Dossiê: Situar/Mover - Corpo, território, política

O corpo na rua é protesto

Em memória de Araceli Crespo, e dos corpos das mulheres desaparecidas.
Para Laura Paste quando recorda: a pausa ainda é movimento.

Este ensaio busca tecer com o corpo o que o faz como resistência na cidade. Tomamos a pergunta “O que é ser mulher numa cidade com nome de mulher?”, principal ponto de reflexão do espetáculo teatral “Todas as ruas têm nome de homem”, da Confraria de Teatro. Nosso pano de fundo são os temas narrados durante a apresentação para pensar o corpo enquanto possibilidade de abertura da experiência para ocupação da cidade. A peça em cartaz na cidade de Vitória (ES) –  considerada a pior cidade brasileira para ser mulher, de acordo com o último mapa da violência – realiza uma cartografia do feminino e performa a vida de quatro mulheres a partir das relações experimentadas na cidade. A reflexão sobre os modos de subversão das regras impostas ao corpo da mulher passa por, mas não somente, nossa afirmação de um corpo que não se submete e ocupa o espaço público. Entretanto, sabemos que esse corpo não opera só e a mulher como uma minoria social (assim como negros e LGBTs) está sujeitada à violência física e moral, bem como a uma normatividade que ultrapassa os limites da gestão do seu próprio corpo e da sua vida.

Manifestação do dia 2 de junho “Por Todas Elas.
Foto: André Alves.

O espetáculo chama-se “Todas as ruas têm nome de homem” e se passa na cidade de Vitória, Espírito Santo. Entrou em cartaz duas semanas antes do caso do estupro coletivo no Rio de janeiro [1] e 43 anos depois da tortura e morte da menina Araceli Cabrera Crespo [2]. Após a disponibilização dos dados do Mapa da Violência de 2014 [3], as integrantes da Confraria de Teatro [4] sentiram-se provocadas pela constatação de que o Espírito Santo era (e ainda é) um dos estados mais perigosos para as mulheres.

O espetáculo foi criado a partir dos debates e dos diálogos em grupos sobre a mulher na sociedade, machismo e violência. O grupo iniciou uma pesquisa realizando uma cartografia do feminino na cidade e uma roda de conversa ‘Cidade para mulheres – Violência urbana e segurança’. Houve também um processo de escavação em busca de documentos sobre casos de mulheres assassinadas no Arquivo Público do Estado. Um esforço para uma arqueologia do feminino, capaz de mergulhar em histórias enterradas. Assim, para compor essa cartografia, as integrantes do grupo caminharam entre as ruas da cidade e os edifícios: conversas no banco da praça da cidade, o asilo, o Presídio Feminino de Bubu, em Cariacica. Reuniram fragmentos de fala e memórias das mulheres que habitaram e habitam uma cidade com nome de mulher; e a maior taxa de feminicídio do Brasil.

O espetáculo “Todas as Ruas têm nome de Homem” tem início em frente ao Arquivo Público.
Foto: Confraria de Teatro.

Somos mulheres e vivemos numa cidade onde todas as ruas têm nome de homem. Acabamos buscando nas atrizes as nossas próprias performances diárias pelas ruas da cidade. Os espaços e as temporalidades diferentes (do espetáculo) não nos distanciam da nossa posição minoritária e sobrevivente. O que quer dizer o ato de performar nas ruas, jogar-se no mundo da experimentação? Sentimos ainda que algo nos foi retirado, por ora, a rua regrada pelo ditado “aqui não é hora nem lugar” para mulher. Entretanto, nós entramos em modo inventivo, algo aconteceu e arrebentou as amarras. A performatividade do corpo imprime outros mundos, nada está cravado e, por isso mesmo, reivindicamos as ruas. Outras experiências, outras possibilidades se abrem enviesadas por uma dinâmica do corpo não mais esterilizado: nós vamos para as ruas dançar em saltos porque qualquer hora e lugar podem ser possíveis. O desafio do modo de corporificar – o que pode um corpo tomado pela vontade de existir?

Sinopse: quatro mulheres, em 1930 e em 2016, caminham pela cidade para reconstruir o desaparecimento de uma delas. Algumas coisas permanecem, mas sempre há uma rua para ser ocupada. Uma eclosão diante de tudo isso que está “aí”:  as estatísticas de feminicídio, o aumento da taxa de homicídio das mulheres negras, o descaso nas delegacias de mulheres, o turismo sexual e a exploração sexual de crianças e adolescentes, o trabalho de meninas e adolescentes em casas de “família”, o machistério de Michel Temer, a ruína do Ministério das Mulheres. As mulheres de ‘Todas as ruas têm nome de homem’ realizam uma tessitura socio-histórica até os acontecimentos do Brasil atual.

