesquisador da Engenharia? Para modificar isso, no entanto, teríamos que nos organizar de modo a pressionar as agências.

Daniela: Eu me formei no momento em que os sistemas de avaliação estavam sendo implantados, e me tornei professora já nesse processo atual em que eles operam ainda de maneira relativamente variável em alguns de seus critérios, mas dos quais não podemos mais escapar.

Eu entendo que há um parâmetro central que tem sido até problematizado, mas cujos limites e soluções ainda são pouco enfrentados, que é a “quantidade de publicações” que cada um é capaz de produzir num determinado período de tempo como critério quase exclusivo de qualidade e excelência. A avaliação se dá supostamente de forma coletiva (pelos cursos e programas de graduação e pós-graduação), mas no frigir dos ovos cada um (professora ou aluna/o) é levada/o a produzir dados sobre sua “performance” individual. Mais do que isso, é meio que obrigada/o a aderir aos sistemas de informação que concentram esses dados. Não só o famigerado currículo lattes, mas até as redes sociais (inclusive acadêmicas) que concentram essas informações e as fazem circular.

Esses sistemas de controle e informação têm problemas com os quais ainda não sabemos lidar direito. Quem define e escalona aquilo que é melhor, mais interessante ou mais relevante? Sobre isso ver, por exemplo, o relato etnográfico de Selma Albernaz da UFPE, no dossiê da Revista Mediações (UEL), sobre a cultura da avaliação na produção acadêmica. Ela problematiza a relação entre “mérito” e um sistema que precisa decidir onde alocar recursos, e que opera por uma lógica ainda presa à oposição centro-periferia. Essa lógica reforça a centralização dos recursos, num círculo vicioso desfavorável para quem já está em uma posição menos central.

Eu suponho que a não adesão, voluntária, a determinadas dessas redes ou a essa lógica, que poderia ser pensada como uma estratégia política de resistência ao sistema por discordância em relação a seus critérios, tenha como efeito simplesmente a invisibilidade e a exclusão, e o não acesso aos recursos disponíveis. É uma visão pessimista, admito. Mas penso que talvez mais realista. A adesão, por outro lado, implica compactuar com alguns dos efeitos que estão pressupostos. Não há para onde correr, são as regras do jogo. Mas somos nós que as estamos elaborando e as fazendo funcionar.

Na Antropologia, pelo menos, esse paradigma de produtividade é dissonante em relação a toda a nossa tradição de reflexividade, de uma formação ampla e sólida, embasada por leituras aprofundadas e de trabalhos monográficos resultantes de uma experiência etnográfica que, também, envolve períodos relativamente longos de pesquisa empírica. Nesse sentido, a lógica vigente é inadequada ao nosso estilo de produção de conhecimento, e esse descompasso fica visível nos trabalhos que temos sido levadas/os a produzir ultimamente.

Essa lógica não tem nenhuma novidade, apenas atualiza no mundo acadêmico e universitário as dinâmicas do mercado capitalista que operam nas demais esferas do trabalho e da vida. É por essa ótica que entendo o paradigma produtivista, esse sistema febril, como coloca a antropóloga Marilyn Strathern, que pressupõe e induz uma hiperatividade.  

Eu acho que na universidade isso toma uma dimensão altamente preocupante, uma vez que o trabalho administrativo, o de formação e acompanhamento dos alunos (desde a graduação), o respeito do tempo necessário à reflexão e ao amadurecimento de ideias, assim como as atividades de extensão, não “valem” tanto quanto a publicação de artigos. Tenho ouvido queixas de estudantes, que se sentem preteridos por essas outras atividades que nós, professoras/es, precisamos privilegiar.  

De uma perspectiva feminista, não consigo deixar de pensar numa analogia entre o que acontece na universidade e a desvalorização do trabalho doméstico, do cuidado, da educação (sobretudo de crianças) e a valorização do trabalho assalariado e qualificado, mercado dominado sobretudo por aquela figura clássica do “homem branco heterossexual”. As atividades de cuidado, educação e manutenção estrutural da universidade são preteridas em relação às atividades produtivas e as outras atividades são frequentemente obscurecidas. Eu acho inaceitável conhecermos essa crítica e toda a história desses movimentos sociais e, mesmo assim, reproduzirmos esse tipo de estrutura na universidade.

Patricia: Quem milita ativamente na universidade pública brasileira com excelência, como eu, tende a levar os sistemas de avaliação dos professores e dos programas de pós-graduação a sério. Isso implica em destacar suas qualidades e apontar suas limitações. Primeiro é preciso considerar que os sistemas avaliativos foram implementados no empuxo do vertiginoso processo de expansão universitária e consolidação de novos programas de pós-graduação além do eixo centro-sul do país, deflagrados a partir do primeiro mandato do governo Lula. Novos espaços, novos agentes, novas demandas e novos desafios, cuja gestão pelo Estado funciona com alguma isonomia e eficiência por meio de plataformas que garantem a qualidade dos programas de pós-graduação, o repasse de recursos públicos a esses programas, e maior controle e transparência sobre o uso desses recursos perante a comunidade acadêmica e a opinião pública. Não parece ser por outra razão que boa parte dos prêmios de melhores teses, nos últimos anos, foram destinados a pesquisadores de programas de pós-graduação do norte, nordeste e centro-oeste.

No entanto, é preciso considerar que esses sistemas de avaliação são baseados em critérios quantitativos: números de artigos publicados, número de citações recebidas e fator de impacto das publicações – o que acaba por desconsiderar as múltiplas temporalidades das ciências e outras variáveis no processo de avaliação: qualidade, criatividade e originalidade. A implicação mais imediata é a baixa produção científica capaz de transcender as formas do mesmo. A corrida desenfreada por recursos e prestígio no universo dos indicadores acabou por forjar o pesquisador que publica 70 artigos em um ano e obstaculizar a produção autoral em várias frentes – isso talvez possa explicar tanto o fenômeno editorial de coletâneas publicadas na última década quanto as crescentes denúncias de plágios nas universidades. É preciso fazer mediações entre critérios quantitativos e qualitativos, respeitando as especificidades das áreas.

CONSTANTEMENTE ENDIVIDADAS…

Daniela: Há uma efemeridade da produção: o que vale apenas é a produção recente, de três ou quatro anos atrás. Isso potencializa essa sensação de que não é possível parar, há sempre algo a ser feito. Se por um lado isso pode ser positivo, estimulante, levar a novos projetos, novos trabalhos, por outro essa aceleração contribui para essa sensação de endividamento constante.

Um colega que pesquisou executivos das transnacionais na sua tese de doutorado trouxe uma imagem que acho muito emblemática, a de que a “empregabilidade” pode ser pensada como uma escada rolante ao contrário. Para nos mantermos onde estamos, é preciso andar sem parar. Para subir, é preciso andar mais rápido que ela. Considerando que a vida de todas/os nós tem seus altos e baixos, sua inconstância, seus imponderáveis, isso pode ser em determinados momentos muito angustiante. Acho que contribui para muitos dos processos de adoecimento que temos observado em nossos colegas e também, claro, em pessoas que estão trabalhando em outros lugares também sob alta pressão para produzirem. Eu gostaria de imaginar que, estando em um lugar de deslocamento e pensamento crítico, como eu acho que deve ser a universidade, deveríamos ser capazes de resistir a esse processo, e experimentar soluções que sejam mais justas e libertárias.

Patrícia: Nós, docentes e pesquisadoras, vivemos apagando incêndios dentro e fora da universidade. A angústia constante em razão do tempo que falta para darmos conta da nossa afetividade, sexualidade, maternidade, militância política, carreira acadêmica e vida doméstica foi inegavelmente adensada pela lógica dos indicadores com critérios quantitativos dos sistemas que nos avaliam constantemente. Em vários momentos, a sensação também é a de ser um personagem de George Simmel na passagem do século XIX para o XX, com todas as pressões, demandas e ritmos das relações monetarizadas de uma cidade grande, que rebaixa os indivíduos a um grão de areia em uma organização monstruosa de coisas e potências, que vai gradualmente lhe subtraindo espiritualidades e valores até transubstanciar subjetividades em objetividades. Acho que uma das pistas para sairmos dessa encruzilhada contemporânea está na resistência a esse processo quando sobrepomos o espírito subjetivo no lugar do espírito objetivo e apostamos na construção de subjetividades políticas no empuxo da enorme potência que a universidade pública nos confere: lugar da crítica, conflito, dissensos, mediações diversas, consensos e autonomia.

