– Nigga shit, Nigga shit, Nigga nigga nigga shit!
Cassius Cash Green grita sobre a batida eletrônica, microfone em uma mão, balançando a outra para cima, entre o constrangido, o incrédulo e a raiva. A sua frente a plateia de gente branca vai à loucura repetindo as duas palavras a plenos pulmões.
A cena de Sorry to Bother you (Boots Riley, 2018) marca um ponto de virada do filme. Após uma meteórica ascensão na carreira do telemarketing, o jovem negro é convidado para uma festa do seu patrão yuppie 3.0 branco. Muito álcool, muita cocaína e muita gente branca. Cash é a nova estrela da companhia, batendo recordes de venda via telefone a partir da sua imitação perfeita de uma voz branca (soando “como se não se importasse”, “com as contas pagas” e “feliz com o futuro”).
Sendo assim, ele é uma das atrações da festa como menino prodígio e convidado lá pelas tantas a encenar não mais a sua voz branca, mas a sua performatividade negra (“tiros na cabeça”, “as merdas de gangster”, o talento para fazer rap). Ou seja, todas as expectativas do milionário branco sobre experiência urbana de juventude negra. Encurralado, Cash manda os seus nigga shit que correspondem exatamente à imagem branca de sua negritude.
O filme de Boots Riley navega com bastante deboche pelas premissas absurdas do que se espera das performatividades negras (quando esta deve ser branqueada e quando escurecida) nas sociedades capitalistas anti-negritude. A dupla consciência das personagens negras sobre como o jogo performativo se opera é ao mesmo tempo uma forma de navegar o sistema (vender mais enciclopedia ou armas de destruição em massa, ou expor arte de protesto negra para críticos e merchants brancos), e de se estar inexoravelmente capturado dentro dele (ser o preto da festa, receber sangue de animais na cabeça).
E quando falamos de cinema negro? O quanto desta performatividade é manter-se no jogo expressivo e o quanto é captura? É possível mensurar o que não se vê?
Performando para e contra a câmera
Em Afro-Fabulations, The Queer Drama of Black Life (2018), Tavia Nyong’o volta à performance de Crystal LaBeija no documentário The Queen (Frank Simon, 1968) após os juízes premiarem uma jovem competidora branca no Concurso de Beleza do Miss América All Camp. A drag negra denuncia a cumplicidade tanto dos organizadores e juízes do concurso quanto da equipe do documentário na sustentação de um regime de encenação e representação racista, no qual ela (ou outra drag negra) nunca poderão vencer. A reação de LaBeija reafirma o lugar de impossibilidade no jogo performativo e ao mesmo tempo o hackeia – capturando o acontecimento para si.
Se no filme a ruptura operada é um breve momento que pode ser reordenado na narrativa documental como “risco do real”, “franja do presente”, “improviso”; há também algo que vaza para além do filme e do cinema, no geral.
[The Watermelon Woman (Cheryl Dunye, 1996) é uma fabulação crítica preta lésbica feita a partir daquilo que vaza da encenação negra no cinema clássico dos EUA].
Se o pró-fílmico é base constitutiva da relação personagem real e câmera documental, como pensar uma teoria do contra-fílmico a partir da captura das performances negras que resistem a serem enquadradas?
Quando o invisível se torna visível, o olho demora a acostumar. Em um primeiro momento parece inexistente. Parece invenção. Depois são muitos. E, por fim se desenha, com precisão e é dessa forma que a gente vai enxergando: o azul no preto. Ou o preto no azul. E eu sei que eu agora também tô sonhando com as pessoas que virão depois de mim. Além de azul e preto, essas pessoas vão ver todas as cores, todas as formas, sentir todos os cheiros e provar todos os sabores. Acho que isso é liberdade: poder ir prum lado ou pro outro da ponte. E é por isso que eu peço a benção também à essas pessoas mais novas que virão depois de mim.
NOIRBLEU, Ana Pi, 2017.
“Corpos negros não são iguais à negritude”
Racquel J. Gates e Michael Boyce Gillespie nos lembram também que a performatividade negra não corresponde necessariamente à liberação ou recuperação. Ser preto, parecer preto, performar preto, encenar preto: para que(m)? Com que(m)? Contra que(m)? [Ou, pode ser só nigga shit].
