O “fardo da história”… Taí um peso injusto para as juventudes contemporâneas. Os chamados “jovens” são acusados de serem alienados, apolitizados, consumistas, viciados em tecnologia, individualistas, narcisistas, pouco solidários… A comparação é emblemática: o parâmetro são os “jovens” de 1968 e adjacências temporais. Enfrentando os poderes instituídos. Exigindo democracia e participação na universidade. Desafiando os governos ditatoriais, os modelos sociais e culturais repressores.
Evidentemente, sou fã da geração da contracultura. Dos estudantes que tomaram as universidades e exigiram mais horizontalidade. Dos jovens que revolucionaram a música. Que colocaram o corpo em evidência. Mais prazer, mais sexo, mais verbo, mais verso. Que preencheram muros, confeccionaram cartazes, deixaram o cabelo crescer, criaram movimentos múltiplos, enfrentaram séculos de sociedade “adulta”, conservadora, que chegou na metade do século XX baseada no tripé família-escola-estado para enquadrar seus jovens, moldá-los, transformá-los em adultos conformados e responsáveis. Gerações de jovens, dos mais diversos lugares, das mais diversas matrizes culturais, étnicas, raciais, de gênero e de classe, enfrentaram preconceitos, foram se colocando como protagonistas de suas histórias e mudaram o mundo, que não foi mais o mesmo após os anos 1960. Mas acho que precisamos complexificar nosso olhar sobre os processos de constituição do que chamamos de “juventude” e “jovens”, para evitarmos simplificações que não nos ajudam a compreender as múltiplas formas de atuação e conformação de sentidos em torno desse tema.
Escrevi um artigo mais detalhado sobre isso, caso alguém se interesse (http://revistacmc.espm.br/index.php/revistacmc/article/view/203). Nele argumento que juventude foi um “espírito do tempo” da modernidade ocidental antes mesmo de ser encarnado por um sujeito histórico, no caso o “próprio” jovem no sentido biológico, atrelado a determinadas faixas etárias e condições históricas (mais precisamente, a chamada “moratória social”, ou seja, não ter constituído sua própria família, não precisar ainda se sustentar, ter maior flexibilidade em termos de compromissos sociais para poder experimentar, escolher caminhos, montar trajetórias, indicando claramente um recorte de classe, pois estamos falando do jovem de classe média da modernidade ocidental). A partir de meados do século XX, em especial no contexto do pós Segunda Guerra, esse espírito do tempo é incorporado por estes sujeitos concretos, os “jovens”, dentro do recorte que indico acima, estabelecendo, a partir de suas performances, a concepção da juventude como um “estilo de vida”, em que alguns elementos ocupam papel central, por vezes complementares, em outras contraditórios. Assim, o estilo de vida “jovem” envolveria descompromisso, hedonismo, imaturidade, irreverência, sexualidade, inconformismo, rebeldia, busca por experiências novas, vontade de mudar o mundo, tendência gregária e também busca por individualização, dentre outras características. O chamado “mundo adulto” manteve, frente a essa polissemia, reações também polissêmicas, a partir do momento em que o “jovem”, enquanto ser social, entrou pra valer em cena. A rebeldia juvenil, por exemplo, pode ser tanto percebida como ameaça, devendo ser reprimida; quanto como elemento político fundamental para a mudança, devendo ser valorizada. Já o caráter infantilizado, principalmente relacionado à irreverência e ao consumo, inicialmente foi classificado como algo negativo, a ser superado pelo jovem a medida em que fosse amadurecendo.
O que aconteceu depois, que batizei de um novo “espírito do tempo”, este da pós-modernidade, é complexo. Por um lado, os chamados adultos, em termos de faixa etária, abraçaram pra valer o hedonismo juvenil e todas as suas atribuições: prazer a todo custo, “curtir a vida adoidado”, descompromisso, irreverência, prorrogação da “moratória social” e construção de identidades via consumo e sob a batuta da hegemonia do capital. Como demonstraram diversos autores que se debruçaram sobre o tema, na contemporaneidade globalizada “quase todo mundo quer se manter jovem independentemente da idade”. E ser jovem, neste sentido, é estar atrelado aos valores do hedonismo que há cinquenta anos eram objeto de crítica. E o caráter crítico, contestador, rebelde daquele jovem da geração anos 60/70? Bem, esse lado os “adultos” dispensam, obrigado. Mas cobram. De quem? Dos jovens da geração atual, desse início do século XXI. É o tal “fardo da história” a que me refiro no início desse artigo. Todo mundo quer aproveitar a vida em uma “eterna juventude”, mas quer que somente os jovens se mostrem críticos, não alienados, compromissados com as mudanças, enfrentando os poderes instituídos, indo pras ruas, fazendo a revolução. Convenhamos, é meio cara de pau.