Giovanna: Esse novo volume de trabalho é reflexo justamente das exigências da avaliação. Os prazos são cada vez menores e as exigências cada vez maiores. No momento, por exemplo, estou com dois artigos em livros, já aprovados, mas que não têm prazo para sair. Os pesquisadores não podem mais se comprometer com capítulos inéditos em livros que não têm um prazo certo para sair e preferem destinar seus trabalhos aos periódicos. Qualis 1A virou um selo de “garantia”. Como um ISO. E, no meio dessa dispersão, muita coisa boa se perde. O próprio papel do intelectual se perde. Não há mais espaço para livros que versem sobre um tema único desenvolvido ao longo de anos. Os livros hoje, se não são publicações das teses, em sua maioria, são reuniões de artigos publicados e organizados para o formato livro. O que quero dizer é que não nos é dado tempo de amadurecer diante de agências que insistem na produtividade e de universidades que não se unem para o questionamento desses critérios. A área de Humanas, completamente à parte de um conceito como “produtividade”, sofre ainda mais porque nossas publicações são individuais. Ao contrário de publicações nas áreas de Ciências Biológicas e Exatas, que admitem mais de um autor, por vezes, cinco ou seis autores. A área de Humanas está obedecendo a critérios criados a partir do perfil de Exatas e Biológicas. Acho que uma mudança deveria começar pela atribuição de critérios específicos para cada área.

O negro e a Universidade: o que posso falar disso

No que diz respeito ao nome, Universidades seriam uma comunidade multidisciplinar, que além da ampla abordagem temática, objetivasse a diversificação entre seus discentes e docentes. Porém, o que se apresenta realmente nas grandes universidades brasileiras é um grande meio elitizado, branco e cis. Identificar isso não é generalizar, é “ir na ferida” e expor que, quem está nesse ambiente detém privilégios. Claro que hoje, com cotas e programas como FIES e PROUNI, os rostos detentores de diplomas em formaturas vêm aos poucos mudando, mas essas pequenas mudanças são acompanhadas de grandes manifestações racistas, desde trotes que acorrentam, dão plaquinhas chamando de “Chica da Silva” e pintam alunas de negro, até perseguições de alunos, com direito a armários pichados, como aconteceu comigo.

“Dorothy Counts foi a primeira estudante negra admitida numa escola pública americana (de brancos). A fotografia retrata seu primeiro dia de aula na Universidade de Harry Harding, na Carolina do Norte (EUA), em 4 de setembro de 1957.O vestido de Dorothy foi feito por sua avó especialmente para seu primeiro dia de aula. Cuspiram nele.Centenas de alunos seguiram e acompanharam sua chegada à escola. De vez em quando alguns jogavam coisas em sua direção enquanto outros faziam gestos obscenos. Os estudantes gritam para ela voltar para casa. Dorothy foi em frente sem reagir. Este absurdo momento de violência prosseguiu nos dias seguintes. Foram 4 dias de perseguições e insultos. Jogavam lixo durante a sua refeição e seu armário era saqueado. Depois surgiram ameaças telefônicas agravando ainda mais a situação. Por fim, os seus pais consideraram que a sua vida poderia estar em risco e optaram por tirá-la da escola.Pode parecer pouco mas os quatro dias em que Dorothy tentou frequentar a Harry Harding High School foi de grande importância para o Movimento dos Direitos Civis e fim da segregação racial nos Estados Unidos.”

Retirado da página: As Minas na História.

A minha vida inteira estudei em escolas públicas, me destacando nas Olimpíadas de Matemática, tirando altas notas no Saresp e passando em primeiro lugar nos vestibulinhos para cursos técnicos. Por incrível que pareça, mesmo sendo negra e nunca tendo sido cobrada diretamente pela minha mãe a ser melhor que todos por ser negra, fato que é comum entre negros, eu me autocobrava para ter boas notas, ser uma ótima aluna e me destacar.

No fundo minha autoestima, abalada por me considerarem feia, via no destaque no meio acadêmico a saída. E assim foi até 2011 quando entrei no terceiro ano e via minhas amigas falando que precisávamos fazer cursinho para o vestibular e me vi presa em inúmeras inseguranças — queria ser universitária, mas como chegar nisso?

Fiz uma prova e ganhei uma porcentagem de bolsa de estudos no cursinho Etapa e conciliei estudos do final do ensino médio com cursinho, pois sonhava em passar em Arquitetura e Urbanismo.

No primeiro simulado que fiz, a coordenadora do curso me chamou numa sala e disse que meu desempenho tinha sido satisfatório, e que eu tinha que manter aquela média se quisesse passar em Arquitetura e Urbanismo, já que esse era um dos cursos mais concorridos. Eu tentei.

Eu tentei manter minha sanidade mental não abalada naquele espaço, onde eu percebi o quão distante minha realidade estava de quem pagava 700 reais para ficar o dia todo decorando qual alternativa merecia o X certo.

Eu comecei a questionar meritocracia e a ler textos com discurso de esquerda aos 17 anos pois eu estava frustrada sabendo que eu não iria poder competir com aquelas pessoas, então quando começou 2012 e eu consegui uma bolsa pelo PROUNI para fazer Arquitetura e Urbanismo, na PUC – Campinas, eu considerei que eu tinha vencido, afinal eu estava na UNIVERSIDADE.

Acho que Dorothy a moça do começo desse texto pensou o mesmo, afinal na minha família eu sou a primeira mulher negra a estar nesse espaço e numa PUC, num curso elitizado que vai ter esse diploma e todo os privilégios de ter estudado naquele lugar.

Entretanto ser uma mulher negra na universidade está muito próximo ainda da realidade de Dorothy.Por mais que em 10 anos com as políticas afirmativas, o número de negros do espaço universitário tenha triplicado aqui no Brasil, quem está nesses ambientes elitizados de grandes universidades públicas e particulares sabe que é nos dedos de uma só mão que conseguimos contar nossos semelhantes.

O racismo institucional ainda é a realidade do ensino de qualidade no país. Essas grandes instituições de ensino, além do pouco número de alunos e docentes negros, o segundo em menor número ainda nesses espaços, não propiciam um ambiente agradável e acolhedor para alunos negros. Paralelo a isso, cresce o número de faculdades particulares com cursos com preços mais acessíveis que vão de alguma forma contemplando o anseio de alunos pobres e negros de estarem no ensino superior. Contudo isso não só vem, infelizmente, criando uma lógica onde o aluno de escola pública paga pelo ensino de faculdades particulares com privações não encontradas nas grandes universidades, que continuam mantendo a hegemonia de alunos em sua maioria brancos e de classe média alta.

Criam-se pequenos paliativos para que não se enegreça os centros de ensino da branquitude, essas bolhas de privilégio que, por sua vez, seja pela a falta de moradia, de restaurantes com preços acessíveis, de bolsas para transporte, alimentação, creches e até a ausência de debates sobre a questão racial feito com alunos e docentes, acabam ainda sendo um dos ambientes onde a desigualdade racial fica mais evidente e a forma como ela será mantida também.

Estamos vivendo um momento que para além da discussão em cima de cotas, que já foram implementadas em federais, mas não em algumas estaduais como a USP (Universidade de São Paulo), é necessário debater as políticas de permanência para que alunos negros que ingressam no meio acadêmico não parem seus cursos no meio deles, ou que não passem por um processo de agressão a sua saúde mental.

