Dossiê: Vibrações do Inaudível

Um fim para “este” mundo: entrevista de Denise Ferreira da Silva na revista Texte Zur Kunst

Entrevista de Denise Ferreira da Silva por Susanne Leeb e Kerstion Stakemeier.  

Em seus textos, palestras-performances e colaborações cinematográficas, Denise Ferreira da Silva se opôs a figuras de pensamento e modos de ação que são continuamente autorizados pela genealogia do Iluminismo e do pensamento moderno ocidental, dando sequência à sua constituição.

Essa tradição ocupa uma posição de norma dominante, apesar de existir uma genealogia crítica igualmente forte, que delineia o tipo de violência sistêmica por ela configurada a partir das teorias e de uma política pós-colonial e descolonizadora (não só) para o discurso sobre a arte e (suas) teorias do presente.

Como Ferreira da Silva argumenta, essa tradição tem sido essencial para a subjugação racial dos povos indígenas e dos/as negros/as. Ela serviu como pré-condição para a escravidão e o colonialismo, levando à continuidade da violência racial. Ainda hoje, após décadas de resistência, o mundo é testemunha de injustiças extremas e da produção de “no-bodies” [1], como diz Ferreira da Silva – um termo que se distingue da noção de “vida nua” proposta por Giorgio Agamben. 

Em Toward a Global Idea of Race [2], de 2007, é, a autora argumenta que é o “eu transparente” da subjetividade iluminista que se vê hoje sob ataque. Embora esse “eu transparente” tenha sido criticado, especialmente nas filosofias continentais e escritos feministas ao longo do século XX, a autora afirma que essas críticas dificilmente tocaram a função sistêmica que esse conceito carrega para a subjugação racial, permanecendo, assim, insuficientemente radicais na produção das suas recusas.

Além de oferecer, em sua escrita, uma visão macropolítica para uma filosofia política voltada à negação radical do universalismo, recentemente, Ferreira da Silva voltou sua atenção para a arte e a estética, concentrando-se especificamente no que ela chama de uma “poética feminista negra”: a questão sobre o papel que a performance e a poesia podem assumir na tarefa monumental de pôr um “fim a este mundo”, como ela escreve, aludindo a Frantz Fanon e outros, e de como superar a racialização, uma preocupação que permanece no centro de todos esses esforços. 

Ao perseguir esse objetivo, ela colaborou com inúmeros curadores e artistas, tais como Natasha Ginwala, Arjuna Neuman, Valentina Desideri, Rachel O’Reilly, Wendelien van Oldenborgh, Susanne M. Winterling e Madiha Sikander. À luz da mais recente edição de Texte zur Kunst, dedicada a investigações sobre discriminação e racismo no campo da arte contemporânea, a posição de Ferreira da Silva é mais relevante do que nunca. 

Em particular, duas de suas preocupações centrais se destacam: uma rejeição da noção de crítica e a formulação de uma possível posição além da crítica que subverte as linhagens epistêmicas das filosofias continentais; e uma “poética” contemporânea, isto é, uma prática estético-artística que visa romper as estratégias políticas modernas de subjetivação racial. A Professora Ferreira da Silva explica estas e outras questões numa conversa com os historiadores/críticos de arte Kerstin Stakemeier e Susanne Leeb.

Kerstin Stakemeier e Susanne Leeb: Quero iniciar a nossa entrevista considerando as ramificações filosóficas, poéticas e artísticas de seu trabalho. Daí, perguntamos: Em sua escrita, você problematiza a “crítica racial” como algo que faz pouco mais do que diagnosticar a desvalorização. Até onde compreendemos, sua principal oposição aqui seria o fato da crítica racial permanecer profundamente enredada nas reivindicações universalistas de verdade que caracterizaram a modernidade européia?

Denise Ferreira da Silva: Ao comentar sobre a crítica racial, tenho em mente um tipo de engajamento modulado a partir da formulação que Immanuel Kant propôs para a crítica, que é descrita como a exposição sistemática e a avaliação das condições de possibilidade para X; isto é, de seus fundamentos e limites. Desde Descartes, e, definitivamente, de Kant em diante, esse procedimento analítico específico sustentou a afirmação de que a mente racional (reduzida à compreensão) tem acesso às leis universais da natureza porque compartilha sua constituição formal.