Mas o que acontece hoje, nas análises generalistas às práticas juvenis, é mais grave ainda, a meu ver, do que defender o direito ao próprio gozo juvenil eterno enquanto cobra-se do outro, o mais jovem em termos de idade, que seja menos “jovem” em termos de “espírito do tempo” e carregue o fardo da história, fazendo a luta. Isso já seria o bastante para exigir de nós releituras críticas e inversões dos ângulos dos dedos acusatórios. Como professora universitária há vinte anos, convivendo diariamente com jovens de nosso tempo, dentro do perfil de classe que indico acima, sei o quanto é injusto com eles esse “fardo” unilateral depositado em suas costas, vindo de quem suga da ideia de juventude o que lhe apetece (descompromisso, hedonismo, irreverência, consumo, alienação etc.), mas que ao mesmo tempo acusa seus modelos inspiradores por aquilo que ele mesmo não faz, que é comprometer-se, lutar, buscar mudanças, não se conformar. Isso, este é um de meus argumentos, já seria suficientemente grave e injusto, tanto pelo que argumentei até aqui, mas também porque, embora não constituam hoje um bloco hegemônico, muitos jovens de classe média estão nas ruas, nas universidades e na vida lutando e muito. Mas há algo ainda mais complexo neste processo. Trata-se do apagamento da ação cotidiana de criatividade e resistência de milhares de jovens que não se encaixam no perfil de classe média, não contam com moratória social, que enfrentam situações adversas no dia-a-dia, que têm pouca margem para a alienação e o hedonismo, e que são protagonistas em processos de luta de enorme riqueza e complexidade.
A hegemonia faz, então, um enquadramento doloroso, quando acusa a juventude classe média de ser alienada enquanto se locupleta dos mesmos signos de alienação para sua eterna juvenilização e não leva em conta que existem jovens, dentro deste recorte de classe, que não querem esse modelo de vida consumista e celebrador da desigualdade; e um apagamento criminoso, quando não considera, em suas análises sobre a atuação política das juventudes contemporâneas, aquela construída e vivenciada por jovens em situação de desigualdade econômica, que vivem em locais estigmatizados, enfrentando situações cotidianas de opressão nos mais diversos níveis, do mais materializado ao mais simbólico, e que mesmo assim estão na luta, não desistem, enfrentam, elaboram metodologias, táticas, astúcias, dão seu jeito.
Se sou fã dos jovens da contracultura dos anos 60, sou ainda mais fã dos jovens que também lutam pela e na cultura neste nosso século XXI. A cada vez que convivo com coletivos, organismos, redes criadas por esses jovens, aprendo muito, em primeiro lugar. Fico boba ao ver como a juventude submetida a situações absurdas de opressão consegue dar nó em pingo d’água e criar, conferir sentido, lutar, exigir seu direito a significar. Como aprendi quando os vi/ouvi partilhando suas experiências, nas suas práticas esses agentes têm que saber lidar com pressões de todos os lados, seja do poder instituído, forças repressoras diretas ou simbólicas do Estado, que se sentem incomodadas (incluindo aí parte da academia, que deveria ser parceira incondicional, a meu ver); seja daqueles que estão agindo fora das margens da legalidade; seja dos moradores, parentes, amigos, que temem por suas vidas, segurança, “melhor deixar quieto”, que se preocupam com seu futuro, “por que você não arruma um emprego em vez de ficar aí sonhando?”, que por vezes desacreditam e desdenham de suas ações, formas difusas e por vezes muito duras de repressão e desencorajamento. Além disso, recursos são escassos, parcerias voláteis, necessidades diárias de sobrevivência constantes. São muitas frentes para serem encaradas. Não é fácil. Mas eles estão lá, montando redes de comunicação, propondo novas práticas de significação, exigindo vocalidade e visibilidade, reivindicando protagonismo, denunciando, colocando as versões na disputa, complexificando a realidade, apresentando outros pontos de vista. Lutando, enfim.