Primeiro ato – Em frente ao antigo prédio do Arquivo Público, os espectadores conhecem a narradora. Com uma mala, ela posiciona-se na fraca luz e avisa: nós todas contamos com vocês. Aos gritos, nomes de mulheres desaparecidas. Todos são convocados a fazer uma escolha, para cada um dos três objetos oferecidos ao público um trajeto distinto pela cidade e um roteiro específico. Nos dividimos.

Segundo ato – A peça apresenta três histórias distintas, em três lugares diferentes. Três mulheres no ano de 1930.

A noivinha que gora.
Foto: Confraria de Teatro.

Terceiro ato – Caminhamos pelas ruas mal iluminadas do Centro Histórico e nos reunimos em um hotel abandonado. Nesse espaço, o público reencontra a narradora. Ela convida as mulheres à sentarem-se à mesa, e aos homens fica reservado o direito à escuta. A proposta é simples: que as mulheres conversem. Descobrimos que ela é jornalista e está escrevendo um livro a partir da pergunta: O que é ser mulher numa cidade com nome de mulher?

Ela foi desfigurada com o ácido que jogaram em seu rosto, seu rosto de menina, que já não era mais seu e talvez nesse momento ela já tivesse um corpo vazio. O nome dela me assombra a cada vez que eu passo por esse bar e lembro quando ela passou por aqui e ainda era uma menina. O nome dela é a cada ano mais esquecido. Ela morre de novo a cada pessoa que passa pela rua que não tem o nome dela, que tem o nome da família dele, que fez isso com ela. Eu tenho vontade de colar a foto dela na porta inteira, em toda a fachada do prédio, de modo que qualquer um que passar por ali só consiga pensar nela, que qualquer um que passar por ali não seja capaz de olhar o celular, de rir pro amigo, de mastigar uma bala, fumar um cigarro, que não seja capaz de pensar em outra coisa que não seja a Araceli morta, estuprada, desfigurada, a Araceli que não é mais uma criança.
Trecho do espetáculo “Todas as ruas têm nome de homem”, Confraria de Teatro (2016).

Manifestação do dia 2 de junho “Por Todas Elas.
Foto: André Alves.

Vivemos na cidade de Vitória onde Araceli foi morta. O caso Araceli, instituiu o Dia Nacional de Combate ao Abuso Sexual contra Crianças no dia 18 de maio. A menina tinha 8 anos quando foi raptada, drogada, torturada, estuprada e morta no ano de 1973. Todos os anos, na marcha organizada para marcar a luta contra o abuso sexual de crianças e adolescentes, fazemos um minuto de silêncio em sua memória, na rua que carrega o nome de um dos acusados – a Dante Michelini.

Diante dos ataques à direitos conquistados e das violências sofridas por mulheres em casos chocantes, o Brasil demonstra outro frescor – e por que não alegres levantes– da insurgência feminista. O que fica conhecido como #PrimaveraFeminista e depois deriva em #PorTodasElas e tantas outras hashtags, movimentações, protestos e encontros aqui em Vitória e que irrompe numa rua capaz de atravessar os nossos corpos. Pois é na Avenida Dante Michelini [5], na altura do píer de Iemanjá, que as manifestações tornam-se um ritual: Araceli presente. Nós a carregamos em nosso corpo.

A nossa resistência continua no presente marcada por essa rua e pelo seu nome, não só porque Araceli morreu brutalmente assassinada, não só pela impunidade dos envolvidos de duas famílias tradicionais do Espírito Santo, mas porque nosso corpo diz sim à vida. Se a encarceraram, espancaram, recortaram seu pequeno corpo de criança e lhe tiraram o rosto, a violência tinha fim de ocultamento. Nós caminhamos ano após ano para mostrar que o nosso corpo existe por Araceli. Nós caminhamos ano após ano porque nosso corpo reXiste às regras que tentam governá-lo. Essa peça existe sim – mesmo que o texto diga que ela não devesse existir – para que o corpo de Araceli em pedaços seja reunido e exista diante de nós.

Performance na Av. Dante Michelini durante a Manifestação do dia 2 de junho “Por todas elas”.
Foto: André Alves.

Nem tudo é teatro, infelizmente.
Confraria de Teatro

Seguimos para a rua. As atrizes Luana Eva, Luciene Camargo, Ludmila Porto e Thiara Pagani repetem em reciprocidade, por entre os prédios e becos, as breves escadarias – entre as ruas do Centro de Vitória somos público e participamos desse protesto, guardamos as ruas que podemos passar, o melhor caminho, o que parece seguro.  Ser mulher e transitar numa cidade com nome de mulher educa os corpos. Nossa deriva é um processo de metamorfose incessante: quais são os fragmentos desse corpo resistente? A peça na rua é protesto – insistimos em ocupar – não nos satisfazemos com as normas disponíveis. Em que medida fomos desapropriadas de nossos corpos? Ora, pois a sociedade moderna, impregnada de tamanha auto-referencialidade, designa à mulher a tarefa eterna e autoritária da procriação dos seres humanos na Terra.