Esse pressuposto também é compartilhado pelo tipo de crítica racial que se detém no diagnóstico da desvalorização das populações humanas construídas como não-brancas/não-européias. Na pior das hipóteses, apresenta essa desvalorização como um efeito de crenças ou ideologias e, como tal, um desvio dos princípios universais (morais) que supostamente governam a existência moderna; na melhor das hipóteses, ela apresenta a desvalorização como constitutiva do pensamento moderno, mas depois passa para um argumento baseado na idéia de incompletude (que a universalidade ainda precisa ser realizada) ou equívoco (que um particular foi erroneamente tomado para o universal). Em ambos os casos, a universalidade é mantida como uma descrição apropriada do programa ético moderno.

Na medida em que os engajamentos críticos contemporâneos – seja da Escola de Frankfurt, do pós-estruturalismo ou do marxismo – se detenham à forma e tomem emprestado o formato da crítica kantiana, eles reproduzirão dois movimentos que foram mapeados por Sylvia Wynter. O primeiro é o que Wynter chama de secularização da racionalidade, e, o segundo, a representação do humano por meio das operações da seleção natural.

KS/SL: Você poderia dar um exemplo desses dois movimentos?

DFdS: O primeiro tipo de crítica racial que mencionei em meu livro Toward a Global Idea of Race é exemplificado pela concepção “discriminação racial”. Essa ferramenta da sociologia das relações raciais prevalente nos EUA nas décadas de 1940/50 e 60, capta um aspecto da subjugação racial que está no tratamento diferenciado e leva em consideração o fato de que a pessoa e o grupo discriminados estão impedidos de acessar as políticas públicas existentes. Basicamente, a tese por trás da noção de discriminação racial é que ela resulta da ignorância em relação à situação de subalternidade racial e de uma falta de iluminação. Como diz a teoria, uma vez que toda a população americana aprendesse mais sobre a vida dos negros e fosse educada nos princípios de liberdade e igualdade universais da sociedade, a discriminação desapareceria e a universalidade, tanto no nível das idéias quanto no do funcionamento social, seria plena nos Estados Unidos.

O conceito de racismo, por sua vez, exemplifica a segunda crítica. A literatura é extensa e variada e a tarefa é complicada pelo fato de que o racismo é um conceito elaborado em teorias tão sofisticadas quanto distintas como As origens do totalitarismo de Hannah Arendt, Internal Colonialism de Robert Blauner e o artigo de Stuart Hall, Race, articulation and societies structured in dominance. As origens do racismo remontam à Europa e a um tempo anterior à modernidade sendo o seu funcionamento no período pós-iluminista geralmente visto como resultado de um realinhamento do estado, do capital ou de grupos de interesse (Oliver C. Cox, Michel Foucault e Aníbal Quijano). 

Em menor grau, a tarefa é dificultada pela tendência mais geral, por parte dos estudiosos críticos, de empregar racismo como descritor de fenômenos sociais que podem ser explicados por outros conceitos cabíveis, como de classe ou ideologia, por exemplo. Deixe-me apenas dizer que até hoje a melhor articulação de uma análise da subjugação racial – sob o conceito de racismo – é o marxismo negro [3] de Cedric Robinson, precisamente porque ele se recusa a explicar a subjugação racial como uma subvenção à exploração de classe. De maneira notável, embora sua análise localize a origem da noção de raça na Europa pré-moderna, o que seu rastreamento do funcionamento da raça no capital industrial e mercantil fornece é o delineamento do que ele chama de Tradição Radical Negra. Assim como o pensamento de Frantz Fanon, W. E. B. Dubois’s, Hortense Spillers, Saidiya Hartman, Robin Kelley’s, Nahum D. Chandler’s e Fred Moten, o pensamento de Cedric Robinson exemplifica a própria tradição que ele mapeou, com uma espécie de crítica racial que não reproduz a redução mencionada acima.

KS/SL: Onde você vê as diferenças mais fundamentais de uma abordagem reducionista?

