O que se convencionou, mais recentemente, chamar de intolerância religiosa no Brasil foi constitutiva do processo de colonização do país, deixando suas marcas no âmbito cultural e político-estatal até os dias atuais, com mudanças que dizem respeito aos atores que perpetraram essas violências (ora colonizadores, ora agentes do estado, ora líderes religiosos) e aos argumentos em que se ancoravam suas ações.
O Diabo cristão
O Diabo, principalmente a partir da Alta Idade Média, foi considerado o agente universal de todo mal sobre o mundo. E mais que isso, ele foi visto como o principal aliado de todos os opositores, efetivos ou imaginários, da Igreja cristã. Além disso, o Cristianismo creditou importância fundamental à heresia. Para os gregos a heresia, haíresis, significava apenas uma escolha entre diferentes filosofias. O Cristianismo transformaria, entretanto, essa “escolha” em um crime.
No fim da Idade Média com os grandes medos gerados por coincidências trágicas que envolveram epidemias mortais, sublevações, guerras religiosas e políticas, a Igreja meditou sobre o fim do mundo e produziu uma variedade de textos apocalípticos. O imaginário coletivo ocupou-se de um grande medo do fim do mundo e da vinda do Anticristo.
Assim, a visão de mundo dualista do Cristianismo tornou herético e diabólico todo sagrado não oficial. Os judeus, os muçulmanos, as mulheres, doravante transformadas em bruxas, e todos os grupos de possíveis inimigos da Igreja foram vistos como representantes do Diabo na Terra.
Bruxaria e demonização da mulher
O medo da mulher não foi inventado pelo Cristianismo, mas foi desde cedo integrado e alimentado em suas doutrinas. Nas diversas interpretações bíblicas para o segundo capítulo do livro do Gênesis, além de ter sido secundária na ordem da criação divina, a mulher, representada por Eva, ainda foi capaz de introduzir o mal na Terra ao comer o fruto proibido da árvore do conhecimento, condenando toda a humanidade.
A mulher, como um ser mais próximo da natureza e da matéria, responsável pela procriação da vida, mas também pela morte, juiz da sexualidade masculina, dona de uma impureza fatal e de uma força misteriosa, impedia, segundo a mentalidade da época, os homens de realizar sua espiritualidade.
O tema da natural inclinação feminina para os comportamentos desviantes fazia parte do programa educacional de padres e religiosos das mais variadas ordens. Os médicos também reafirmaram em seus escritos a inferioridade física e moral das mulheres, assim como os juristas deram sua contribuição para reforçar a inferioridade estrutural do sexo feminino, utilizando como sustentação teórica as leis do direito romano. A produção literária e a iconografia da Renascença foram igualmente hostis à condição feminina.
Assim, a longa tradição misógina ocidental transformou, em meados do século XV, a mulher em um poderoso agente de satã, na forma de bruxa. A perseguição às feiticeiras de Satã foi uma das bandeiras e causas do Estado absolutista.
A partir da segunda metade do século XV até a primeira metade do século XVIII, milhares de mulheres foram processadas pelo crime de bruxaria na Europa, por tribunais eclesiásticos e civis. A feitiçaria e as práticas mágicas são acontecimentos universais que estiveram presentes em todas as sociedades desde a Antiguidade até os tempos mais modernos. No entanto, a grande “caça às bruxas” foi um episódio limitado no tempo e no espaço, mantido pelos países europeus no começo da Idade moderna.
As crenças mágico-religiosas do Novo Mundo
Segundo o historiador José Pedro Paiva, as instâncias de poder portuguesas não empreenderam uma loucura persecutória contra as bruxas, como feito noutras partes do continente europeu, mas, nem por isso, deixaram de se preocupar com as práticas supersticiosas do povo comum, eivadas de magismo, e com a possibilidade do pacto com o Diabo.
Muitos cronistas e eclesiásticos, certos de que estavam reencontrando no Novo Mundo – territórios encontrados pelos europeus na América, Ásia e África durante as grandes navegações do século XVI – um velho inimigo, descreviam as práticas mágico-religiosas dessas populações utilizando como parâmetro as concepções e as terminologias demonológicas que lhes eram familiares. Assim, os rituais e a religiosidade dos povos indígenas e africanos foram reduzidos, muitas vezes, ao seu potencial para o mal, sendo criminalizados e classificados como heréticos e diabólicos.
O Brasil colonial produziu manifestações religiosas híbridas, confluindo elementos das tradições pagãs europeias, das tradições africanas, dos costumes ameríndios; do judaísmo; e da religião católica oficial. Nesse cenário multifacetado foi constante o uso de soluções sobrenaturais como um meio de sobrevivência ligado, principalmente, às necessidades cotidianas e relacionado aos problemas concretos enfrentados pelos colonos (conflitos, miséria, doenças, ódios e amores).