Em 2013 os alunos da minha faculdade, como já disse, picharam meu armário com a  frase: Não ligamos paras as merdas que você posta no seu Facebook.

Desde então, aquele tornou-se um ambiente hostil, o processo de empoderamento que eu tive enquanto mulher negra na sociedade machista, racista e elitista, foi paralelo ao desconforto dos demais alunos para com a minha presença e discurso. Então as “merdas” que eu falava não eram nada além de um discurso feminista e contra o racismo. O cabelo crespo que eu usava na faculdade, que era um dos únicos crespos dali, foi zoado pelos alunos de engenharia enquanto eu caminhava de volta para casa. Alguns professores que deveriam ser os que me passariam conhecimentos plenos e gratificantes me ensinaram, por exemplo, que “mesmo com a minha cor escurinha eu conseguiria ver as nuances de diferentes cores de luz”, ou que “é desnecessário que haja instalações de água quente no térreo de um edificio, afinal o porteiro no barraco dele nem água deve ter”. Com um dos meus amigos mais próximos na universidade eu aprendi que mesmo sendo negra eu “não cheirava mal que nem os outros negros”.

A universidade me mostrou que para além de lutar para ter o mesmo desempenho que pessoas que detém recursos financeiros bem maiores que os meus, acessos a livros e a conhecimento mais facilitado, tenho que disputar contra o racismo e a forma como ele me adoece quando mostra todo seu ódio contra mim.

Eu estou cansada.

Por mais que eu tenha encontrado na arquitetura e no urbanismo um grande amor, ele veio junto com uma depressão que ainda estou aprendendo a lidar.

Mas além de ser uma cotista deprimida, eu sou uma mulher negra que está ocupando um espaço que negras geralmente não estão,  um meio onde existem poucos negros (no país ao todo só temos 70 professores universitários negros) mas muitos na faxina.  Às vezes estar na universidade acaba não sendo nem um pouco revolucionário ou contestador, quando ela acaba espelhando essa sociedade segregadora, oriunda de mais de 300 anos de escravidão.

E reverter essa lógica não é tornar o negro tema de trabalhos de TCC, mestrados, ou doutorados, mas sim incluí-los no meio acadêmico, como forma de empoderamento e de dar voz ativa em suas lutas e causas. Ou seja, incluir o negro requer muito mais que cotas, é preciso que matérias façam recortes, que as universidades proponham atividades. É necessário que a manutenção do aluno negro ultrapasse apenas a situação financeira, através de bolsas de estudos, mas com sua saúde psicológica garantida e isso requer que o meio seja acolhedor.

Como não é possível tolerar trotes racistas, também não se pode aceitar que alunos negros sejam minorias em salas de aula, num país onde mais de 50% da população tem nossa cor.

E recomendo que muitos negros tentem gozar desse privilégio de estar na universidade, mesmo sabendo que os vestibulares são catracas racistas, que a permanência é complicada e adoece, nós negros precisamos estar nesses espaços. Não quero que se um dia eu tiver um filho, ele sendo negro, seja o único do ano dele como eu sou. E o processo de mudança infelizmente parece andar a passos lentos. Num momento da história, Dorothy não pode concluir seus estudos, agora eu estou perto do fim dos meus. E talvez no começo de uma carreira intelectual.

A Universidade precisa aprender uma lição que não está nos livros de filosofia ou nas grandes teses, ela precisa saber o que é ser negro! E só nós podemos ensiná-la.

“Todos tabelados!” Duas cartas abertas àqueles que nos governam.

Este texto da Barbara Cassin é a introdução do livro Derrière les grilles: sortons du tout-évaluation [1] (Por trás das tabelas: saiamos do tudo-avaliação) publicado em 2014 (Paris, Mille et une Nuits, L’Appel des Appels). Trata-se de uma obra coletiva, dirigida por Cassin, que se insurge contra os mecanismos de avaliação da performance implementados pelo Estado francês nos mais diversos setores: da economia até a saúde, a educação, a pesquisa etc. A introdução do livro conta com duas cartas abertas, endereçadas “àqueles que nos governam”: uma da própria Barbara Cassin (aqui publicada); a outra de Roland Gori. A indignação que mobiliza o livro, vivamente colocada na carta da Barbara, nos concerne a todas e todos. A carta é uma DR com aqueles que nos governam. Na França, no Brasil e em toda parte onde a avaliação permanente da produção e da vida está em curso.

Barbara Cassin é filóloga e filósofa, diretora de pesquisa do CNRS, França, membro do coletivo l’Appel des appels. Autora, entre outros, de Gregos, Bárbaros, Estrangeiros (Editora 34); Ensaios Sofísticos (Siciliano); O efeito Sofístico (Editora 34); Vocabulaire Européen des Philosophies, Dictionnaire des intraduisibles (org., Seuil-Le Robert, 2004); Google-moi, la deuxième mission de l’Amérique (Albin-Michel, 2007); Jacques le Sophiste, Lacan, logos et psychanalyse (Epel); Plus d’une langue (Bayard).

“Todos tabelados!” [2] Duas cartas abertas àqueles que nos governam.

Este livro tinha sido preparado para a primavera de 2012 e para a campanha presidencial. A avaliação esquentava as orelhas de todos já há um quinquênio – lembrem-se: “Toda atividade sem avaliação traz um problema”, “Eu vejo na avaliação a recompensa da performance. Se não há avaliação, não há performance” [3] – e particularmente da parte dos professores-pesquisadores, a quem o “Eu vos agradeço por terem vindo, há luz, está aquecido” havia sido endereçado. L’Appel des Appels (A Demanda das Demandas), e não apenas este coletivo, se debruçava sobre a avaliação de todas as maneiras possíveis [4]. A avaliação não cessava de provar de todas as maneiras possíveis sua inoperante estupidez e sua periculosidade. Talvez lembremo-nos ainda do “Eu estou com 22 de 30 no verde” de nossa ministra da economia, hoje promovida à diretoria do Banco Mundial. Ela não pressentia nada, às vésperas da crise da bolsa, e falava triunfalmente de seus próprios indicadores de performance…

Em seguida, a mudança foi eleita, e isso nos alegrou [5]. Pensávamos que nosso trabalho não tinha mais atualidade.

Ora, ele é tão atual quanto antes, portanto mais do que nunca.

Sem surpresa, se pararmos para pensar: a avaliação provém do mesmo tipo de racionalidade “moderna” que a técnica (dizia Heidegger), o biopoder (dizia Foucault) e o crime ecológico (com esta nuvem na hybris [6] estigmatizada pelo Manifesto Convivialista [7]). A chave filosófica deste todo-avaliação é provavelmente a seguinte: segundo o paradigma da vontade de potência que é vontade de mais potência, o excesso, o “mais” ou o “ainda mais” fazem parte da essência da avaliação. Da mesma forma que mais técnica, mais biopoder, mais crime ecológico constituem a própria ideia, ou a essência, da técnica, do biopoder, do crime ecológico, a avaliação leva sempre a mais avaliação.

A avaliação, aliás, foi instituída durante o governo Jospin [8]. Como livrar-se disso, diz-se, e como viver sem ela?

E agora? Vamos entregar os pontos? Continuemos o combate? Indignemo-nos!

Que seja. Eis aqui, portanto, um livro a mais, um verdadeiro “coletivo” que se prolonga on-line no site L’Appel des Appels. É preciso árvores para fazer papel, e há limites financeiros de edição e de distribuição, mas a um momento dado, esta obra coletiva teria se aproximado bem de umas seiscentas páginas… Virtualmente, ela se estende a “tudo” sem nenhuma exceção, e não somente aos sintomas destacados aqui para ilustrar “todos os domínios, todas as profissões, todos os instantes” – tudo, verdadeiramente tudo: do risco previdenciário ao risco atômico e da gestão da arte à gestão dos imigrantes…

Mas ante o quê nos indignamos precisamente?