DFdS: Inserindo em primeiro plano a violência racial (e não a discriminação racial ou exclusão racial), todos esses trabalhos expõem – de diferentes maneiras, é claro – que os princípios de igualdade universal e liberdade universal não são os fundamentos para a existência moderna, mas que de fato, sua circulação depende do desdobramento da diferença racial e da diferença cultural, a fim de delinear o domínio ético adequado à aplicação dos princípios universais sob os quais prevalecem as formas jurídicas coloniais de violência total. Leia-se, por exemplo, a declaração de Fanon no primeiro capítulo de Os Condenados da Terra [4] (e recomendo a tradução de Constance Farrington na década de 1960; a nova tradução é tenebrosa) sobre a falta de um momento ideológico para a dominação no contexto colonial, sendo o poder, desde então, exercido apenas pelas armas da polícia e do exército, sem as palavras ou as idéias do sacerdote ou do professor.

KS/SL: Como a arte é, tanto quanto a crítica, prejudicada pelas limitações que você acabou de descrever na “crítica racial”? Onde – se em algum lugar – você vê figuras alternativas de radicalização estética para a arte contemporânea e práticas estéticas?

DFdS: Eu não posso responder a primeira parte desta questão porque ela não funciona assim. Não funciona porque, como tentei dizer em minha resposta anterior, a crítica racial é apenas uma variação de um tipo de engajamento – isto é, crítica – como foi formulado por Kant, mas também por Marx. Em todo caso, porque a crítica parece ser tudo que temos, ela obviamente informa qualquer obra de arte que explicitamente trate da violência colonial e racial do passado ou contemporânea; dos modos atuais de exploração, expropriação e extração do capital global; do trabalho que o Estado realiza pelo capital global; do funcionamento do cis-heteropatriarcado. Não faz sentido esperar o contrário.

Ao mesmo tempo, acho que algo mais acontece quando a criticidade vem do trabalho criativo, quando a imaginação persegue os fins da crítica. No entanto, acho que para obtê-lo, talvez tenhamos que liberar a obra de arte das garras da compreensão (que é a faculdade mental à qual a criticalidade é atribuída) e permitir que ela siga a imaginação – aliás, meu “nós” se refere ao artista, o crítico e o público.

KS/SL: Você ataca especificamente a ideia de um “sujeito transparente” na modernidade Ocidental, mas também menciona a crítica dessa noção do sujeito como constitutiva de grande parte da filosofia continental ao longo do século XX. Michel Foucault ou Monique Wittig, entre muitos outros, não parecem localizar-se fora da relação pensada por Fred Moten na conferência intitulada “Blackness and Nonperformance”: “The subject who was never here, cannot then disappear, it can only haunt.” [5]

DFdS: Absolutamente. Embora eu possa localizar o que estou tentando fazer numa linha de interrogação que passa pela teorização sociológica e antropológica clássica, assim como a psicanálise e a linguística, estou muito mais interessada em entender como o contexto colonial (jurídico e econômico) foi em grande parte responsável por assombrar (o pensamento moderno); e continua a assombrar todas as tentativas de delinear o sujeito desde o século XVI. Pois esta é a única razão pela qual o sujeito pode ser articulado como tal, isto é, o sujeito nunca poderia “pousar” e estar lá, pois se ele estivesse “lá” ele não seria transparente (autodeterminado e autoconsciente).

KS/SL: Partindo, mas também diferindo dos escritos feministas franceses, você afirma que sua crítica da autoconsciência “privilegia a exterioridade como um momento determinante na significação”. Você poderia elaborar um pouco mais sobre a ideia de exterioridade?