Nesse contexto, a fiscalização do comportamento religioso das populações era realizada pelo Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição, instituição dentro do sistema jurídico da Igreja Católica Romana, cujo objetivo era combater a heresia. Esse controle introduziu na sociedade colonial uma percepção de culpa, que levou as pessoas a identificar infrações, antes inconscientes, em comportamentos rotineiros. E despertou a vontade geral de colaborar, de alguma forma, com os inquisidores, fosse para mostrar boa vontade ou para se livrar de possíveis acusações.
No caso da feitiçaria, tratava-se, mormente, de extrair dos culpados a confissão dos pactos diabólicos. Nela estava a confirmação da heresia. Na maior parte das vezes, todavia, os condenados negavam a existência do pacto. Até que a dinâmica inquisitorial, com ininterruptos interrogatórios e torturas, abalava as convicções do réu, que acabava por aderir ao que lhe atribuíam.
Para os colonos os diabos, diabinhos e diabretes que cercavam sua mentalidade e sua vida cotidiana eram bem distintos dos demônios descritos e representados nos tratados eruditos europeus. O diabo era, quase sempre, mais um intermediário com o mundo sobrenatural, assim como Deus, a Virgem e os santos, que poderia trazer benefícios e resolver problemas, ainda que através de um contrato, sabido, ilícito.
Dona Isabel Maria da Silva, por exemplo, foi acusada pela Inquisição em 1763, na cidade do Pará, de invocar três pretinhos através de algumas cantigas. Os “diabretes” eram os responsáveis por lhe contar tudo o que acontecia na cidade e as pessoas a procuravam em busca dos seus poderes adivinhatórios. (ANTT, Inquisição de Lisboa; processo nº 12889).
Já Joana Maria foi presa e acusada de feitiçaria pelo Santo Ofício por vender um fragmento da hóstia consagrada dizendo que se tratava de uma Relíquia do Santo Lenho. A mulher branca, cristã-velha, disse que o objetivo era conseguir a prisão pelo Tribunal e, assim, livrar-se dos maus tratos e crueldades do seu marido, que estava especialmente furioso por conta do sumiço de dois frangos e uma galinha, furtados de sua casa em sua ausência.
Africanos, indígenas e mestiços foram os grandes curandeiros do Brasil colonial. O conhecimento que tinham do uso de ervas e os rituais específicos dos seus cultos foram somados aos saberes europeus da medicina popular. A doença era vista como fruto da ação de espíritos malévolos assim, a forma mais eficaz de se obter a cura era através dos meios sobrenaturais. No século XVIII, o número de denúncias e confissões que envolviam as curas era abundante.
O índio Raimundo Antônio de Belém foi acusado de faltar às missas, incentivar os demais índios a também faltarem e agir como pajé entre eles. era muito popular pela sua capacidade de curar doenças na cidade. Foi acusado várias vezes de invocar demônios cantando com um maracá e entrar em transes que faziam o réu mudar de vozes e falar coisas confusas. O réu foi processado por bruxaria e pacto com o Diabo. (ANTT, Inquisição de Lisboa; processo nº12886).
Escravos faziam feitiços para livrarem-se dos castigos dos seus senhores ou para vingarem-se destes ou de outros escravos que pudessem prejudicá-los. Joana Maria, preta crioula, com 22 anos, moradora no engenho de Nossa Senhora de Guadalupe (Pará) foi acusada pelo seu senhor, Gonçalo José da Costa, de fazer feitiços para envenenar a índia Felipa, escrava e moradora do mesmo engenho. A princípio, Joana disse ao Santo Ofício que nada fez contra a índia, no entanto, depois, reconheceu que por duas vezes fez uso de algumas raízes, conhecidas como cipó pucão, e indicadas para abrandar os corações das pessoas. (ANTT, Inquisição de Lisboa; processo nº 2691).
Joana disse ter ganhado as raízes de uma mulata chamada Quitéria, moradora de um engenho vizinho, que a aconselhou a usá-las para abrandar o ânimo do seu senhor e impedir os castigos físicos que, constantemente, recebia. Segundo os ensinamentos de Quitéria, as raízes deveriam ser esfregadas nos pulsos ao mesmo tempo em que se proferiam as palavras: “Senhor paitinga [sic] assim como vossa mercê tem raiva de mim, assim se lhe abrande o coração”.
Quando foi presa a escrava estava há quase um mês, desde que incidiram sobre ela as acusações de feitiçaria, amarrada em um tronco. Ela confessou a utilização de cruzes, feitas três vezes com as raízes nos pulsos e na testa e a colocação das raízes debaixo da língua para conseguir convencer as pessoas. Também assumiu colocar as ervas na comida da índia Felipa, mas não para prejudicá-la e sim para impedir que ela lhe tivesse ódio. Enfim, insistiu que o uso das raízes sempre foi com a virtude de abrandar e não causar danos ou malefícios.
