Dossiê: Situar/Mover - Corpo, território, política

onze barrigas

Onze vezes, e onze delas a  termo: as vizinhas todas perguntavam como ela fazia para não perder menino – dos filhos todos vivos só dois tinham morrido, mas aí já foi de doença, os outros graças a Deus ela conseguiu criar de ventre cheio. Ela tinha muita força na reza, foi o que disse às vizinhas, afinal era ela quem puxava as novenas. E agora fazia meses que tinha a novidade atrasada. Mais uma vez. Onze vezes.

A verdade é que quando alguém carrega o décimo primeiro filho, já adivinha com toda evidência o que o corpo vai executar. Célia estava sentada na cozinha e, na mesa à sua frente, deixava pela metade o biscoito de polvilho. Tinha também um copo do café frio que não conseguiu beber. Eram os enjoos, ainda. Desta vez, porém, tudo parecia um pouco diferente. Ela estava velha. Tinha impressão de que seus órgãos já não estavam no lugar, agora a barriga de grávida lhe pertencia mesmo sem deitar filho, sempre inflada para frente. Ela nem sabia por que o homem a procurava ainda daquele jeito; que a deixasse finalmente em paz com seus órgãos atrapalhados. Mas não: ela sempre suportou com silêncio a procura – bastava duvidar se ainda era mulher e logo vinha ele de novo para prová-la barriga adentro, naqueles que eram seus momentos de mais ódio. Não que ela não o amasse. Sentiu a cabeça doer.

Ontem Dória veio visitá-la. Célia não via como, mas Dória achou um modo de descobrir. Não foi pela barriga, que embaralhada como está já nem se mostra. Nem pelas sardas que lhe apareciam no começo, porque com essa idade a cara já está cheia delas. Quando Dória respondeu que escutava o feto, Célia imediatamente se arrependeu de ter perguntado como soube. Virou-se para botar a água no fogo, rápida que era para dissimular a faceta de bruxa da vizinha. Enquanto mexia o açúcar na água, Célia abominava aquela Dória sentada à sua mesa.

Dória era sua vizinha há anos – odiavam-se, mas não se desentendiam. Quase todas as tardes tomavam café juntas. A verdade é que Dória não era boa o suficiente para sentir vergonha: ela vinha às tardes como se fosse convidada, bebia café como se fosse seu. Às vezes chegava mesmo a pedir broa, sentindo-se freguês. A Célia fazia a broa porque sabia que Dória viria, quando Dória não pedia, ela sentia-se obrigada a oferecer logo no primeiro gole. Célia odiava mesmo a Dória. Mas ontem Célia botou o tabuleiro na mesa ainda antes de ferver a água, a Dória tinha começado a sussurrar numa voz doce, falava até como se gostasse dela. Naquele jeito meio de bruxa, ela previa seu pensamento, e dizia: antes de batizar não tem problema. Não tem nome, é verdade: sem batizar nem é gente ainda, Célia recapitulava sozinha em frente à sua metade de biscoito. Quase simultaneamente, porém, ela pensava nos dez pais nossos que rezaria à noite: perdoa-me, meu Deus, por maldizer os filhos do Senhor.

Naquele dia, Dória havia chegado de mais uma de suas viagens. Dória sempre viajava. Teve só dois filhos, agora já grandes e casados, mas mesmo quando pequenos ela não ficava amarrada. E ela não suportava homem vigiando, tampouco: seu Alberto, marido dela, vez por outra tentou botá-la no prumo, mas o que se dizia por aí é que ela é que dava o domínio no homem. Descarada, ela ganhava dinheiro de todo jeito – vendia ovo, bijuteria, perfume, até o cabelo liso das virgenzinhas das fazendas ela cortou de graça um tempo atrás, correndo depois para vender na cidade. Célia odiava toda aquela prerrogativa.

Ela passou a mão nos cabelos, curtos e secos. Gostava quando podia sentar-se à mesa e pensar – a cozinha era uma espécie de templo só seu. Célia tinha parido apenas machos e eles andavam por ali só de passagem, ela ficava quase sempre sozinha naquele reino. Suspirou. Olhou para baixo e viu a barriga, passou as mãos: a décima primeira. Ainda duvidava se caberia criança dentro daquele monte confuso de órgãos, vai ver já tinham se atravessado uns nos outros lá dentro. Bem que ela podia estourar: Célia já não sabia se querer morrer era pecado – matar um filho é que não matava. O fato é que tentava qualquer solução. E não entendia por que havia falado disso a Dória no dia anterior, nesses assuntos era melhor a sonegação.

O que Célia não suportava mesmo era essa sensação tão próxima de virar bicho. Os olhos chegavam a arder ao pensar em ficar cheia de instinto de novo. Célia escorou a testa nas mãos, o biscoito na mesa ficou bem perto do nariz. O cheiro. Nada mais descia, o feto mudava o gosto das coisas. Toda vez que embarrigava, ela se perguntava como podia um filho tão dentro mudar o que estava fora nela: era como se ela provasse pela primeira vez todas as comidas de novo – e nada era bom. Os olhos ficavam embaciados, secos, e tinha todo aquele sono que dificultava terminar as tarefas, era como se a barriga subisse para a cabeça. Seu ventre também ia se torcendo, ao modo da cabeça, o que lhe dava umas dores muito fortes. Sem contar ficar empachada daquele jeito na latrina. E depois que nascia, não aguentava mais todo o resguardo, a precaução toda. Banho disso, assento daquilo, quarenta dias de frango, nada de comida dormida. E o cabelo lambuzado, a coceira, oito dias sem lavar. Tão bicho. Ela não aguentava perceber-se desse modo, dona de cria. O marido brincava que ela chegava a esturrar. É verdade. Faltava pouco para cravar no homem as unhas, meter os dentes, do tanto que ela o detestava naquelas horas.