DFdS: Eu rapidamente percebi que o meu estudo das noções de raça e nação tinha me levado além dos textos sociológicos e antropológicos, nos quais eu achava que encontraria tudo o que fosse necessário para a montagem do conceito nos séculos XIX e XX. Nesses textos que li por reunir os discursos nacionais dos EUA e do Brasil – publicados entre 1875 e o final da década de 1940 – muitas (se não a maioria) das vezes esses dois termos (raça e nação) foram empregados como se fossem intercambiáveis. Eu digo como se fossem, porque houve, é claro, uma diferença em termos do modo de endereçamento; isto é, nação geralmente aparece em autodescrições e convocações à ação unificada, enquanto a raça aparecia em comparações e tentativas de fazer distinções. No caso dos Estados Unidos, a comparação foi para a Inglaterra, claro, enquanto o Brasil, por outro lado, foi comparado aos Estados Unidos. Agora, esses dois usos desses conceitos naquele momento, como sabemos, foram colapsados ​​no discurso nacional-socialista alemão, no qual a representação oficial (estado) da nação foi baseado na “pureza”. Esta última é apoiada pela noção de diferença racial; isto é, não evoca primariamente um passado comum e um futuro comum, mas um território exclusivo e um corpo único. Isso significa que a diferença racial permite a articulação da exterioridade em uma espécie de texto – que chamo de texto nacional – que solicita a posição formal de interioridade. Por essa razão, no esforço para dar sentido a esses modos de endereçamento e sua efetividade, tanto quando articulados separadamente quanto se em conjunto, eu tive que me mover “para trás” da ciência do século XIX sobre a construção do corpo do homem como um conceito biológico para a “ciência da vida” de George Cuvier, a fim de descobrir como o próprio biológico foi construído.

O que encontrei, entre outras coisas, é que a exterioridade que a versão racial do século XIX transmitiu foi crucial para o pensamento moderno o tempo todo – porque apoiou sua reivindicação de capturar a verdade de todas as coisas no mundo. Mas foi somente no período pós-iluminista que foi possível produzir uma formulação científica da diferença racial, que desdobrou essa diferença (exterioridade) nos escritos do homem/o humano sem violar o atributo (autodeterminação) que sustenta a alegação de que este último ocupa uma posição única no mundo.

KS/SL: De acordo com Fanon e, mais recentemente, escritores como Frank B. Wilderson III, você defende um “fim para este mundo”. Para alguém como Wilderson, a poesia como um modo de linguagem escrita se torna uma práxis para um reposicionamento radical. Para Saidiya Hartman, a literatura ocupa um papel semelhante. O que é para você um meio de “finalização” ou uma prática artística de “finalização” distinta, digamos, da desconstrução?

DFdS: Eu acho que o ponto chave aqui é se o “fim”, que é a única coisa razoável que se pode fazer desse mundo capitalista racial, deve acontecer dentro ou fora de algo e se esse algo que é retido é novo ou parte deste mundo.

Para Fanon, o homem/humano é aquilo que seria feito de novo após a descolonização, e para Wilderson e Hartman a linguagem e a literatura poderiam ter o mesmo papel, isto é, daquele “algo”.

Estou muito preocupada com a possibilidade de não conseguirmos parar o fim deste mundo onde existimos; estou preocupada com a demolição de estruturas democráticas que, apesar de limitadas e perversas, forneceram pelo menos uma âncora para reivindicações de justiça social e global (de populações indígenas, migrantes, LGBTI *, não-brancas em todos os lugares) e poderiam (às vezes) limitar a violência total; estou preocupada que os insetos e outras espécies estejam se extinguindo, que os rios estejam secando, que os oceanos estejam sendo sufocados por plástico, que o fracking [6] esteja destruindo e ameaçando contaminar grandes áreas de água subterrânea. Esta é uma longa lista. No entanto, estou investido – porque não vejo como poderemos existir de outra maneira – no fim do mundo como o conhecemos.

Este novo mundo terá que ser reconstruído e recuperado da destruição causada pelas ferramentas e mecanismos extrativos do capital global.

KS/SL: Onde neste final você coloca arte e filosofia?

DFdS: Se o poder está em toda parte, basicamente porque é (como) tudo, tal qual afirma Foucault, então, essa tarefa de finalização só pode acontecer, e deverá acontecer necessariamente, dentro e contra as estruturas institucionais e monetárias da arte, da universidade e (ouso dizer) da mídia social. Além das grandes revoltas e rebeliões que conhecemos dos livros de história, as formas de finalização [do mundo como nós o conhecemos] também incluem revoltas menores, momentos, gestos de recusa e refúgio. Ou seja, não vejo por que, como a universidade, a arte contemporânea não pode ser também um lugar de estudo da negritude nos termos propostos por Moten e Harney e praticada pelo feminismo negro.