Ela não confessou o pacto com o demônio, apenas assumiu que fazia coisas supersticiosas e mostrou-se arrependida frente ao Santo Ofício. O tribunal a considerou uma ré diminuta, mas demonstrou “clemência” com a escrava, tendo em vista os anos que passou na prisão e os castigos corporais a que fora submetida. Pelos seus atos supersticiosos “e que só podia produzir efeito por intervenção, e concurso do demônio” Joana foi condenada a um mês a mais de prisão e a ser instruída nas coisas da fé “necessárias para sua salvação”. (ANTT, Inquisição de Lisboa; processo nº 2691).
Os calundus também fizeram parte dessa atmosfera híbrida de crenças e costumes. Suas descrições, por vezes imprecisas na documentação inquisitorial e nas devassas eclesiásticas, remetem a reuniões festivas de negros, nas quais estes cultuavam ídolos, dançavam, pulavam e entravam em transes temporários, nos quais podiam falar em nome de espíritos para realizar curas e adivinhações. Ficavam ao som de batuques e, às vezes, faziam defumações. Segundo a historiadora Daniela Calainho, oram frequentes na Bahia e também na região das Minas durante o século XVIII, dada a grande quantidade de escravos negros.
A resistência ao sistema escravista no mundo colonial se deu de diversas formas, desde manifestações explícitas, como fugas, revoltas e formações de quilombos, até as mais cotidianas, como suicídios, roubos, assassinatos e feitiços. As práticas mágicas eram, portanto, necessárias e essenciais nesse mundo escravista, como uma alternativa de combate ao sistema colonial. Entretanto, a compreensão dessas práticas não perpassou apenas a dimensão da resistência.
Durante o Império, o catolicismo continuou a vigorar como a religião oficial no país, o artigo 176 do código criminal de 1830, por exemplo, punia a celebração, a propaganda e o culto de outras religiões. O código penal de 1890 também criava mecanismos legais para combater os chamados “feiticeiros” (Maggie, 1992). Só a primeira Constituição da República, em 1891, torna o Estado laico e prevê a separação entre religião e poder político. A partir daí a liberdade religiosa passou a ser defendida por lei, o que não impediu a perseguição das religiões afro-brasileiras durante todo século XX até os dias de hoje.
Aos poucos, na sociedade contemporânea o debate acerca da religião verdadeira foi banido da esfera pública e relegado ao foro íntimo e privado. As questões teológicas perderam impacto na vida pública e o direito fundamental à liberdade religiosa foi a resposta política apropriada aos desafios do pluralismo religioso na modernidade. No entanto, mesmo após a laicizarão do Estado, no qual a religião deixou de ser um fator de unidade política, o catolicismo permaneceu como religião hegemônica e influente no Brasil, enquanto que o imaginário social e policial criminalizava as expressões religiosas afro-brasileiras presentes na religiosidade popular.
A partir de meados dos anos 2000 o debate religioso voltou a ser protagonista das discussões políticas atuais, principalmente pelo comportamento e discurso extremista de algumas Igrejas, de denominação neopentecostal. A recente “conversão” de traficantes de drogas ao Neopentecostalismo e a expulsão de pais de santo das favelas e periferias do país, notadamente no Rio de Janeiro, reascendeu as polêmicas sobre um velho problema que vem se arrastando por toda história do Brasil.
O mito da democracia racial, que outrora camuflou o racismo no Brasil, assim como o mito da paz religiosa que, pouco a pouco, desmorona, procurou esconder a desigualdade de oportunidades de direitos que acompanha a história do país. Práticas racistas e segregadoras, mesmo que não sejam oficiais ou definidas por lei, continuam a ser perpetuadas, condenando uma parcela significativa da população a estereotipização e a marginalização. Pode-se indagar que se existem elementos mágicos em quase todas as religiões do Brasil contemporâneo (a igreja católica com seus defumadores e água benta e grande parte das igrejas evangélicas com sabonetes de arruda e águas curativas), se existiu um hibridismo entre esses diversos cultos desde o Brasil colonial, se o Diabo é cristão e não pertencia a visão de mundo dos africanos, porque justamente as religiões de matriz africana foram demonizadas e perseguidas ao longo da história do nosso país? A resposta é evidente: porque é “coisa de preto”. É preciso entender todas as dimensões e estruturas do racismo que cerca a história do Brasil e combatê-lo de todas as formas possíveis. AXÉ!
Carolina Rocha é mulher negra, candomblecista, escritora e militante. Mestre em história pela UFF e doutoranda em Sociologia no IESP/UERJ. É pesquisadora da Coordenadoria Experiências religiosas africanas e afro-brasileiras, racismo e intolerância religiosa, vinculada ao Laboratório de História das Experiências Religiosas (LHER-UFRJ). Autora do livro: “O Sabá do Sertão: feiticeiras, demônios e jesuítas no Piauí Colonial”, Paco Editorial, 2015. Membro da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) e do Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros (COPENE). E-mail para contato: carolinarocha18@gmail.com.