“Comecei a escrever sobre poder porque era algo que eu tinha muito pouco”.
Octavia Butler
1976, Los Angeles: Dana – uma jovem mulher negra – escreve. Aos 26 anos, entre sub-empregos que pagam pouco o suficiente para uma (sub)existência de comida e aluguel baratos, mas não ocupam a mente o bastante para atrapalharem as muitas horas de escrita diária na jornada pós trabalho. Dana é escritora – quase ninguém parece entender. Optou pela precariedade do conto em conto, livro em livro, das páginas escritas depois do dia de trabalho ruim, das poucas horas de sono, pelos sonhos dos romances vendidos que poderiam pagar meses de aluguel. Em 1976, Dana pode optar, ainda que nas margens pequenas de uma sociedade que não incentiva mulheres negras escritoras.
Kevin, o marido branco de Dana, já não tão jovem, também escreve. Entre a orfandade e os parentes de ambos que não aceitam bem o casamento interracial, Dana e Kevin formam o seu próprio e modesto núcleo familiar: em um apartamento novo com muitos livros por serem ainda arranjados nas estantes, com duas máquinas de escrever e dois escritórios. Então, um mal estar repentino e Dana já não está mais lá…
1824, Maryland: Dana não escreverá mais por muitos anos (ou por alguns dias). Kindred: laços de sangue (Octavia Butler) é a jornada de Dana misteriosamente lançada inúmeras vezes de volta ao século XIX. A cada deslocamento Dana permanece mais tempo no passado escravocrata. Primeiro alguns minutos, depois algumas horas e, por fim, dias e meses. Em 1976, o tempo mal parece passar: os meses de horror como escravizada em Maryland correspondem a poucas horas ausentes do apartamento em LA. Desde a infância é Rufus Weylin quem a puxa de volta. Rufus o antepassado branco de Dana. Rufus filho de e futuro senhor de escravos em Maryland. Rufus sempre prestes a morrer e Dana necessariamente o salvando, para que um dia ela possa existir (e escrever) na segunda metade do século XX na Califórnia.
1979, entre Los Angeles e Maryland: Octavia Butler (mulher negra, já não tão jovem) escreve a jornada de Dana. Butler escreve sobre poder. Ela diz que escreve sobre poder porque não o tem.
1976, Maryland: A viagem no tempo de Dana não terá por objetivo consertar o passado. Dana como Butler (mulheres negras que escrevem) possui muito pouco poder. Por isso, o seu corpo de mulher negra no início da século XIX em uma fazenda escravocrata de Maryland precisará negociar cada milímetro de agência possível para garantir a sobrevivência do seu destrutivo tataravô Rufus, apenas para que ela um dia possa existir. Dana então precisa garantir a própria existência, sem nenhuma possibilidade de ignorar a sua genealogia familiar fruto do estupro estruturado socialmente como regra.
O corpo de Dana torna-se então mais do que a sua máquina de viagem temporal, mas também, no limite, o seu único espaço de poder e controle. Dana é a sua própria embarcação (Luedji Luna, 2017), embora o controle dos deslocamentos não seja exclusivamente seu. Mas é o seu corpo de mulher negra a própria máquina do tempo de sua jornada – transportando objetos triviais como canetas e pentes; assim como aspirinas e remédios para dormir, itens essenciais para a sua sobrevivência a violência dilacerante e material das surras de chicotes dos seus antepassados senhores de escravos. Seu corpo também transporta Kevin, o seu marido branco, para um lugar no qual o relacionamento entre os dois torna-se inconcebível socialmente para além de uma relação de estupro e posse.
De início, a sua presença, o seu corpo feminino negro não codificado e destruído pelas tecnologias sociais do século XIX causam estranheza e medo. Há sempre um jogo sobre como Dana é vista pelos outros e como ela se vê como elemento externo em relação ao período e aquelas pessoas (os seus laços consanguíneos). Dana é vista sob diferentes perspectivas como a: “preta médica”, “preta que lê”, “preta branca”, “preta que não sabe o seu lugar”, “preta animal selvagem”, “Preta louca”. A mulher negra que escreve e ensina, perigosa. Os limites dos olhares classificatórios dos seus antepassados brancos são o medo e o desejo (nem sempre agindo separadamente). A cada retorno mais longo e imersivo de Dana ao passado essa negociação torna-se mais impossível. Dana possui pouco poder e possuirá cada vez menos. Gradativamente a questão deixa de ser proteger o corpo, e torna-se a de calcular o limite de agressão ainda possivelmente suportável para ela.
“Preta médica”: Dana detém tecnologias e conhecimentos do presente superiores ao dos brancos. Esses servem de elemento de barganha (ela é a que cura/ensina), mas não a protegem suficientemente. O conhecimento científico e cultural não supera a estrutura supremacista branca de poder daquela sociedade.
Será que já superaria em 1976? É o que parece nos perguntar Octavia Butler. Supera em 2017? É para onde sua obra ainda nos leva. Qual o poder das mulheres negras que escrevem em uma sociedade estruturalmente racista?
Nesse cálculo torna-se evidente que Dana não tem controle sobre a sua magia corporal, sobre o seu corpo máquina do tempo e a suas voltas ao passado. O poder é do outro, de Rufus. Resta-lhe pouco controle sobre como é percebida e aceita fora do seu tempo. O poder sobre a sua magia está em última instância no controle sobre a sua própria vida (o medo de morrer). Se o processo de escravização de pessoas negras africanas pode ser pensado como um processo de abdução alienígena, Dana também não deixa de ser uma alienígena em seu próprio país, mas vinda de outra nave – “uma espécie de náufraga”. Ela como os seus antepassados também passa por um doloroso processo de estranhamento de si mesma.
Kindred nos lança em uma série de temas e relacionamentos terríveis e complexos das relações afetivas, raciais e sociais que formam Dana (e os descendentes da diáspora africana nas Américas). Esta complexidade implode uma perfeita classificação nos gêneros narrativos: uma fantasia histórica que também é um drama familiar e que concentra nesse núcleo familiar as histórias dos séculos de escravização nos EUA. E é também escrito pela mulher negra considerada a dama da ficção científica estadunidense. Mas Kindred não é sci-fi, Butler não o permite: Dana é lançada entre os séculos sem ajuda de elementos científicos – é a iminência da morte de Rufus que a puxa para o passado e é o seu temor de morrer (e, por fim, também o seu desejo de fazê-lo) que a devolve para o século XX.
Mais do que os gêneros narrativos nos parece que são as temporalidades afrofuturistas, nas quais presente, passado e futuro perdem a linearidade racional e causal, que nos ajudam a pensar a obra. Afinal, Kindred é a jornada do dilema moral de Dana em relação ao seu antepassado branco. Dilema que consequentemente é o da sua própria existência como sobrevivente das brutalidades que iniciam a árvore genealógica do núcleo familiar que ela conhece.
Sem elementos cientificistas de efeitos borboletas e desvio em multiversos, é a realidade histórica da escravidão que emerge da viagens no tempo de Dana: memória fragmentada e trauma. Trauma que no fim da jornada se materializa na mutilação do seu própria corpo: não há retorno completo possível diante da escravidão (nos lembra Butler). A jornada de Dana se faz assim entre a fragmentação das memórias da escravidão, o passado familiar desconhecido e ocultado e a sua dolorosa reconstrução como experiência efetiva. Memórias e experiências que, ainda assim, jamais serão plenamente recompostas. Ainda que 1976, 1979: Dana e Butler sejam mulheres negras que escrevam para fazê-lo – ou, ao menos, para acessarem um pouco de poder.