Salve! Lançamos ao mundo o dossiê Vibrações do Inaudível.
Inaudível é tudo aquilo que são se pode e nem se consegue ouvir.
O inaudível desmantela um sentido único da escuta: aquele que reproduz apenas atualizações da tradição iluminista e universal; essencializando e compartimentalizando as experiências e percepções do/no mundo vivido.
As Vibrações do Inaudível apostam num movimento de contra-audição na medida em que interpela os modelos canônicos de expressões artísticas a partir de inúmeras experiências de manifestações racializadas-genderizadas. Só é possível ouvi-las se entendermos que o mundo como nós o conhecemos está acabado, como tão bem coloca Denise Ferreira da Silva na entrevista que abre esta edição. Sobre/sob suas ruínas coloniais, corpas-subjetividades conjuram um tempo-passado-presente e anunciam – se há – possibilidades de um outro porvir.
Esse número da DR nasce nessa aposta. Foi um longo processo de escuta e elaboração até chegarmos a um resultado que nos convoca a alegria da partilha, e entre a demora da feitura e a urgência das palavras, a revista ganhou em densidade, porque nosso desejo sempre foi deitar nas esquinas entre palavras e silêncios, ruídos e murmúrios, sem a suposição de que tudo precisa ser revelado. Essa também é outra aposta das Vibrações do inaudível: escutar murmúrios, polir silêncios, afinar ruídos mantendo firme a ginga e a mandinga de nem tudo revelar. Vibrações do Inaudível habita o segredo como estratégia de guerrilhas, de levantes e de conjurações. Aprendemos a não dar tudo porque o roubo, a pilhagem e o extrativismo nunca deixou de nos assombrar e nos perseguir.
Os textos que compõem as Vibrações do Inaudível tratam de arte, mas não se resumem à crítica nem a elaborações conceituais a partir de vivências em primeira pessoa, ampliando expectativas biográficas. Arquitetam exercícios de imaginação que atravessam a fábula e escorrem em direção à política. Se sustentam uns nos outros e convergem na tarefa de escapar de um tempo que tem nos obrigado a repetir indefinidamente a validação de nossas vidas e a buscar unicamente a afirmação das qualidades da uma diferença cultural, e consequentemente racial.
Nesse percurso, a fuga dos binarismos e essencialismos é uma das tônicas, trazendo experiências de racialidade, gendrificação e territorialidades que só se corporificam porque estão abertas às multiplicidades. Os textos também não se sustentam na denúncia pela denúncia, na constatação da desvalorização de alguns modos de vidas e na percepção do racismo e da lgbtfobia, mas explodem essas assertivas a partir da força em se colocar frente à brutalidade e à violência racial.
E, se por um lado, o grito de que nossas vidas importam é imprescindível, há ainda muitos outros caminhos inadiáveis. Para esses, é preciso escutar conversas subterrâneas; lá diremos coisas que jamais serão erguidas em monumento, por pessoas que não almejam que seus nomes sejam escritos em placas.
No dossiê Vibrações do inaudível as autoras se dedicaram a tratar de coisas preciosas e delicadas, que você já deve ter ouvido falar em sonhos ou pressentiu quando posicionou seu corpo em alguma esquina. O onírico imanente e vivido é convocado. Como nos diz Conceição Evaristo em “ Histórias de leves enganos e parecenças”: “ (…) Muitas vezes ouço falas de quem não vejo nem o corpo. Nada me surpreende do invisível que colho. Sei que a vida não pode ser vista só a olho nu. De muitas histórias já sei, pois vieram das entranhas do meu povo. O que está guardado na minha gente, em mim dorme um leve sono. E basta apenas um breve estalar de dedos, paras as incontidas águas da memória jorrarem os dias de ontem sobre os dias de hoje”.
No jorro de uma memória cindida, mas reivindicada habitam estes textos.
Afinal, quais são as perguntas que, nas trapaças de responder a restauração do mundo, deixamos de fazer? Que processos de coalizão e transmutação paramos de operar quando respondemos ao mundo deles? Quando paramos de observar o trabalho político de nossa imaginação e quais são os caminhos para ativar a coalizão entre as pessoas e os rios e as cidades, e os bichos de toda ordem e espécie?
Agradecemos imensamente a cada colaboradora, pela generosidade e paciência. Vibrações do Inaudível está comprometida com a continuidade dos caminhos mais subterrâneos do nosso pensamento, aqueles que força nenhuma nos impedirá de percorrer. Essa é uma tarefa para uma vida inteira, para uma inteira vida.