O que pode um corpo? O que a tecnociência faz os corpos fazerem? O que é o útero? Do que ele é capaz? Órgão marcado por gênero, escrutinado pela tecnociência em suas relações com demais órgãos, elementos e substâncias, como ovários, hormônios, óvulos, vagina, sêmen, feto. Órgão aprisionado pela fisiologia reprodutiva, da perspectiva biomédica.
Útero, matriz, matéria. De onde, até o presente momento, todos viemos.
Historicamente caracterizado como um foco potencial de diversas (des)ordens, dentre elas a histeria. Lócus desse potente e temido descontrole psíquico-emocional que acometeria mulheres-bruxas, sobretudo quando expressam suas vontades e descontentamentos.
Ambíguo, um dentro-fora que habita intempestivamente esses corpos classificados como “femininos”, enclausurados na eterna marcação do diferente, não-humano. Corpos que sangram, gestam, parem, amamentam. Sangram, mas não morrem.
Órgãos femininos são escravizados pela função reprodutiva. Será possível ainda sonhar com alguma forma de libertação, de des-organização, quando sequer podemos decidir o que fazer com nossos próprios corpos? Quando querem nos obrigar a gestar fetos violentamente inseminados por estupradores?
O que pode um útero da perspectiva da tecnociência? Endocrinologistas, ginecologistas e obstetras têm várias respostas para essa pergunta. Todas seguindo a teleologia reprodutiva.
Mas há outras potências do corpo, do útero, outros agenciamentos possíveis para o sangue menstrual. Movimentos de descolamento da menstruação da figura de “choro” do útero pela ausência de um bebê. Da imagem de excremento, inútil, abjeto, feminino. Engajamentos que transformam o sangue menstrual em tinta, que celebram sua presença em fotografias e imagens compartilhadas amplamente, que exploram sua plasticidade e a estética-política da sua visibilidade.
Há cientistas que cultivam as células do sangue menstrual. Há células-tronco no sangue menstrual. As CeSaM (células mesenquimais do sangue menstrual) foram assim batizadas no Laboratório de Cardiologia Celular e Molecular (LCCM) do Instituto de Biofísica da UFRJ. A ideia de trabalhar com isso veio da Professora e Pesquisadora Regina Goldenberg, quando procurava uma fonte de células adultas que fosse mais acessível do que as até então mais usadas nas pesquisas científicas e terapias celulares, como a medula óssea, o cordão umbilical, a placenta. A equipe de Regina, liderada pela atualmente pós-doutoranda Karina Asensi, conseguiu desempenhar de maneira bastante eficaz o cultivo das CeSaM em laboratório, e tem conduzido diversos experimentos de pesquisa nessa frente desde 2008.
Esse cultivo envolve isolar as células que interessam – as células mesenquimais, que habitam a parede interna do útero e que trabalham na renovação celular após o descamação que ocorre com a menstruação. Essas células possuem características similares às células tronco embrionárias, embora não tenham a mesma potência de diferenciação. O procedimento técnico implica uma sucessão de diluições e centrifugações que separam os diferentes componentes do sangue menstrual de maneira a deixar presentes na placa de Petri apenas as células que “aderem” a ela. Uma vez aderidas, essas células são alimentadas, crescem e vão se multiplicando até formarem populações expandidas de células. Que, por sua vez, são utilizadas em experimentos científicos para terapia celular, bioengenharia e medicina regenerativa.
Em laboratório, as CeSAM expandem rápido, e resistem bem a condições de privação. Esse é um dos fatores que as tornam interessantes tanto para pesquisas quanto para tratamentos clínicos. Mesmo uma pequena quantidade de sangue menstrual inicial pode ser revertida em milhares de células.
O perfil das CeSaM tem se mostrado equivalente aos das células mais frequentemente usadas em pesquisas com terapia celular, como as células da medula óssea. Elas têm uma sobrevida maior que a observada em células de outros tecidos, demorando mais tempo para perder a sua capacidade proliferativa em cultura. Têm, ainda, uma capacidade superior de resistência a condições desfavoráveis, tais como privação de nutrientes e de oxigênio.
Comparativamente com os demais substratos corporais utilizados (medula, cordão umbilical, gordura etc.), o sangue menstrual é aquele que tem a maior disponibilidade potencial e ausência de invasividade para ser obtido – basta coletá-lo durante o fluxo menstrual, e em pequenas quantidades. As pesquisas realizadas até o presente momento demonstraram que o sangue menstrual é um excelente vetor de acesso para células humanas adultas, que podem ser cultivadas em laboratório, com plasticidade e capacidade de diferenciação vantajosas para a pesquisa científica e, possivelmente, para a terapia celular.
Contudo, é um substrato marcado, de partida, por gênero e sexualidade. Não só vem do tecido interno do útero, como passa pela vagina no seu caminho para “fora” do corpo. Essa passagem não é banal, nem neutra, e isso se reflete no universo de pesquisas possíveis com células mesenquimais no LCCM. Não é à toa que a iniciativa do uso dessas células tenha sido tomada por uma pesquisadora mulher. E que sejam ainda poucas, e fundamentalmente mulheres, as pesquisadoras que participam das investidas com esse substrato corporal no laboratório.
Apesar da primeira publicação importante sobre as CeSaM, neste laboratório, ter sido parte da pesquisa de um pesquisador homem, e a célula ter demonstrado a sua excelência e utilidade, rapidamente outros substratos corporais (como o sangue de cordão umbilical e a gordura) passaram a ser também estudados para desenvolver o mesmo tipo de ação. Embora estes tenham, proporcionalmente, uma quantidade inferior de células, demandando uma amostragem inicial maior, ou mais tempo de cultivo e expansão, parece haver uma preferência maior (ainda consensual na comunidade científica da área, e também no laboratório) de evitar o uso do sangue menstrual, sempre que for possível.