Ante a necessidade de números para governar? Certamente que não. Não se pode abrir mão deles para fazer previsões que sejam as menos delirantes possíveis; é preciso censos, estatísticas, projeções e planilhas de controle. Desnecessário dizer que na democracia é preciso prestar contas; isso chamava-se inclusive logon didonai, “dar um, ou o, logos”, o dever de todos os magistrados atenienses, sorteados ou não, ao fim do mandato.

Mas que seja preciso numerar tudo isso assim – tudo isso e assim – sim, nos inquietamos. Inquietamo-nos e indignamo-nos, humanamente e politicamente.

Eis por que esta carta aberta aos que nos governam. Por favor, tomem distância, pensem. Vocês têm tempo para isso e é vosso dever.

Para que vocês entendam o que já não dá certo, o que não deve continuar, nós pedimos que reflitam sobre o que lhes serve de ferramenta universal: as tabelas, as grades de avaliação.

Pois essa é a forma particularmente insuportável que seus números assumem: a de tabelas, de grades.

Primeiramente, nossa vivência como cidadãos, administrados, profissionais: nós sufocamos por trás das tabelas. É preciso entrar nos quadradinhos das tabelas custe o que custar. O que nós fazemos, aqui ou ali, não tem mais nenhum sentido. Se vocês temem a desmotivação: ela é muito mais profunda do que vocês imaginam, muito mais real, constitutiva – se vocês não tomarem cuidado – de uma nova subjetividade, coletiva e individual, que se ausenta ao deixar as mãos marcarem cruzinhas nas células das tabelas. Dando lugar para todas as ressubjetivações extremas-extremistas que vocês temem e que nós tememos com vocês.

Vocês encontrarão neste livro dezenas de tabelas, que representam centenas, milhares de outras. Suicidas, tanto no sentido próprio quanto no figurado. Pois nós não reconhecemos mais o mundo, nós não nos reconhecemos mais na representação do mundo que vocês nos constrangem a instruir, pedaço por pedaço, num fracionamento generalizado que pretende conter o sentido acumulando itens parciais insignificantes. Somos novos Carlitos em Tempos Modernos, não mais na linha de montagem, mas atrás das tabelas, e sem rir. Com as solas furadas, pois há crise.

E é preciso passar por esta negação de sentido para aceder a um financiamento qualquer. Não há melhor maneira de entregar o dinheiro nas mãos daqueles que não se incomodam com a ausência de sentido, aqueles para quem o dinheiro basta para dar sentido – aos profissionais de finanças, os financiamentos.

As tabelas se autossustentam, De um lado, decompomos nossos atos, nossas vidas, para que eles possam entrar na prestação de contas: vocês, governantes, são ávidos por essas reduções para estabelecer e ajustar vossas políticas. Vocês nos devolvem, então, essas novas tabelas, política pronta, e nós devemos nos conformar, nos enquadrar, para sermos financiados. Tal é o segredo do bottom up, top down, e vocês imaginam que esta é a boa governança.

Listemos algumas evidências.

Vocês, governo que determina a norma social e obedece à norma global, não cessam de nos avaliar para que a França seja melhor gerida, mais econômica e mais produtiva.

Vocês medem a performance, ficção proteiforme extremamente sinuosa porque ela permite transformar o não mensurável em mensurável, a qualidade em quantidade. Neste ponto o modelo de vocês é do tipo “Google”, potência refratária ao imposto, que vocês não sabem se é preciso boicotar ou paparicar. Pois o algoritmo que faz a excelência e a fortuna do mecanismo de busca por excelência depende, em última instância, do número de cliques (um clique um voto) sobre um item, promovido, graças a essa superioridade digital, ao alto da página, como o primeiro, o melhor. A característica do (bom) mecanismo de busca é fazer com que a qualidade se torne uma propriedade emergente da quantidade.

É assim, e no fim das contas “democraticamente”, pela lei das grandes quantidades, que vocês próprios definem a excelência como o topo da lista da norma; a partir do quê vocês podem distribuir com toda equanimidade as recompensas, as incitações, as punições.

É claro que, ao fazê-lo, o Estado se pensa e funciona como uma empresa, e mesmo uma empresa de empresas (como a mão é para Aristóteles um “órgão dos órgãos”) na coopetição [9] (uma palavra do Google) mundial, onde os cidadãos são seus empregados.

Ora, se sua empregabilidade tarda ou deixa a desejar, isso equivale, para eles, a uma negação absoluta: uma “sociedade de trabalhadores sem trabalho”, diz Arendt, não podemos imaginar nada pior.

Mas ela se engana, existe pior: uma sociedade de trabalhadores com e, muito frequentemente, sem trabalho, mas, tanto em um caso como no outro, sob vigilância.

É virtualmente – a palavra é importante porque remete à dominação das novas tecnologias – cada gesto de cada funcionário da limpeza, enfermeiro, médico, mestre, professor, pesquisador, diretor de um estabelecimento, magistrado, servidor social, mas também mulher grávida, recém-nascido, criança, aluno, doente, dependente, em estado terminal, sem-teto, comprador, passeador, usuários em geral da rua ou da rede que está submetido a uma avaliação. Qualquer que seja a ação ou a paixão, ela é avaliada.

A tabela, no presente.

Ela funcionará com toda transparência, ela constituirá uma garantia de objetividade e de igualdade democrática? Mas, e isto começa a ficar evidente, é uma aparência de transparência, de objetividade e de democracia.

Separemos logo o objetivo do subjetivo, supostamente sufocado.

A objetivação passa pela comensurabilidade. Só podemos notar, objetivamente, itens. É preciso, portanto, decompor os ofícios, os saberes, os processos, as relações e os sentidos, para criar procedimentos seccionados em tarefas: itemizamos para colocar em células da tabela. Em última análise, a objetividade requer elementos de linguagem pré-formatados (keywordsissuesdeliverables) que constituem uma conversa fiada universal, expressa em globish, pois essa é, a princípio, a língua que faz a tabela. É a língua dos administradores que fabricam as dicas, estruturalmente tributárias da opinião recebida e sempre atrasados em uma evolução intelectual. A língua dos especialistas internacionais aos quais se recorre para evitar qualquer conflito de interesse, dito de outra forma, sempre fora de contexto, que tem por única função a abstração duvidosamente concreta da mundialização da concorrência. Existe, enfim, de bom grado – malgrado a língua dos avaliados – essa nova língua para todos.

Nenhum conteúdo ganha corpo se não é assim formatado pelas e para as tabelas. Fazemos aplicações a longo prazo (é mais fácil quando se tem dinheiro, basta ter recursos para dar às firmas especializadas, no jargão successful). O fundo não conta porque ele não se faz objetivamente “notável”, tanto no sentido literal quanto figurado, de tal forma que, com essa lógica, um coração de um projeto de cinco páginas bem formatadas pode ser o suficiente para se ganhar milhões de euros com a condição que o dossiê apresente uma centena de páginas de enrolação copiada e colada, com proliferação de siglas, trigramas (ccl), gráficos de pizza, gráficos de Gantt e de Pert… Uma língua congelante, mas evolutiva, que tem como cereja do bolo elementos da linguagem tributária da moda, que transformam alguns requisitos interessantes em estratos datados, entre gênero, resiliência e durabilidade.

Somos avaliados e somos avaliados incessantemente, de tal forma que nos acostumamos a falar por clichês. Ora, só falar por clichês, isso é, eu o digo com a maior seriedade do mundo, o sintoma daquilo que Arendt criticava em Eichmann: a banalidade do mal.

Na França, estamos na Europa, e na Europa estamos no Canadá ou nos Estados Unidos. Os Estados Unidos inventam uma boa parte das DSM (Manual de diagnóstico dos distúrbios mentais), dos auxílios aos diagnósticos e das prescrições, avaliações de todos os gêneros. O Canadá inventou o fator h. Para dizer gentilmente, esses dispositivos, dos quais podemos admitir que tenham alguma validade dentro de sua ordenação, foram vítimas de uma disseminação insaciável. O fator h, que deveria servir muito modestamente, para a bibliometria médica, para cifrar o grau de credibilidade de uma publicação (quantas vezes foi citado e em que tipo de revista), sofreu de dois pecados de exportação: aquilo que deveria servir para avaliar a massa crítica (as publicações médicas) transformou-se em um critério individual (julgamos se você, o autor, é um “publicável” digno ou não de submeter o artigo), e aquilo que deveria julgar o existente, determina o futuro.