E:
Um estudo do cinema e mídias negras que apenas iguala a inclusão de realizadores e personagens negros com uma prática cinematográfica revolucionária nunca efetuará verdadeiramente uma transformação, mas no lugar, simplesmente justificará uma história de corpos negros trabalhados por e trabalhando para a branquidade em níveis ideológicos e formais (por exemplo, blackface, cinema de questões sociais…).
Gates, Gillespie, 2019,tradução livre.
Se corpos negros não equivalem à negritude; negritude não corresponde à libertação; presença e representação negras não são em si revoluções no regime das imagens; no campo do visível, o que é possível a partir das performances negras pro/no/contra o cinema?
[Há ainda a captura da experiência negra como único recurso expressivo. Juliano Gomes (2018) deu a letra: “Se o necessário é performar transparência, ser ‘autêntico’, ‘verdadeiro’, é bom redobrar atenção”. E pergunta: “Como atuar por estratégias ativas de opacidade?”].
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O que pode ser o cinema, e o cinema negro, brasileiro?
A pergunta feita por Heitor Augusto no início de 2018 aponta para uma série de possibilidades e enfrentamentos de um campo em expansão. Entre tantas questões, a que nos interessa enquanto investigação das performatividades negras em cena: “Quais filmes serão percebidos como ‘mais negros’ que outros? Quais mises en scène serão interpretadas como ‘mais próximas’ de uma autoria negra do que outras?”.
Uma pergunta é: como performar negritude para além da ancestralidade?
A outra pode ser: como performar negritude fabulando a ancestralidade, o “testemunho”, o “verdadeiro”, o essencial?
As duas se complementam.
Obs. 1: Em Cartucho de Super Nintendo em Anéis de Saturno (2018), Leon Reis colocou o videogame na encruzilhada.
Obs. 2: Em NEGRUM3 (2018), Diego Paulino colocou Aretha Sadick na espaçonave do Sun Ra.
“(…) o gênero é um antagonismo para as mulheres negras porque o gênero é construído e reproduzido de maneiras que só podem nomear as experiências de certos tipos de mulheres. Em vez de buscar a inclusão nas relações de gênero que não podem contemplar a miríade de experiências das mulheres negras, o feminismo fugitivo recusa completamente a categoria de gênero, adotando uma categoria transgressora do fugitivo – aquele que foge da dominação e se une a outros para construir coletivamente uma nova política de libertação”
Apresentação da Conferência Fugitive Feminism,organizado por Akwugo Emejulu, 2018.
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Impossível ir ao cinema sem me encontrar.
Espero por mim. No intervalo, antes do filme, espero por mim.
Kara Keeling (2003) relendo Frantz Fanon nos lembra que antes de ser imagem no/do cinema, a Imagem Negra (e a Imagem Branca) são constitutivas dos regimes de representação das sociedades coloniais e pós-coloniais:
Em vez de se identificar com uma imagem específica de “negritude”, o jovem negro já foi identificado como tal. Não é a identificação do Negro de si através de imagens existentes de Negros que condiciona a predicação do ego (self) Negro, mas uma identificação coletiva prévia (amplamente baseada na equação pele=identidade) do Negro como “Negro” (com toda a “historicidade” que isso carrega).
Keeling, 2003, p. 100., tradução livre.
Assim, a experiência ontológica negra passa não por um processo de autorreconhecimento e descoberta internos, mas de identificação social externa. No regime de representação colonial ser negro é ser sobredeterminado pelo olhar branco, não como ficção individual, mas como uma coletiva. É essa imagem negra ficcional de si que Fanon espera encontrar no famoso trecho de “Pele negra, máscaras brancas”. Esse momento de espera antes do filme marcado pela antecipação e angústia do espelhamento do regime de ficcionalização da imagem negra performada nas imagens do cinema.
Se o tempo do intervalo é angústia, Keeling pensa-o também como (im)possibilidade, virtualidade. Na espera pela imagem preta que confirma o jogo da representação colonial, no tempo em suspenso que não se atualiza, ali reside também o desejo por uma imagem negra que não pode existir – mas que sempre já existe como o desejo, como o negativo virtual da imagem projetada.
Se o cinema recaptura e normatiza o performar-se negre, essa imagem que ainda não existe na tela e já existe como aspiração do intervalo é “liberação” e “abertura” – é o que foge.
(Mas como vê-la?)