Meu corpo, minhas regras!
Confraria de teatro

Ser mulher é um ato cálido. A personagem universitária (no limiar da ficção e realidade), prostitui-se para pagar a faculdade de direito, mas não tem o direito de interromper a gravidez. Ligia sabe – como todas nós sabemos – que as normas em que é reconhecida pelo outro, não são as mesmas pelas quais o outro se reconhece. O corpo da mulher continua invisibilizado por não ser reconhecido no social. O corpo é aquilo que nos localiza, ocupa um espaço – como não poderiam deixar de ser.

A prostituta Carmem (Thiara Pagani) sonha em partir pelo mar.
Foto: Confraria de Teatro.

A prostituta de 1930 vive num pequeno quarto preenchido de plantas. Canta ‘Ciranda Pra Janaína’ e conta da vida apegada ao mar. Carmem está construindo um barco para navegar para longe. O público sentado na cama de casal ou em algum banco de madeira não tira os olhos da personagem. Ela liga o rádio que toca uma balada engasgada e aguarda uma dança. O corpo de Carmem só pedia um minuto de afago – qualquer dança parecia servir. O que encena um corpo na cidade e o que pode o nosso corpo diante das normatividades?

Cumplicidade e consentimento, do corpo ao olhar, a peça é um projeto in progress. As atrizes e o público compõem uma zona temporária de intensidades, seja nas cenas da rua onde a peça é protesto, seja nos monólogos onde o roteiro ganha ares confessionais. Em 1930 e depois em 2016, uma atriz, uma noiva e uma prostituta, entregam em cenários distintos da Cidade Alta seus desejos, anseios, alegrias e tristezas.

Luciene Camargo, Ludmila Porto, Luana Eva e Thiara Pagani.
Foto: Confraria de Teatro.

Ao final, sentir-se viva para extravasar e fazer da nossa caminhada um ato político. A peça em múltiplas camadas monta um corpo em transe-mulher. Nossos mundos – são tantos! – ocupam-se da diferença. A subjetividade numa certa autonomia – talvez ainda não seja liberdade –, tem no horizonte uma pele nômade, anônima e livre. É apto a reXistência capaz de desviar da norma dominante.

“No meu novo mapa todas as ruas têm nome de mulher”: essa é a última frase do espetáculo.

[1] O estupro coletivo de uma adolescente de 16 anos no Rio de Janeiro é emblemático na demonstração da cultura do estupro e do machismo estrutural que se perpetuam no Brasil. A jovem foi dopada e estuprada por 33 homens entre dois dias. O caso chocou o país e provocou uma onda de protestos em resposta ao ocorrido e ao modo como o processo de apuração estava acontecendo sob jurisdição de um delegado homem. Por insistência da advogada Eloísa Samy e da pressão das manifestações, o delegado Alessandro Thiers foi afastado do comando das investigações.
[2] Voltaremos a falar do caso Araceli mais a frente, pois a cena em que as atrizes relembram os acontecimentos da morte da menina é crucial para a nossa reflexão sobre o corpo que resiste na cidade. Além disso, a impunidade dos autores do crime ainda é um fantasma da justiça do Espírito Santo, bem como o fato de duas conhecidas avenidas da cidade terem o nome dos assassinos.
[3] O estudo “Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres” mostra a capital do Espírito Santo com a taxa mais alta de homicídios de negras e a 2ª de mulheres no total. Disponível: http://glo.bo/295QjNa
[4] A Confraria de Teatro é formada pelas atrizes Luana Eva, Luciene Camargo, Ludmila Porto e Thiara Pagani. Em 2012 iniciaram uma pesquisa em teatro intimista, com foco em novos espaços de encenação e produção coletiva. Esse é o segundo trabalho do grupo e para a equipe de criação de “Todas as ruas têm nome de homem” convidaram o diretor Francis Wilker, do grupo brasiliense Teatro do Concreto; e o dramaturgo João Dias Turchi. Mais informações sobre a Confraria de Teatro e toda equipe do espetáculo estão disponíveis no facebook do grupo. https://facebook.com/confrariadeteatro
[5] Desde o protesto do dia 2 de junho, as mulheres em Vitória organizaram-se para encontros permanentes chamados de “Por todas nós”, estamos organizadas em grupos para recolher assinaturas para um Projeto de Lei de Iniciativa Popular que altera o nome da “Avenida Dante Michelini” para Avenida “Araceli Cabrera Crespo”.


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Edição 3