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Nietzsche

“A mulher perfeita pratica a literatura como pratica um pecadilho: a título de experiência, de passagem, olhando em torno de si pra ver se alguém a nota e a fim  de que alguém a note” – Friedrich Nietzsche (Crepúsculo dos Ídolos)

Caro Federico,

Eu li, reli. Li de trás pra frente, diversas vezes, essa sua frase, meu bigode, meu hipócrita, meu irmão. Eu fiquei muito brava. Mesmo. Experimentei toda a minha impotência nessa revolta. Visualizei um grupo de homens, sentados em uma mesa de bar, rindo, e me achando fofinha em minha fúria, enquanto me explicavam amorosamente que não foi nada disso que você quis dizer.

Essa mediação que esses caras insistem em fazer, entre mim e você me tiram do sério. Eu me descontrolei em algumas ocasiões em que isso aconteceu, mas cada descontrole só servia pra deslegitimar ainda mais o meu discurso.

Eu me lembrei da primeira vez que te li, jovenzinha, trancada no meu quarto, fazendo trabalho da graduação. Eu lembro do meu corpo inteiro vibrando, enquanto eu tinha vontade de dançar pela sala.  Sim, sim, sim!!! Os punhos fechados dando soquinhos no ar como no final do Flash dance.  Eu lembro de reprimir toda essa euforia e escrever o trabalho mais ácido do mundo. Essa acidez escorrendo pelo texto como forma de demonstrar que eu tinha entendido tudo, tinha superado a metafísica, a dialética, os binarismos, e me lançava no barquinho à deriva, enquanto o sol se punha no ocidente, em busca de um novo modo de pensar, um modo dançante, mas que eu devia demonstrar, sem dançar, pra não terminar piradona igual a você, fazendo a louca, fazendo o Dionísio em Turim.

Oh, como eu quis ser notada. Mais do que isso, eu quis ser devorada, por toda e qualquer pessoa na qual eu vislumbrasse a mesma alegria diante dessa empreitada. O século XXI, eu pensava, haveria de ser seu, haveria de ser você em sua melhor imagem. E eu oferecia, assim, meu corpo em sacrifício, pra realizar essa utopia. Em cinco anos de graduação, contudo, eu notei que só sobraria de mim a carcaça, e a medida em que o barquinho adentrava pela neblina do século eu percebia que essa promessa de liberdade ainda carregava qualquer coisa dos anos que haviam ficado pra trás.

E mudei o rumo. Em direção a um certo tipo de ascetismo condescendente. Quase uma freira, sorrindo e desviando de qualquer encontro. O meu ex-marido me chamava de monastérica (porque além de lacaniano enrustido, era capaz de perceber que por debaixo dessa frigidez ainda se encontrava um corpo em ebulição que não ficava indiferente à qualquer coisa que tangencia o que você chama de Vontade de Potencia, e que mais tarde os homens da mesa de bar vão poder te explicar melhor o que entendem por isso).

Da monasteria, passei à fúria impotente. E a uma certa raiva de mim mesma por esses anos todos em que encarnei a mulher perfeita que você descreve nesse seu aforismazinho de quinta. Napoleão foi capaz de escrever melhores.

Ao invés de praticar a literatura, fiquei com vontade de praticar o fuzilamento dos machos. Desses mesmos machos com os quais achei que podia compartilhar do erotismo da filosofia, sem me lembrar que desde Platão, não tem muito espaço pra mulher fora de casa ou do templo. Oh, que triste retrato eles formam: os homens do saber.

Mas não sei … há qualquer coisa em minha própria raiva que não me convence. De repente já não tenho vontade de conversar com você, filósofo.  Sinto a urgência de encerrar essa carta com a intuição de uma nova estratégia. Abandono o desejo de fuzilamento, como quem abandona uma garrafa d’água em um banco da praça. Eu não sou muito belicosa… não me vejo, metralhadora em punho, perfilando mequetrefes na parede do quartel. Meu lado maternal jamais permitiria,  e depois,  em que me tornaria após esses tiros secos? Eu não sei se vim a esse mundo pra me sentir empoderada.

Decidi o caminho. Vou fazer a louca e chegar no Banquete sem ser convidada, depois do Alcebíades. Sentar, beber, comer e fazer longos discursos dando a minha opinião mesmo que ninguém a peça. Vou levar uma galera comigo.  Será que vai rolar suruba?

(E não foi isso também o que você fez, quando esses homens do saber não te deram mais ouvidos?)

Te amo bigode, porra…

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Edição 1