Diferentemente das demais células de tecido adulto pesquisadas, as CeSaM são muitas das vezes pensadas como sendo células exclusivas “das mulheres” – que seriam empregáveis apenas em mulheres nos eventuais tratamentos futuros. Não há, entretanto, do ponto de vista científico, nenhum impedimento adicional ao trânsito das células do sangue menstrual para corpos masculinos, comparativamente a outros tecidos utilizáveis, desde que sejam compatíveis – a não ser em casos de tratamentos autólogos (nos quais se utilizam as células do próprio paciente). A marcação de gênero opera de maneira a impossibilitar que a CeSaM seja tratada como uma célula-modelo, que pudesse ser universalmente estudada para tratamentos em corpos humanos.
As pesquisadoras das CeSaM encaram vários desafios para levar adiante suas pesquisas: convidar mulheres a doar material, “dar o próprio sangue” menstrual para a pesquisa, apresentar o trabalho em congressos científicos, falar sobre a pesquisa com outras pessoas, defender e divulgar seus resultados. Isso implica também, encarar os eventuais – mas inevitáveis – comentários jocosos, piadas machistas, apelidos engraçados sobre a fonte da célula. Cenas de bastidores, que muitas vezes passam desapercebidas. Mas que sobrepõem uma misoginia (implícita, e às vezes mais explícita) da sociedade, às próprias células.
Apesar de produzirem resultados bons de acordo com as expectativas da área científica em questão, as CeSaM ainda ocupam, no universo de pesquisas do LCCM, uma posição secundária ou marginal em relação a outras fontes de células. Sua perspectiva de um engajamento central em pesquisas maiores, de fôlego, projetos grandes e coletivos que concorram nos maiores editais é praticamente nula, ou bastante improvável. Pelo contrário, nesse tipo de projeto ela sequer costuma ser incluída entre as células a serem utilizadas na pesquisa. Maior visibilidade é dada a substratos corporais menos marcados, ainda que o uso destes envolvam procedimentos mais invasivos (ou menos disponíveis) para obtenção. São privilegiadas a medula óssea (que já tem um lugar tradicional e consolidado nesse universo de pesquisas), o tecido adiposo, os excedentes do parto e gestação (líquido amniótico, cordão, placenta), e até mesmo a polpa do dente de leite.
Curiosamente, ao que tudo indica, a CeSaM resiste, como uma espécie de ícone do que se espera ser uma ciência e uma prática feminista, ou afetada por um feminismo, que não se furta de valorizar o corpo entendido como feminino, em sua possível especificidade: ela responde bem a situações desafiadoras, como falta de nutrientes e pouco oxigênio, e perdura, resiste, quando tensionada pelos experimentos em questão. Isso pode ter a ver, conforme argumenta Regina Goldenberg, com o fato serem células de um tecido que é “desafiado”, “estressado”, “impactado” muito mais frequentemente que os demais tecidos disponíveis para pesquisa. É um pressuposto implícito das pesquisas em questão que a descamação periódica do tecido endometrial com a menstruação talvez tenha favorecido o desenvolvimento de células com uma alta capacidade de resistência a situações adversas. Uma espécie de ontologia da resistência.
Por virem de órgãos mais impactados e de corpos que têm mais vitalidade, essas células “vivem” muito bem nos laboratórios, “trabalham” bem nas pesquisas para as quais são convocadas, que envolvem inclusive colocá-las na posição de restauro e reparação, de cura e de cuidado. As CeSaM, para além de comporem uma excelente analogia acerca do trabalho, do corpo e da vida de mulheres e minorias, performam, também, efetivamente, em laboratório, um mundo potencial no qual quiçá o sangue menstrual poderá sair da sua condição de excremento abjeto para a nobre função de vir a salvar vidas. Isso se essas células conseguirem ultrapassar o machismo institucional das pesquisas científicas.
As CeSaM fazem, assim, o útero “poder” muito mais do que a sua função reprodutiva. E isso pode representar uma inspiração feminista, mesmo que partindo de um universo tão branco e androcentrado como a tecnociência. Inspiração pelo excesso de potência, pela força intrínseca, pela valorização do útero para além da sua função de gestar fetos, pela sua magia.
No entanto, a julgar pelas formas como corpos marcados por gênero (e raça/etnia, e classe, e sexualidade) costumam ser engajados nos empreendimentos tecnocientíficos e biomédicos, é de se supor que essa sua potência (caso seja efetivamente reconhecida) tenda a ser capturada e, novamente, aprisionada por dinâmicas restritivas, comodificadas, limitadoras. Nada garante, de partida, o consentimento e a autonomia das doadoras de sangue menstrual, a universalidade e gratuidade no acesso às células e terapias, as políticas de propriedade intelectual e do mercado biomédico e farmacêutico que incidem/incidirão sobre terapêuticas possíveis. Pelo contrário, o próprio modo de existência das CeSaM já implica, em sua gênese, um custoso aparato high tech, cujo acesso sabemos que é/será restrito.
Nas aventuras contemporâneas das tecnociências – que vão desde a ginecologia e sua teleologia reprodutiva às formas e arranjos que compõem a bioengenharia, a terapia celular e a medicina regenerativa – corpos, úteros e células do sangue menstrual existem, e resistem.