Poderia dar muitos exemplos de ações de jovens de setores populares que aliam vontade de transformar o mundo, necessidade de agir politicamente e acesso a novas tecnologias de comunicação e informação para criarem poderosas redes de atuação. Preferi não listar nominalmente ninguém para não ser injusta, porque são tantos que não caberia no espaço que tenho neste artigo e sempre correria o risco de deixar de fora alguns que merecem a mesma admiração e destaque. Prefiro falar de forma genérica de suas práticas de cultura e comunicação, suas formas de organização e enfrentamento, elegendo alguns eixos que os aproximam. Em primeiro lugar, a utilização das ferramentas de comunicação e informação, tanto analógicas, mas principalmente as digitais, para suas ações. Também, a preocupação em discutir os limites, ganhos e problemas da institucionalização, de atuar em redes mais fluidas ou se consolidarem como instituição com CNPJ e outros recursos burocráticos que os empoderem em termos de disputas dos recursos. Também os aproxima a criatividade para lidar com a falta de políticas públicas efetivas para suas iniciativas, sua preocupação em ocupar espaços denegridos ou preteridos, como ruas, praças, áreas estigmatizadas. Sua vontade de partilhar, mudar, fazer acontecer são de uma generosidade que comove. Mas para além desses pontos de intercessão, são múltiplos, complexos, por vezes contraditórios, compondo um mosaico de possibilidades de uma riqueza que deveria nos entusiasmar e contagiar a todos. Porque não há como não aprender com eles. Eu aprendo sempre e sou sempre bem recebida para também partilhar, trocar, ensinar.
Fazem cineclubes. Realizam mostras. Intervenções urbanas. Projetos de formação. Sites, blogs, páginas nas redes sociais que movimentam milhares de pessoas. Filmes. Shows. Oficinas. Eventos literários. Parcerias inúmeras. Dançam. Grafitam. Provocam. Promovem debates. Organizam protestos. São vitais e virais. Contagiam.
Em 2013, quando pipocaram as manifestações de protestos nas ruas, tive um sonho muito significativo, que partilhei nas redes na época. Nele, eu estava dentro de um carro, em um engarrafamento gigante, quando de repente o carro levantava voo. Isso já era um alívio, mas o melhor ainda estava por vir. Um pequeno pássaro azul brilhante começava a voar em torno do meu carro alado, fazendo movimentos alegres e dançantes. Eu ficava olhando maravilhada. E em certo momento, eu estendia a mão para fora do carro e esse pequeno pássaro azul pousava nela. E magicamente ia se fragmentando em milhares de pequenos pedaços azuis. E então eu é que saia voando, livre, “jovem” novamente, como nos meus sonhos de trinta anos atrás, em que eu, hoje quase cinquentona, voava muito. Nunca mais havia voado nos sonhos. Presa. Terra. Razão. Desencantamento do mundo. Acordei muito emocionada. Reencantei. Pensei nos meus alunos queridos, críticos, que não desistem, que estavam nas ruas protestando, e em todos esses jovens múltiplos que descrevi acima, com os quais tenho convivido nos últimos anos através de pesquisas, eventos, encontros… Eles eram meu “pássaro azul”. Depois relacionei o pássaro azul ao do twitter, que nas manifestações de contra hegemonia tem desempenhado papel fundamental. E conheci o poema lindíssimo de Bukowski, que reproduzo aqui, para encerrar esse artigo, como uma espécie de tributo a essa juventude complexa e rica, que me liberta sempre, me permite voar novamente. A essa juventude que é mais que potência, é poder mesmo. Que não é fácil de se compreender, porque é múltipla, complexa e contraditória. Que não merece ser cobrada de forma unilateral e simplificadora pelo “fardo da história”. Mas que em sua diversidade, ambiguidade e criatividade, segue transformando o mundo, que não anda fácil pra ninguém. Para eles, para todos nós, “O pássaro azul”, de Charles Bukowski, na tradução de Pedro Gonzaga:
“Há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo, fique aí, não deixarei que ninguém o veja.
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas eu despejo uísque sobre ele e inalo
fumaça de cigarro
e as putas e os atendentes dos bares
e das mercearias
nunca saberão que
ele está
lá dentro.
há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo,
fique aí,
quer acabar comigo?
(…) há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.
eu digo: sei que você está aí,
então não fique triste.
depois, o coloco de volta em seu lugar,
mas ele ainda canta um pouquinho
lá dentro, não deixo que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim
como nosso pacto secreto
e isto é bom o suficiente para
fazer um homem
chorar,
mas eu não choro,
e você ?”