Toda a cultura ioruba assenta reflexões constantes e profundas acerca do homem e do seu corpo. Todas as partes do corpo são tomadas como elementos importantes para a nossa trajetória na Terra (Àiyé).
Com essa orientação fui educada e educo os meus… aprendizado de família preta: passado e repassado de voz em voz.
No barro preto do terreiro aprendemos que o corpo tem que ser valorizado e respeitado. Perdi as contas do número de vezes que embirrava com as garrafas de minha avó:
– Vó pra que beber isso?
E ela respondia :
– Negrinha deixa de história e bebe logo isso…
Como vocês acham que nosso povo resistiu às chicotadas, chibatas, troncos?
Deixe de ser rebelde e bebe…
Você ainda vai me agradecer …
Cresci e entendi…
O mundo e as memórias de matriz africana estão fundamentalmente inscritos e escritos no corpo.
Foi difícil, confuso, perverso, mas entendi o que dizia a mais velha. Existimos e co- existimos em dois mundos.
Para o ocidental o corpo é percebido como objeto a ser disciplinado, vigiado e controlado, além de ser filosófica e mesmo ontologicamente separado da mente.
Em contraponto, para o povo preto, se a memória pode ser considerada uma forma de escrita, sua grafia está sem dúvida localizada e incorporada no próprio corpo, pulsando de forma viva: com casca, limo e raiz.
Aprendemos no barro preto a saudar todas as partes do nosso corpo.
Aqui, neste depoimento, vou destacar de forma breve a visão, a compreensão e o respeito que temos por aquele que nos sustenta e nos mantém eretos. Aquele que nos permite a movimentação com desenvoltura: o pé!
Ao pé dizemos a saudação: Mojubá pelebè èsè. Que significa para vocês “Eu saúdo a sola dos pés”. Dos pés saudamos a sua sola!
Sempre ouvi meus mais velhos dizerem: “cuidem de seus pés com muito respeito ele é o seu condutor…”. “Peçam sempre que os seus pés lhes levem ao encontro de boa sorte”.
Assim hoje lhes digo eu: peçam que os pés de vocês lhes levem ao lugar certo, com pessoas certas e na hora certa. Desejem que seus pés estejam sempre em consonância com ori (cabeça) para que vocês não pensem uma coisa e os pés de vocês levem para outra coisa.
Peça que os pés lhes levem a adquirir boa sorte.
Na vida dos terreiros todos os ritos são de pés plantados e enraizados no chão.
Sem falar da demonstração de humildade de nossos Orixás. Eles que ali estão, mesmo que todos aparamentados e elegantemente vestidos, estão se apresentando para nós com os pés no chão. Em respeito ao solo. À terra. Ao barro. Por onde dançam com leveza, contando a sua história.
Compreender o aprendizado do povo preto, tanto nos terreiros quanto no contexto familiar pede por ouvir, olhar, gravar na cabeça e a partir da repetição do gesto, do canto que comunica, do atabaque que proporciona o movimento do corpo e da dança perceber, sentir e acreditar na magia e no saber ancestral passado pelos mais velhos de geração em geração. Enfim é respeitar o fogão de lenha que cozinha as receitas da vovó, que nos dá sustentação e força para suportar o duro dia a dia.