Com a passagem aterrorizante, denunciada por todos, mas praticada a cada instante do tabelamento, da massa crítica ao caso individual: a tabela funciona com “toda a informação do mundo”, de maneira holística, mas jamais caso a caso, com a soma empírica dos casos, de maneira clínica. Ela é, por sua natureza mesmo, dramaticamente inapta a toda prescrição no nível do caso – a essa miudeza que mobiliza: duas doses de Ritalina…

O mais inquietante com as tabelas é que se trata sempre de uma profecia autorrealizável. Não paramos de confundir a prescrição com a predição, como nos filmes de ficção científica, desde La Jetée [10] até Minority Report de Steven Spielberg: é como se tudo fosse escrito no futuro anterior [11]. Mas a ficção científica futurista que se faz nossa hoje já não tem nada de crítica, de irônica ou inquietante; ela dita a norma, tornada natural, onipresente com a prevenção-predição; ela carrega consigo um perigo imediato, a saber a destruição dos indivíduos, nossas crianças ou “os indiciáveis”? Essas práticas regressivas ligadas ao medo se conjugam com a falta de meios: eis-nos aqui de volta aos hospitais do século passado, contenção e eletrochoques (perdão, estimulação cerebral profunda). Não há tempo para tomar tempo, não há tempo para falar. Essas tabelas que vos acompanham ao longo da vida, esses “dados”, não podemos senão nos conformar com eles, pois constituem a única tabela para a leitura das condutas! Contudo, sabemos um pouco que existe o caso, a clínica, o acontecimento. Mas é aí que a coisa se torna indecifrável, pois não cifrada.  

O real assim desconstruído já não é sequer observável, ou ainda, ele já não possui nada de real: observamos que não observamos nada. O caso exemplar entre nós é o da morte: poderemos constatar aqui a que ponto já não se trata sequer de um “fato”. Alguém morre? Alguém morreu? Está de acordo com… como fica pra nós… para permitir que… A doação de um órgão por exemplo, em função das técnicas de hoje, que já não são as de ontem e não serão as de amanhã. Já não existem fatos, mas dispositivos fabricados, critérios cambiantes, ficções protocolares.

Quanto à subjetividade, ela simplesmente, a despeito das “boas práticas” dos programas de avaliação, fica coberta pelo véu pudico da objetivação. Ela intervém, contudo, em quase tudo, paralelamente: na escolha dos itens, na formatação das tabelas e na construção de indicadores, no tempo da avaliação, momento e duração, na interpretação e na valorização dos resultados. Evidentemente, quanto mais alto estamos na hierarquia, mais fabricamos tabelas, precisamente as tabelas que serão aplicadas a vocês e que aplicaremos a nós mesmos, e mais decidiremos o sentido que elas terão e as consequências que produzirão. Uma auto-avaliação não declarada… shiu!

Tendo sempre, se isso te convém, e se você está por cima da carne seca, a possibilidade de reivindicar uma tabela superior, isso é, que sirva melhor aos interesses que te interessam. O exemplo da Universidade de Middlesex é paradigmático: no momento em que seu departamento de filosofia, vencedor segundo as tabelas, é classificado como um dos melhores do Reino Unido, ele é fechado. É que ele não satisfazia outras tabelas: rendia menos (pelo menos a curto prazo, pois como calcular, hoje, o déficit de imagem da universidade produzido por essa decisão?) que outros departamentos na mesma universidade, por exemplo, que o departamento de marketingPurely financial, nada pessoal; nada de intelectual tampouco, certamente. Esse é o critério último, suscetível de produzir todas as prescrições de normas. Purely financial: depois da cura do tv-coca-barradecholate, mas coma cinco frutas e legumes por dia, vêm os laboratórios farmacêuticos prescritores de Ritalina para nossos pequenos e de antidepressivos ou/e de remédios para emagrecer com efeitos colaterais que devemos curar sozinhos. Isso é o marketing.

A grande ausência desse dispositivo todo é a invenção. Eis o que desejamos verdadeiramente, para fazer a diferença. Mas é aí, contudo, que o calo aperta e começa a ficar evidente.

De início, no que diz respeito às próprias políticas de pesquisa: avaliação, o mal europeu que vem do Canadá, com sua temporalidade contra-produtiva assombrada pela produção e sua dramática inoperância no que diz respeito à pesquisa pura (publish or perish [12] e publique short and dirty [13] para subir mais rápido). Ora, é também a pesquisa e a inovação que vocês coopeticionam no fim das contas, isn’t it? E o que é pior, as diretorias de Pesquisa e Desenvolvimento das empresas, tão paparicadas, não sabem mais como fazer. É a própria prova, as avaliações e as tabelas que condicionam toda a ação e todo financiamento não podem alcançar senão o que já é conhecido, decupado e repertoriado. Por definição, a novidade, a invenção, não entram ainda em nenhuma célula, assim como escapa tudo o que se situa na parte inferior da curva de Gauss: não nos damos conta da ausência de um desconhecido, dizia Lindon de Beckett! Daí vem o transtorno dos departamentos de pesquisa e desenvolvimento que se dão conta de que não produzem nada a não ser um ciclo vicioso, auto-engendrado, de dados-processos-critérios. Os únicos bem remunerados, mas em pânico intelectual, a processualidade não permitindo jamais a saída da processualidade, eles mordem a própria cauda constatando que não têm nenhum alcance sobre o real. Eles não tem sequer os meios de se autorizarem a ter bom senso, a tomar as coisas por outro caminho, um bom caminho por exemplo. Procura-se bom senso desesperadamente: é a aquisição do quali como último recurso. O quali face ao quanti torna-se a boia de salvação que alguns se oferecem, como quem vai ao psicólogo, perdão: a um coach.

Por trás das tabelas não vemos senão aquilo que já sabemos, aquilo que está diante do nosso nariz, com o que colaboramos, mesmo se profundamente nós o tememos e não o queremos – porque nos tornamos todos, mais ou menos, neuróticos da tabela…Poderíamos acreditar que as tabelas, que emolduram e enquadram, são limites que favorecem a invenção, como a sintaxe e a gramática para a língua, a versificação e as estipulações rítmicas para a poesia e, ainda mais precisamente, como os topoi, aqueles “lugares” ou “lugares comuns” da retórica antiga que todo bom advogado ou mesmo todo cidadão digno desse nome deveria conhecer para ser bem sucedido. A imensa diferença é que as tabelas não toleram nenhum desvio: qualquer coisa ou qualquer um, um item, entra ou não em uma célula da tabela. A grade da tabela não é uma seleção que não compromete nada, é uma formatação que exclui tudo o que não cabe nela. Em compensação, os lugares são um reservatório de inventividade, uma disponibilização de recursos, de proposições das quais nos abastecemos para argumentar, que não apenas toleram, mas suscitam ajustes inéditos, encorajam a inventividade dos desvios e das surpresas em relação à norma das expectativas. No caso das tabelas, a atividade da linguagem é sufocada; com os topoi, ao contrário, ela é estimulada em sua força criativa, apoiada sobre o tesouro das possibilidades e dos poderes experimentados. E é exatamente de política, stricto sensu, que se trata. Os filósofos o repetem, de Aristóteles a Hannah Arendt, (e eu creio fortemente que seja verdade, quer dizer,  que é melhor acreditar nisso): se o homem é um animal mais políticos que os outros, abelhas ou formigas, é porque ele fala, porque é dotado de logos, linguagem e razão, faculdade relacional em todos os gêneros. É por isso que a retórica dos topoi é tão importante para juristas ou advogados: qual acusação será aceita, sob que princípio geral, sob qual “categoria” deve-se situar um caso? O jogo, o espaço de liberdade, é aqui de fundamental importância, essa amplitude que orienta o saber-fazer e o signo da competência. Para melhor medir a importância da fabricação do fato – aquilo que no mundo da retórica judiciária se chama de fictio juris, ficção do direito, portanto -, é preciso e é suficiente que se tome um exemplo real: essa mulher que roubou no supermercado, ao invés de ser condenada por roubo, foi beneficiada com um não-lugar porque a acusação, o estado de causa, diriam os antigos, finalmente aceita pelo juiz, mudou. Vocês agora o saberão, ela não fez senão assegurar seu direito de garantir a sobrevivência de seus filhos: estado de necessidade… [14]

