Ainda vou escrever mais sobre como tenho aprendido o que é ser mulher. Aprendido porque por razões distintas à minha geração de mulher branca faltaram leituras de autoras. De pensadoras mulheres. Faltaram as mulheres unindo-se. E um poder-dizer juntas. Aliás acho até hoje mais difícil a mulher branca se unir. Como se a identidade branca (com seus privilégios, seu medo de perde-los, seu modo de controlar, de excluir, de classificar, de estratificar, etc.) ficasse todo tempo maior do que a possibilidade de união da mulher. Porque de fato é. Em termos lógicos é assim que é: esse elemento majoritário dominando. Entranhando. Determinando os nossos modos de relação. Rapidamente em defesa da família. Logo: dos maridos. Dos homens. Do poder. Nada disso nos empodera. Nunca empoderou. Mas continua aqui. Agora. Traçando os modos. Os comportamentos competitivos. Excludentes. Sorridentes. Civilizados. [Essa deve ser uma questão a ser colocada constantemente pelas mulheres brancas dentro da estrutura racista e sexista deste país].
Vou escrever também sobre como adentrar a madureza do tornar-se mulher em meio à cultura eternamente jovial da universidade. E dos braços do biopoder. E como essa dupla -jovialidade-biopoder- depende e sustenta a cultura sedutora do homem que “ensina”. E como sobreviver mulher nesse meio acadêmico. Que “ensina”. Depois de um tempo que já conta uma trajetória. Intelectual. E anti-intelectual. Vou ainda escrever. Sobre o anti-intelectualismo na literatura. Seus sintomas. E um algo de sua genealogia. Um marco dela: o texto de Ana Cristina César “Os professores contra a parede”. Tentar dizer. Para que o poder-dizer valha algo. Para mim mesma. E para qualquer outra. Para que muitas não sigam. Um anti-caminho. Feito da minha deambulação. Entre áreas. Gêneros. Gerações. Para que a mim e porventura a elas não acometam mais. Os ‘meus’ silêncios.
Para poder-dizer que até hoje são as mulheres negras. As que habitam a minha vida. As que insurgem em minha vida. E as que eu leio. As intelectuais negras. As que mais me ensinam o que é ser mulher e intelectual hoje. Que é mesmo quando as leio que entendo os meus traumas. E também o que nunca sobre o qual pensei. Mesmo quando sentia. E que isso é enorme. Já que passei anos dedicada a pensar. Com todas as diferenças e com muito respeito. Estou certamente ao lado delas. São elas que me autorizam finalmente dizer que não estou ao lado dos homens que me formaram. E cada vez menos. E que isso é um fato. Um fato político-físico-afetivo-psicofísico-afetivo-político. Porque é sobre o corpo que se inscrevem as desvalias. A das negras objetificadas em todo mundo branco como mero instrumento sexual. As mulheres belas-erotizadas-feitas de seus desejos. Desqualificadas no meio intelectual. Burras. Objetos constante do assédio. E posterior desprezo. E, sobretudo, de uma das regras que o determina: a separação radical entre o intelectivo e o sensível. O intelectual e o sensual. O corpo e o pensamento.
Assim é. Aí estou: “Embora hoje haja sem dúvida muito mais negras acadêmicas elas são na maioria das vezes anti-intelectuais (uma posição que é frequentemente consequência do sofrimento que suportaram como alunas ou professoras encaradas com desconfiança e desprezo por seus pares)”. [HOOKS, Bell. Intelectuais Negras. In: Estudos Feministas Ano 3, num. 472]
Repito: encaradas com desconfiança e desprezo por seus pares.
Publicado originalmente no blog Mar da Carne, de Ana Kiffer
https://anakiffer.blogspot.com.br/2017/06/fulminato-2.html