Entre os dias 6 e 8 de novembro aconteceu a TechSampa, em São Paulo. Fui a facilitadora de uma oficina de programação para meninas e mulheres, a rodAda hacker [1]. Um encontro de troca de saberes e experiências em tecnologia com uma metodologia pensada por mulheres para mulheres. A primeira vez que participei de um encontro assim foi em novembro do ano passado, em uma edição da rodAda especial para mulheres negras, na Arena Carioca Dicró, Zona Norte do Rio. De lá para cá a relação gênero, tecnologia e raça tem estado presente em minhas reflexões, já que a maioria das tecnologias que usamos são criadas por homens cis, brancos, de classe média. E geralmente para homens. Sempre penso no que pode ser diferente quando as tecnologias são desenvolvidas por mulheres e o que pode ser mudado a partir de outras visões de mundo atreladas às suas experiências, dando novos usos às ferramentas.
Algumas iniciativas, como a rodAda e outras oficinas e encontros que visam empoderar mulheres no mundo da Internet, das linguagens de programação e no desenvolvimento de novas tecnologias, realizadas por coletivos como o Minas Programam, PrograMaria entre outros grupos criativos e desenvolvedores, demonstram que mulher e tecnologia é uma combinação potente que gera soluções para problemas que são enfrentados na grande maioria por mulheres, como a questão do assédio sexual. Cada vez mais (e ainda bem) vemos novos aplicativos e sites desenvolvidos por mulheres com a função de combater a violência cotidiana que sofremos no espaço urbano, seja nos transportes coletivos, no trabalho, na rua e infelizmente muitas vezes dentro das nossas próprias casas.
Essa edição da rodAda aconteceu em seis lugares da capital paulista, para além de espaços privilegiados de acesso à tecnologia e internet, como a Zona Oeste e Centro de São Paulo sendo organizada pelo Olabi [2] e parceiros. Nestes lugares a disputa de e por uma equidade de gênero no campo tecnológico já é uma meia realidade, ainda que com muita desigualdade. Decidimos então por expandir ainda mais as possibilidade de acessar outros públicos e chegar as periferias. Nesse processo de expansão chegamos ao Capão Redondo, espaço onde criei e construí as minhas referencias sobre o mundo, me reconhecendo como mulher, negra e periférica.
Fizemos uma parceria com o “Coletivo Rosas – Fala guerreira” que reúne minas de várias periferias de SP, que atuam no bairro do Jardim São Luiz, região vizinha do Capão, para que a rodAda acontecesse lá. Há algum tempo as minas estão nessa pegada de se fortalecerem e ocuparem juntas novos espaços de poder, disputando narrativas e fazeres sobre si e suas realidades. Recentemente elas lançaram a revista impressa “Fala Guerreira” com textos, poesias e ensaios fotográficos a fim de discutir outras formas de feminismo, sobretudo o feminismo negro, periférico e não central.
A experiência no Capão me trouxe outra dimensão do que é pensar inovação tecnológica hoje. A ideia de projeto das minas do Coletivo Rosas foi criar um mapa onde fosse possível identificar os lugares mais perigosos para as mulheres na região, já que o Capão é um lugar com alto índice de ocorrência de estupros, sugerindo rotas mais seguras. Outra ideia que surgiu foi a de um mapeamento de histórias “positivas” de luta e enfrentamento das mulheres, atualizando memórias que também são importantes.
É simples perceber que os problemas e soluções tecnológicas trazidas por mulheres periféricas e negras têm potências políticas transformadoras para além do que os meios de comunicação e tecnologias tradicionais costumam pensar. É uma possibilidade de sair do senso comum e apostar no que vem a ser inovação social, onde a tecnologia contribui para transformar a vida e as relações das pessoas em todos os territórios.
Diante do contexto político, em que os direitos das mulheres são alvos de retrocesso como propostas de leis que dificultam ainda mais os processos de cidadania de mulheres, sobretudo negras – como o caso da PL 5069/213 – faz com que a gente inclusive pense tecnologia a partir de um viés excludente, muitas vezes sendo racista, machista e classista. É o senso comum fabricando um comum senso. Um ciclo que nós estamos quebrando. Por isso é necessário que estejamos dominando essas ferramentas, porque as nossas demandas só serão contempladas se estivermos com as mãos, os dedos, os olhos e a cabeça nisso, porque não farão por nós.
O processo de abertura desse tipo de código é capaz de promover transformações efetivas e nós, mulheres negras e periféricas, ainda ‘saímos na frente’ quando o assunto é violência em toda a amplitude que o significado dessa palavra tem. Mas isso vai mudar! Importante falar de mulheres negras que estão disputando espaços até então “não pertencentes” à elas, inventando lugares, participando dos debates e das discussões como Jenyffer Nascimento, Yasmin Thayná, Karina Vieira, Janaína Damaceno, Dai Ramos, Alessandra Tavares, Luana Dias, Thamyra Tâmara, Débora Marçal e muitas outras com seus textos sobre o primeiro assédio, ocupando colunas de homens na campanha #agoraquesãoelas e muito mais.
De alguma forma essas mulheres influenciam e empoderam outras minas que a partir de novas referências se sentem seguras para criar, e principalmente, para se reconhecerem e se unirem à outras mulheres. Isso demonstra que existe sim a presença de mulheres negras, periféricas e faveladas pensando novos arranjos e contribuindo para a transformação das relações em que o racismo e machismo sejam superados. Novas relações.