Outros tipos de avaliação são possíveis? As pistas são escassas. Uma “avaliação formadora” por contraste a uma “avaliação formativa”? Uma avaliação pelos pares, que se ateria a “avaliar sem classificar” – a condição que não se classifique por conta própria apesar de nós, uma vez que haverá avaliação…? Algumas recomendações simples, de competências, de finalidades, de tempo, de palavra, de escuta, de “respeito”, como se diz por aí.

O mundo de itens no qual vivemos é o avatar mais recente da fetichização generalizada. Bataille notava que “uma dilapidação de energia é sempre o contrário de uma coisa, mas … ela só é levada em consideração colocada na ordem das coisas, transformada em coisa”. A energia do caso tornado coisa, última palavra de um sistema, digamos capitalista, cuja própria energia gira no vazio – ou no cheio, como preferirmos.

Notem que essa retificação combina muito bem com a desmaterialização e o digital, que permitem tratar os números e os fluxos. Talvez seja a última ilusão, e de todo modo a última competição pelo último prêmio : um humanismo numérico, humanidades numéricas. Muito dinheiro (só aí ainda existe!), porque a questão é controlar tudo o que, por essência e por vocação, escapa às tabelas. Numerizamos, então, drasticamente: numerizamos os corpus, os corpora, os corpos mortos. Muito útil para dominá-los, colocar-lhes questões, quase sempre, sumárias, às vezes sutis e obter respostas com aura de verdade científica. Não é falso que a massa crítica produza transições, torne visível fatos escondidos, faça surgir novas questões. É preciso reconhecer a importância da técnica, para não se deixar impor-devorar por ela e por aqueles que a conhecem. Mas é ferozmente claro que o big data e o data mining produzem, em primeiro lugar, o fechamento de um mundo vigiado, antes que se reinvente, talvez e se chegarmos lá, um novo mundo habitável, inclusive intelectualmente.

Do mesmo modo que a performance serve para avaliar o inavaliável, instam-nos a tabelar o intabelável, quer dizer, as humanidades. Conhecem a mais caricatural das declinações, que caga tudo? Designo-a: humanismo, humanidade, humanização. Vale a pena e custa caro. É a caricatura do que pode ser uma boa prática, mas porque a própria ideia de “boa prática” é a caricatura de uma prática boa. Uma das tabelas mais aterrorizantes: a da “humanização” – em que momento do fim da vida é preciso acariciar a mão de alguém que morre, falar em seu ouvido e quanto somos pagos para desenvolver o protocolo e depois usá-lo?

A margem é minúscula, tudo muda muito rápido. A boa intenção é sempre suficiente? Tomemos um exemplo de contenção. Trata-se de uma prática dura, cada vez mais frequente. Tentamos desenvolver protocolos, tabelas portanto, que indiquem o tempo e marquem a importância do gesto de enfermaria e do gesto médico. Decompor-tabelar para tentar, agora, não ir mais rápido sem esquecer de nada, qualquer que seja o caso, mas destacar o peso do gesto, desbanalizá-lo, colocá-lo em evidência como uma prática pesada. Servir-se disso não para ir mais rápido mas para ir mais devagar, não para diminuir o sentido, mas para levar à tomada de consciência, para extraí-lo de um quotidiano de uso corrente e reexibi-lo, reapresentá-lo como uma decisão difícil. A contrapelo.

O humanismo, que soava antigamente às minhas orelhas como uma velha ideologia de herdeiros duvidosos, filosófica e politicamente, tornou-se uma palavra de ordem de resistência. Não há mais outro lugar defensável, outra posição de recuo em um passado qualquer, é preciso trabalhar aí, e rápido, e juntos, para desenvolver novos modelos. Por enquanto e para mim, o mais longe das tabelas, mas o mais perto do que as humanidades digitais poderiam trazer de invenção, é preciso, é preciso: desenvolver todo tipo de modalidades do “entre”, com a tradução como melhor modelo prático, entidades não estabilizadas e redes de influência recíprocas, justamente não coisas fixas, corpus mortos, mais energeia e vitalidade de espantos simultâneos. Um multiculturalismo poliglota que complique o universal. Programa? Programa…

Seria preciso permanecer prisioneiro de classificações nas quais não acreditamos porque elas determinam os apoios que recebemos. Mas quem é o sujeito nisso? Há somente um sujeito no avião? Nós que não acreditamos, a França que não acredita, a Europa que não acredita, Shangai que não acredita? Por que não exercer nosso julgamento, começar a sair do círculo vicioso, iniciar uma linha virtuosa?

Mantenhamos firme a constatação, mas revertamos os efeitos: sim, os fatos-tabelados são uma ficção, a tabela que confunde previsão e predição é da ordem da profecia autorrealizável; sim, há performance, em todos os sentidos do termo, mas é justamente aí que podemos agir. Tomemos os efeitos a contrapelo, ao revés, servindo-nos de suas forças. Fabriquemos os fatos que nos convém. Tabelemo-os. Passemos conscientemente da performance (“ainda mais”, “mais um esforço”, segundo uma tabela que faz da qualidade um efeito da quantidade) à performance sob controle dos performers, motivados pelo mundo que querem ver: desenhemos com nossas tabelas, não mais atrás, mas dentro e fora, o mundo que queremos.

Falemos, façamos com que os tabeladores e os gradeadores conheçam as tabelas e as grades, os critérios, as categorias de julgamento que nos convém, fabriquemos para os administradores liberais a reflexão sobre as tabelas. A mínima modificação será massa crítica: como o índice de felicidade pública que modifica o PIB é um embrião de ironização adequado.

É uma maneira de fazer advir o mundo que se desenha – tomemos a performance pelos chifres, pela amplitude de seu sentido; não mais competição, mas performatividade. É nossa vez de jogar.

Governar é compreendê-lo e ajudar-nos nisso.

B.C.