KS/SL: Em seu texto Toward a Black feminist Poethics [7], você escreve que uma leitura poética feminista negra pensa a relação entre a obra de arte e o arsenal de racialidade que a acompanha, mas também considera como a obra conectada a este tipo de reflexão recusa tornar-se, simplesmente, um objeto de “antropologia empírica”. O que exatamente você quer dizer com “antropologia empírica”?

DFdS: Não há resposta curta. Mas deixe-me dizer desde o início que minha preocupação é com o artista, em particular; com a forma como, de maneira muito similar aos acadêmicos (e eu estou me incluindo aqui), o trabalho dos artistas negros é mediado pela noção antropológica de diferença cultural. Quando comparada com o início do século 20, uma grande diferença é que, por um lado, o foco é menos nas formas, materiais, etc. do que na artista, enquanto, por outro lado, há também uma ênfase na extração, na expropriação e na opressão. Isso é muito importante politicamente. Infelizmente, no entanto, a força radical desse duplo movimento corre sempre o risco de se dissipar sob a pressão da lógica de mercado que prevalece em toda parte – uma lógica que exige muito, inclusive simplificação.

Há muitas conseqüências disso, incluindo o recurso aos tropos familiares de representação, que não só já são antropológicos, mas também acabam confirmando essa base. Por exemplo, houve algumas ocasiões em que experimentei ou testemunhei outras pessoas forçadas a terem que resistir a ser tratadas como “informantes nativas” (para usar o termo adequado de Spivak), mesmo quando o que elas estavam articulando era uma análise dessa mesma condição. Ou seja, sua resposta crítica ao tratamento como “informantes nativos” foi tomada como uma expressão “autêntica” de sua experiência “nativa”/diferente. A propósito, essas ocasiões não eram muito distintas das que me encontrei como acadêmica. Estes são tempos perigosos. Acho que há o perigo de perder a oportunidade de aproveitar as aberturas radicais que a arte pode engendrar. Esta pode parecer uma afirmação ingênua. Não é. Nos anos 1980, por intermédio dos movimentos sociais e com o apoio de idéias apresentadas por alguns filósofos europeus, acadêmicos das ciências sociais e humanas anunciaram a chegada de um momento pós-moderno, que acabaria por transformar dramaticamente as configurações da academia e de outras instituições na América do Norte, na Austrália e na Nova Zelândia. Até onde eu sei, a noção original de diversidade e multiculturalismo (articulada por pensadores norte-americanos de esquerda ou progressistas) nunca chegou à Europa e só muito recentemente a interseccionalidade entrou no discurso acadêmico. É claro que, uma vez que essas noções foram apropriadas e instrumentalizadas pelo Estado, instituições e corporações, tudo se deteriorou. Ainda assim, alguns de nós que atravessamos esse período ainda estamos aqui, ocupando espaços que de outro modo não existiriam, porém, agora, na posição de criar espaços que sequer seriam imagináveis.

KS/SL: Você tem alguma idéia sobre como superar a divisão entre o global como universal e as práticas artísticas singulares que são informadas por questões e práticas sociais e políticas, mas que parecem despidas de sua complexidade porque o global as caracteriza como algo meramente “culturalmente diversificado”?

DFdS: Vamos tentar isso. O global não é uma entidade universal, formal; o global é um contexto material, uma configuração, que inclui mecanismos jurídicos de violência total e restrição legal, mecanismos econômicos (extrativistas, industriais e financeiros) que facilitam a expropriação e a exploração, bem como as ferramentas simbólicas de racialidade que delimitam o alcance do programa ético moderno, regido pela noção de humanidade e pelos privilégios de que desfruta.

Sendo assim, ainda somos capazes de pensar em uma prática artística singular como exemplar de um dado momento (um ponto no espaço-tempo) nessa configuração. Não há papel ontológico (ou ético ou estético) para a diferença cultural aqui. Com certeza, isso é o que eu acho nos trabalhos de Otobong Nkanga, do Otolith Group e de Carlos Motta, para citar alguns – isto é, a recusa da diferença cultural como descrição principal daquilo que estão imaginando.