O cheiro do café frio lhe deu ânsia, levantou-se e entornou o líquido na pia. Quando voltou, percebeu a garrafa no outro lado da mesa. Dória que trouxe, hoje cedo de manhã. Célia olhava. Fez que não com a cabeça: se ela se emprenhou, foi Deus que quis assim. Deus que quis.

Deus é homem, isso sim, ela pensou: Deus não sabe o que é carregar onze meninos. Deus criou só com pensamento. Depois assustou-se com a blasfêmia. Implorou para deus: me perdoa, meu Deus, me perdoa que meu pecado é muito maior. Ela teria de rezar todo o terço à noite – seu pecado era não apenas maior como muito mais interno: vinha dessa carne que crescia dela, vinha dela que crescia, como podia ela estar tão grande perante Deus? A verdade é que ela se sentia multiplicar. Ela ficava cismada com a ganância daquele ser tão pequeno dentro dela: ele parecia acreditar demais que merecia o mundo.

Célia duvidava se seria capaz de amá-lo um dia. Arrependia-se da dúvida antes mesmo de firmar o pensamento, mas a verdade é que não queria ser obrigada a isso. Aquele ser impunha-se inteiramente a ela. Ele fazia o corpo dela ter a única tarefa de fazê-lo, e ela estava cansada. Seu interior talvez já cheirasse a podre, era assim que ela se sentia. Cozinhou demais, cozinhou dez vezes, agora passou do ponto, estragou. Ela achava que nem pegar menino mais ela pegava, parece que esta vai ser a última vez. Se ao menos fosse a última vez.

Às vezes tinha a impressão de que sentia o sangue correr também dentro do menino. Era seu sangue: o dela. Se não tinha forças nem para ela mesma, como podia se dividir entre ela e ele? Sentia-o criando-se nos seus fios de sangue, feito um tecido grosso teado, e ela perdendo pouco a pouco o seu aspecto de saúde. Célia vinha ficando cada dia mais pálida, era como se sua cor se escondesse na carne que crescia ali dentro. Nenhuma outra gravidez tinha sido assim. Antes seu sangue só demorava a circular, as pernas é que inchavam. A criança ficava tragando bem devagar, gota a gota, e então ela conseguia se aguentar até o fim. Desta vez, não. É como se crescesse dentro dela um pequeno voraz, que queria engoli-la toda de uma vez e ficar inteiro no seu lugar. Célia está muito velha para brigar.

Toda gestação foi sempre assim: uma luta entre quem fazia e quem era feito. Parir sempre é perigoso. Só que agora ela já não sabia quem venceria quem: confundia quem levantava o comando. Tudo o que sentia era esse pequeno diabo no seu ventre. Ela tremeu, rezar apenas um terço não seria suficiente. E ainda havia aquela garrafa à sua frente – como ela odiava a Dória. Não sabia onde a mulher tinha juntado sabedoria. Agora ela estava virando raizeira, o povo já corria para ela para qualquer doença. E ela fingia modéstia – ontem, mesmo, ela ficou falando com aquela voz de amizade, disse que Célia tomasse todo o seu tempo para pensar e descobrir, mas que havia uma lista inteira de possibilidades, quina, carqueja, buchinha, losna, jurubeba, canela e muitas outras, a melhor era chá de casco de burro. Todo mundo faz, disse Dória. A gente só não conta pro marido.

Eu vou morrer, Dória. Célia havia dito a ela: é uma espécie de preventimento, se essa criança escapa, eu morro, se ela morre eu vivo. Os olhos de Dória se encheram de lágrimas; mas, bruxa que era, não deixava as coisas se decidirem por si próprias. Dória disse: pede a Deus, Celinha, pede para ele lhe mandar um sonho. Pede para entender. E Célia nesta manhã esperou com pressa a vinda de Dória, que também veio com pressa. Trazia uma garrafa nas mãos. Célia queria muito contar: sonhei com meu enterro, Dória. Sonhei que era eu deitada na mesa, já com roupa de luto, mas minha barriga se mexia, era o bicho dançando dentro de mim. De repente ele apontava uma faca de dentro para fora, ele abria o seu próprio buraco porque do meu buraco finado ele se recusava. O sonho ficou tão verdadeiro. Mas como é que Deus mandou esse sonho? A Célia ficou desconfiando que o recado tinha se desviado, caído por engano no outro, não em Deus. Mas a Dória não entendia as coisas desse jeito. Não, só de Célia se lembrar já era um sinal – bastava agora encontrar no sonho a antecipação.

Dória partiu e Célia se questionou se foi ofensa da vizinha tê-la deixado a sós com todo esse segredo. Que podia fazer ela ali tão sozinha? Permaneceu sentada, já que não sabia se tinha permissão de fazer outra coisa. Foi lembrando as conversas de antes, aos poucos foi se sentindo à vontade. Tão sozinha, deixou que viesse nascendo um pensamento desnudo: ele cobrava a vida dela pela dele, um filho tão avaro não podia ser de Deus. E que menino já nasce em pecado? Faltava pouco para se decidir. Fechou os olhos e foi adiante, pensou no medo. Seu medo não era da barriga, devia estar em outro lugar, talvez no próprio medo, pensava na punição. Estava tão insegura das certezas privadas, era como se olhasse uma coisa grande demais. Mas agora ia descobrindo como sair delas – Célia sentiu-se subitamente poderosa: talvez fosse sua primeira vez.

Levantou-se da cadeira. Quem sabe até, quando morto, vou poder adorá-lo como um santo, ela pensou.

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Edição 3