[1] Obra coletiva com a contribuição de: Éric Alliez, Didier Bigo, Laura Bossi, Serge Bronstein, Fernanda Bruno, Catherine Caleca, Barbara Cassin, Julie Caupenne, Marie-José Del Volgo, Nathalie Georges-Lambrichs, Yves Gingras, Roland Gori, Jean-Jacques Gorog, Daphné Marnat, Christine Nicoulaud, Albert Ogien, Peter Osborne, Marie-Blanche Régnier, Claude Schauder, Christian Védie, Catherine Vidal (Paris, Mille et une Nuits, L’Appel des Appels, 2014).
[2] Expressão de Claude Shauder, proposta como alternativa ao título desta obra coletiva. *Nota das tradutoras: em francês, o título da obra é Derrière les grilles: sortons du tout-évaluation ou Por trás das tabelas: saiamos do tudo-avaliação. Vale, contudo, ressaltar que na língua francesa a palavra grille tem uma ambiguidade importante, pois significa tanto tabela quanto grade.
[3] Discurso de Nicolas Sarkozy na ocasião do lançamento da reflexão para uma estratégia nacional de pesquisa e de inovação, Eliseu, 22 de janeiro de 2009.
[4] Lembro alguns marcos: L’Appel des appels. Pour une insurrection des consciences, organizado por Roland Gori, Barbara Cassin, Christian Laval, Mille et une nuits, 2009; “L’idéologie de l’évaluation. La grande imposture”, Cités, 37, 2009; Alain Abelhauser, Roland Gori, Marie-Jean Sauret, La Folie Évaluation. Les nouvelles fabriques de la servitude. Mille et une nuits, 2011, e entre os mais recentes: Roland Gori, La Fabrique des imposteurs, Les liens qui libèrent; Angelique del Rey, La Tyrannie de l’évaluation, La Découverte, 2012; Albert Ogien, Désacraliser le chiffre dans l’évatuation du secteur public, éd. Quae, 2012; Recherche publique. Les années de destruction, dir. Chantal Pacteau, Syllepse, 2012.
[5] A autora refere-se à vitória de François Hollande (do Partido Socialista) sobre Nicolas Sarkozy (União por um movimento popular) nas eleições presidenciais de 2012 na França.
[6] Nota das tradutoras: o termo grego hybris significa desmedida, arrogância.
[7] Le Manifeste convivialiste. Déclaration d’interdépendence, Le Bord de l’eau, 2013. Manifesto Convivialista. Declaração de interdependência. Annablume, 2014.
[8] Nota das tradutoras: Primeiro ministro do Partido Socialista francês entre 1997 e 2002.
[9] Nota das tradutoras: Neologismo que conjuga competição e cooperação, ou uma competição cooperativa.
[10] Filme de Chris Marker, 1962.
[11] N.T. se utiliza em francês para descrever uma ação que vai acontecendo no futuro, mas que se descreve como ação concluída.
[12] N.T.: Publique ou pereça.
[13] N.T.: Literalmente, curto e sujo. Expressão que designa a baixa qualidade da publicação, algo como “Publique qualquer porcaria”.
[14] Julgamento que teve lugar em Poitiers, 5 de fevereiro de 1997, pelo juiz Laurence Noël

“Os antropólogos contam tudo errado! Nós somos as autoras das nossas falas.”

Entrevista com Nelly Duarte (Marubo) e Sandra Benites (Guarani)

Nelly Duarte: “Sou Marubo, nasci na aldeia Posto Indígena Curuçá, no vale do rio Javari, Amazonas. Surgi dos meus pais, Ranẽ Tupanë e Tamã Shëta. Cursei Bacharelado em Antropologia na Universidade Federal do Amazonas e hoje sou aluna do curso mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ. Moro em Icaraí – Niterói/RJ”.

Sandra Benites: “Nasci na aldeia Porto Lindo, no Mato Grosso do Sul, onde aprendi a ler e escrever. Já casada fui morar no Espírito Santo e cursei o Magistério Indígena na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Hoje moro no Rio e, em março de 2016, começo o curso de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ”.

Nelly

Sou neta de João Tuxaua, liderança Marubo, considerado um ser especial entre seu povo. Desde que comecei a estudar, a família me cobrou muito para eu ocupar esse lugar de liderança. Quando ingressei na universidade para estudar antropologia, as mulheres da aldeia souberam disso me pediram ajuda.  A queixa principal das mulheres é a de que seus filhos e filhas não têm mais tempo para ouvi-las.  Para nós, a forma de educar as crianças é sentar com a filha e com o filho, conversar, chamar a atenção do pai para que haja uma conversa entre pai e filho, conversar com as avós e os avôs. Esse momento de ruptura de comunicação com os filhos está sendo um impacto. Isso vem do vício de entrar numa sociedade não-indígena. Os mais novos ficam focados na televisão, no celular, e nesse entra-e-sai da aldeia para a cidade para receber os benefícios do governo (Bolsa família, auxílio maternidade etc).

Ainda pequena, meu pai me mandou estudar na cidade com os padres. Para ele, bastava eu aprender a ler e escrever, depois me tornaria uma professora ou assistente de enfermagem na aldeia. Não estava previsto que eu entrasse na universidade. Sempre que eu voltava nas férias para a aldeia, tinha que contar tudo o que eu tinha feito na escola, relatar toda a minha experiência do ano. Até uma música que eu tinha ouvido na cidade, meu pai pedia para eu cantar na frente de todo mundo. Ele adorava me expor na frente das pessoas. Isso me frustrava e me envergonhava, mas ele queria que eu tivesse desde pequena um espírito de liderança (kakashavo, em língua Marubo). Ele queria que eu fosse uma liderança porque ele não teve filho homem. Como eu era quem estava aprendendo a situação de duas sociedades, para ele, eu seria uma porta-voz. Aí, comecei a sentir que na minha família não poderia viver normalmente, assim como na outra sociedade também não. Eu ficava me perguntando o tempo todo quem eu era. Depois, sai do convento e terminei meu ensino médio em Manaus. Dei um tempo sozinha, por uns dois anos. Queria me sentir sem pressão.

E o que você fez nesses dois anos?

Fiz curso de administração e trabalhei na empresa Panasonic, da Zona Franca, com japoneses. Me sentia tão livre…Ninguém me cobrava nada, era só eu, não falava quem eu era para ninguém. Aí recebi uma proposta para trabalhar em uma organização indígena. Quando cheguei, uma liderança queria que eu fosse dele. Para trabalhar lá, eu teria que ser dele. Foi um momento de crise: ao mesmo tempo eu queria entrar ali e fazer com que meus pais me vissem como liderança, mas também não queria ter de ficar com um homem de quem não gostava. Acabei me afastando de lá, e ele começou a falar mal de mim. Foi uma situação chata. Eu queria me afastar, mas ao mesmo tempo queria provar que era igual a ele, que não precisava virar mulher dele para ser importante. 

Aí, apareceu em Manaus um curso de Antropologia Aplicada, através do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) [1]. Teria gostado de fazer, mas aquela liderança tinha que me dar uma declaração. Resolvi pedir para ele, ele deu, mas logo depois fingiu que não sabia de nada, não pagou minha matrícula e ainda falou um monte de coisas absurdas para minha família.

Acabei ficando doente. Peguei tuberculose e fiquei 3 meses sem ver ninguém no hospital. Nesse tempo também perdi meus dois irmãos que morreram de hepatite delta [2]. Comprei casa na cidade e acolhi meus pais que estavam sem condições emocionais e mesmo materiais para viver porque os dois filhos tinham morrido (uma menina de 14 anos e uma menino de 10 anos). Eles entraram em depressão e virei mãe e pai dos meus próprios pais. Como eles não sabiam viver na cidade, acabei sendo aquela que resolvia tudo.

Aí comecei a trabalhar com os Maristas que davam palestras nas escolas e entrei na faculdade, em Benjamin Constant, na Universidade Federal do Amazonas. Escolhi estudar Antropologia. A antropologia me chamava a atenção porque queria conhecer a realidade do Outro, afinal nasci e cresci vendo antropólogos transitando ali, então afinal, “qual era a curiosidade que trazia um antropólogo ali, qual era o interesse dele em conhecer meu povo, e para quê isso ?” Já que os antropólogos estudam indígenas, eu queria estudar antropólogos.

Foi quando minha mãe teve a terceira recaída de câncer, aí tive que cuidar dela mesmo fazendo curso. Mas consegui finalizar. Nesses tempos, conheci as mulheres Marubo da aldeia Boa Vista, do Rio Ituí (AM). Elas trabalham com artesanato, e disseram que ninguém mais estava aprendendo sobre isso. Eu trabalhava na FUNAI de manhã e ia depois para o curso, um dia cheguei em casa à noite e as mulheres estavam lá. Queriam falar comigo. Me deu vontade de fugir. Pediram a minha ajuda : “Os antropólogos contam tudo errado ! Nós somos as autoras das nossas falas, e queremos que você conte do jeito que a gente contar para você. E que você coloque isso no papel” Esse pedido das mulheres foi mais forte. Tentei fugir porque essa cobrança era tão forte quanto as cobranças da minha família e as conversas eram sempre bem emotivas: “ estamos morrendo, já estamos acabando e você não pode fugir, seu avô foi responsável pelo povo, você tem que ter essa responsabilidade também”.