KS/SL: “Afetabilidade”, não opacidade, é o seu contra-termo para “transparência”. Sobre a recente ascensão de movimentos de direita, partidos e governos, você se refere à “perda” da posição de um “eu” transparente: “Na presença da diferença racial, sujeitos europeus (brancos) não ocupam mais o lugar do eu transparente; eles se tornam sujeitos afetáveis, uma vez que contemplam o horizonte da morte, aqueles cujas idéias e ações são sempre determinadas pela presença de um ‘outro’ inferior, um subalterno racial cujos corpo e mente se referem a outras regiões globais.” Nesse sentido, parece que, sob as condições atuais, a “afetabilidade” se move na direção da afirmação de posições cada vez mais subalternas. Existiria um patamar comum (o que não significa uma razão comum) capaz de fornecer um ponto de partida para nos libertarmos dessa mudança progressiva que vai ao encontro desse sujeito afetável? Estávamos pensando sobre Fanon e sua ideia de um humanismo melhor, sem ter definido a base na qual tal humanismo poderia se basear ou ser direcionado (se necessário)?

DFdS: Esta é uma questão, não é? Quero dizer, uma possível formulação para esta questão é – e eu acho que isso é da Sylvia Wynter – se o ser humano é a condição necessária para qualquer programa ético que leve em conta a conjugação (no sentido da química) dos modos de subjugar que proliferam no presente global. 

Em meus experimentos intelectuais, tento encontrar maneiras para escapar das dicotomias – como interioridade/exterioridade, autodeterminação/afetabilidade, temporalidade/espacialidade etc. – que têm sido tão centrais para a delimitação do homem/da humanidade como privilégio. Obviamente, não se trata de pensar sem exterioridade, mas de pensar, como tento fazer, um “pensamento fractal”, isto é, sobre diferentes escalas simultaneamente: cósmica, histórica, orgânica e quântica. 

Por exemplo, enquanto o tempo (sequencialidade) se torna irrelevante no registro cósmico, o espaço não faz sentido no nível quântico, porque o que acontece nesse nível não pode ser atribuído a algo que tenha extensão. “Deep Implicacy” e “Radical Immanence” [8] são, para mim, uma maneira de imaginar o mundo sem a ideia da relação que sempre pressupõe coisas separadas e separáveis. E se o pensamento desse um passo atrás, se encontrasse como parte de toda a bagunça de tudo aquilo que é o pleno e se contentasse em fornecer soluções momentâneas a cada instante de acordo com uma intenção mediada pelo contexto dado?

KS/SL: Uma última pergunta. No momento, estamos testemunhando o retorno de uma política abertamente racista, declarada por chefes de países supostamente democráticos. Em um dos seus textos anteriores, No-Bodies: Law, Raciality and Violence [9], você fala sobre a “substituição do ‘terrorista fantasmagórico’ pelo onipresente ‘imigrante indocumentado’ sob uma “virada securitária”. Você se refere aos militares como agentes da violência estatal contra sua própria população e fala especialmente sobre as favelas no Rio de Janeiro, que, como você diz, são chamadas de Faixa de Gaza brasileira pelos seus moradores. Então, é claro, temos Orban, Trump, Bolsonaro et al. Seria Bolsonaro apenas mais um jogador, embora um jogador radical, nesta “virada securitária”?

DFdS: Como você já notou, Bolsonaro é apenas outro nome em uma lista já muito extensa de chefes-de-estado que podem ser caracterizados pela ousadia de reclamar o emprego da violência total – seja desde o estado ou dos nacionalistas brancos – contra diferentes populações negras economicamente desapropriadas. Este é outro momento no regime securitário que vimos emergir após o 11 de setembro – e já dura quase 20 anos! Em Toward a Global Idea of Race, identifico duas lógicas de subjugação racial originárias: a lógica da exclusão e a lógica da obliteração. Um dos meus argumentos no livro é que ambos operaram ao longo do século XX e início do século XXI, mas a lógica da obliteração recebeu, por muitas razões, menos atenção, principalmente porque sua função foi substituída pelo papel da criminalização.

Durante a maior parte do século XX, a diferença cultural – de acordo com a tese de que a subjugação racial cria sujeitos sociais patológicos – desempenhou um papel crucial na explicação da violência racial como uma resposta ao comportamento criminoso por parte do subalterno racial. Ora, sabemos muito bem como isso funciona; o número de casos de assassinatos por policiais de pessoas negras desarmadas e a absolvição dos tribunais é muito claro. De qualquer forma, acho que o que está acontecendo no Brasil – que é o que vem acontecendo nas Filipinas há algum tempo – é uma intensificação da lógica da obliteração, que é anunciada ao mesmo tempo em que a nova administração traz o fim das últimas proteções trabalhistas remanescentes, bem como a eliminação dos direitos à terra garantidos constitucionalmente para as comunidades indígenas e quilombolas.