As mulheres querem ter voz através de você, que seus ensinamentos ganhem o mundo …

A tradição sempre dá a voz ao homem. O homem tem que estar na reunião, tem que falar em pé, as mais velhas tentam ter voz, mas a mulher mais nova não tem esse momento. Ela acha que tudo o que ela vai falar, o txai vai rir ou alguém vai esnobar. Engraçado que segundo um dos meus parentes homem, as mulheres não prestam para dar informação, tem um machismo incorporado aí. Quando eu trouxe as mulheres para o Museu do Índio aqui, para a Oficina de Miçangas, ele disse: “Para quê que você leva as mulheres? Elas vão morrer no caminho, não vão aguentar”. Mas vejo que as mulheres Marubo querem contar. Claro que cada uma tem uma forma de contar história, não há uma história verdadeira, é sempre “a história que minha mãe me contou”, “a história que minha avó me contou”, mas para alguns homens, só a história deles é a verdadeira.

(Agora Sandra chegou e entrou na conversa).

Sandra, você nos disse que nos Guarani e Kaiowá as mulheres têm voz sim.

Elas têm voz, mas só se impõem quando ficam mais velhas. Quando muito novas, não conseguem ter voz, são muito quietas. Minha luta para ter voz foi longa; sou um pouco mal vista, dizem que peguei a cultura do branco porque falo muito. Quando novas só levantamos e falamos com apoio dos nossos pais, maridos, irmãos. É assim que a gente vai assumindo papel de liderança, nós nos acostumamos falando, alguns não concordam, mas a família é importante nessa construção de mulher, para pegar esse poder e caminhar nesse papel de liderança.

Na cultura Guarani é muito importante ter um primeiro filho homem, mas quando é uma menina, ela passar a ocupar esse lugar, faz trabalho de homem, sempre com apoio dos pais, dos irmãos, dos filhos. Foi o que aconteceu comigo. Nasci no Mato Grosso do Sul, e sou filha mais velha.

Aprendi a ler e escrever numa escola dos não-índios, onde eu era obrigada a ler e escrever na língua portuguesa. Minha avó era quem me passava todos os ensinamentos de como eu tinha que me comportar. Tudo do costume Guarani eu devo a ela. Minha avó falava sempre que a gente tem que falar, que não podemos ficar com medo. É o que me encoraja a não ter medo. E, quando eu tinha uns 10-11 anos, lembro que meu pai me levava para pescar, caçar, eu ia junto por ser a mais velha. Geralmente, as mulheres Guarani têm muito medo de sair, são dependentes dos homens. Sou diferente por conta do meu pai que sempre dizia: “não tenha medo de levantar e caminhar”.

Em 2000, já casada, fui para o Espírito Santo. Meu sonho era ser enfermeira e comecei a trabalhar como agente comunitária de saúde. Naquele tempo, algumas mulheres da aldeia não queriam ter mais filhos. Surgiu uma polêmica. Como eu era agente de saúde, elas confiavam em mim. Um dia, eu disse que não queria ter mais filhos, e lá não tinha mais remédio natural. Fui pedir para um médico da FUNASA (Fundação Nacional de Saúde) para que me desse um anticoncepcional. Ele se recusou e disse que a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) proibia. Eu pensei, não tenho medo, vou até o fim, se eu tiver filho não vou poder continuar estudando porque já tenho quatro. Eu tinha uns 28 anos. Fui para a FUNAI, a chefe do posto era mulher também e perguntei : “por que a FUNAI proibiu as mulheres indígenas de tomar anticoncepcional?”. Eu disse que iria pedir remédio tradicional para a minha mãe e que queria resolver isso o mais rápido possível. Ela falou que era a comunidade que tinha proibido, não a FUNAI.  Aí, fui numa reunião e falei com a comunidade, com os caciques. O cacique me deu uma bronca e disse que qualquer coisa que desse errado na minha saúde eu teria que assumir. Andei nas casas e as mulheres falavam: “ah… você teve coragem de falar, eu também quero tomar isso!”. Falei com o médico e ele me deu a receita, e consegui o remédio depois. A mulherada foi pegando e tomando. Na verdade, foi uma luta, não foi fácil. Fui bastante criticada por isso. Agora isso foi liberado, até a esposa do cacique está tomando a pílula para evitar ter filhos!

Aí apareceu uma bolsa exclusiva para agentes indígenas de saúde, para formar técnicos de enfermagem, mas exigiam ensino fundamental completo. Decidi voltar a estudar, mesmo tendo um filho pequeno, de 2 anos, e terminei o ensino fundamental, o supletivo. A aldeia não exigiu nada, comecei a trabalhar grávida, carregava meu filho, quando eu estava terminando, em 2003, apareceu o magistério. Falei com o cacique, deixei minha vaga na saúde para outra pessoa, e fui fazer magistério. Terminei em 2010 e fui fazer a Licenciatura Intercultural em Santa Catarina. Passei na prova e foi bem legal. A grande maioria dos alunos eram homens. Muitas mulheres desistiram do curso, mas só duas Guarani desistiram. Eram 40 Guarani no total, das quais umas 15 eram mulheres. Ficaram 13 no final.

Como você chegou aqui para fazer mestrado ?

O desentendimento com meu marido me trouxe para cá. Hoje, sou meio que mal vista na comunidade, como se eu tivesse abandonado minha família para fazer o que eu quero. Mas estou tranquila comigo. Sempre volto lá, apesar de que meu ex-marido não aceita muito isso, mas falei para ele que vai ser pior para ele se ele não aceitar, porque não volto nunca mais. Minha avó sempre dizia: “os filhos que a gente cria, crescem e seguem outro rumo, depois ficamos sozinhas”. Temos que fazer o que queremos também, sentir que nossa missão foi cumprida. Já estou cumprindo a minha.

Nelly, como se sente de estar aqui estudando ?

Hoje, estou um pouco sem chão com a morte de minha mãe. Mesmo que meu pai tenha ficado com a responsabilidade de me contar as histórias, ele não tem muita paciência para explicar. Agora vou reaprender a viver com a ausência dela. Ela sempre dizia: “você vai ter que aceitar as histórias do jeito que elas são contadas. Não há história verdadeira. Seus tios dizem isso, mas ser o pajé, não significa ser o dono da história. Você tem que valorizar como se produz a situação, e qual é o vínculo da pessoa com a história e com o que está produzindo.”

Quase desisti do mestrado, mas antes de morrer minha mãe segurou na minha mão e disse: “Estou morrendo, mas você não vai desistir. Ficarei muito triste se você não continuar. Quero que você mostre para o seu pai que você não precisou ser homem para ser uma liderança.” Então eu vim, e é por ela que estou aqui.

Sandra, que mensagem você deixa para as jovens gerações de mulheres indígenas?

Hoje, as mulheres têm voz, mas elas precisam se impor sem medo. Aos poucos, os homens vão vendo e vão apoiando, eu tive essa oportunidade. Quando comecei a falar, começaram a olhar para mim e foram me dando respeito. Hoje, muitos jovens me pedem conselhos, inclusive meninos. As mulheres Guarani, de modo geral, precisam se impor muito para que os homens ouçam. Precisam tomar atitude e tomar a frente, perder o medo de caminhar, de estudar. Não podemos ficar quietas. Peçam conselho para as mais velhas, para as mais novas, e para os homens também. Temos que caminhar, temos que falar. Criem coragem, e falem!

[1] O Conselho Indigenista Missionário é um organismo vinculado à Confederação Nacional dos Bispos (CNBB) que atua em defesa dos povos indígenas e de seus direitos.
[2] A hepatite delta (HVD) é um vírus que depende da prévia incidência da hepatite B para infectar uma pessoa. A região amazônica do vale do rio Javari (AM) vem apresentando taxas de mortalidade altíssimas entre indígenas por contaminação por HVD.