KS/SL: Isso é o Brasil agora?

DFdS: Deixe-me terminar com algumas perguntas: O que acontece quando a função principal do Estado deixa de ser proteger a nação (o povo) e seus interesses, para proteger as corporações (seus investidores) e seus interesses? Que tipo de contra-discurso e práticas políticas são necessárias para enfrentar esse aspecto do “estado-corporação” que está sendo implantado no Brasil, o que só pode ser chamado de privatização (no nível do cidadão individual) da segurança através de mecanismos que tornam a posse legal de armas acessível a um contingente maior da população e ampliam o número de casos aos quais se aplica a autodefesa como defesa legal? O que acontece com nossas acusações de brutalidade policial quando o atual ministro da Justiça brasileiro divulga uma nova política de segurança que, além das condições descritas acima, dá carta branca para os policiais atirarem para matar no local / à vista em suas incursões espaços urbanos economicamente desapropriados? E não mencionei o aumento do número de ameaças e ações violentas contra os povos indígenas, LGBTI e ativistas ambientais no Brasil nos últimos meses. A própria ideia de justiça social está em perigo. O conceito de justiça social se encaixa bem dentro do estado-nação. Mas o estado de segurança está agora firmemente estabelecido, com o único mandato de proteger a economia; é o “estado-corporação”, cujos papéis primordiais para o capital global são criar instrumentos jurídicos e estruturas e mecanismos que facilitem a extração, a expropriação e a exploração e protejam o interesse das empresas e de seus investidores. O que nós vamos fazer?

Tradução: Lori Regattieri e Tatiana Oliveira

Sobre as entrevistadoras: 

Kerstin Stakemeier é professora de Teoria da Arte e Mediação de Arte na Akademie der Bildenden Künste Nürnberg. Ela mora em Berlim.

Susanne Leeb é professora de arte contemporânea na Leuphana University Lüneburg.

A revista gentilmente nos permitiu reproduzir e traduzir a entrevista. Original em TEXTE ZUR KUNST. Publicado no dia 12 de abril de 2019. Disponível em: https://www.textezurkunst.de/articles/interview-ferreira-da-silva/



Notas

[1] N.T.: Aqui a autora faz um jogo de palavras com a expressão popular “joão ninguém”, para designar processos de “desaparecenças”, que, na tradução literal do inglês também pode ser lido como “sem-corpo”. Cintia Guedes observa a importância da polissemia do termo “no-bodies” (simultaneamente não-corpos e ninguém) como uma abertura da escrita de Denise Ferreira da Silva para apontar tanto a existência ontológica e civil (da vida após a morte da escravidão), quanto a ausência de valor material da vida do corpo negro (vidas negras importam).

[2] N.T.: As entrevistadoras fazem referência à publicação que resulta da pesquisa de doutorado de Denise Ferreira da Silva. Este trabalho não foi traduzido ao português; por isto, sugerimos como versão provisória do título Para uma Ideia Global da Raça.

[3] NT.: ROBINSON, Cedric. Black Marxism: The Making of the Black Radical Tradition. The University of North Carolina Press, 2016.

[4] N.T.: FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Editora UFJF, 2006.

[5] N.T.: Conferência ministrada por Fred Moten no The Museum of Modern Art (MoMA), NYC, em 25 de setembro de 2015. Disponível em: https://www.moma.org/calendar/events/1364 

[6] N.T.: Conhecido em português como fraturamento hidráulico. Optamos por deixar a referência em inglês por ter sido, a palavra, incorporada pelo jargão das discussões sobre clima e energia.

[7] N.T.: Em português, “Por uma poética feminista negra”, tradução livre.

[8] N.T.: A autora faz referência a dois trabalhos de instalação audiovisual produzidos em parceria com outros artistas.

[9]  N.T.: Em português: Sem-corpo: Direito, Racialidade e Violência, tradução livre.



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