Dossiê: Falas e falhas da Universidade

Mulheres na Universidade

Convidamos professoras universitárias para falar de suas experiências frente às atuais pressões de tempo, produção, avaliação e performance na vida acadêmica. Nosso desejo é criar um campo comum de falas e experiências e deslocar a ênfase dos resultados individuais para a reflexão coletiva.

Participaram dessa entrevista:

Daniela Tonelli Manica, mãe de H., de 6 anos. Professora de Antropologia Cultural da UFRJ

Giovanna Dealtry, mãe de Bento. Professora de Literatura Brasileira da UERJ

Patrícia Valim, mãe de Ana, Maria e Bento e avó de Maria Antônia. Professora de História da UFBA

O TEMPO QUE FALTA

Patrícia: A sensação de falta de tempo é um legado do capitalismo e por isso é constantemente ressignificada. Atualmente, essa sensação tem sido alçada ao patamar de epidemia contemporânea em razão da aceleração de conexões e supressão de fronteiras que invadiu todas as esferas da nossa existência, deixando-nos em um constante estado de angústia causado pelas possibilidades não alcançadas, em uma época cujo espírito é o “tudo ao mesmo tempo agora”. Na vida universitária brasileira, essa angústia causada pela falta de tempo é pautada, sobretudo, pela pressão da aceleração quantitativa da produção científica, com objetivo de atender critérios numéricos das atuais avaliações, obrigando-nos a lecionar, pesquisar, publicar, participar de eventos em escala e ritmo quase industriais.

Quando pensamos esse processo por meio do marcador de gênero, essa sensação de angústia pela falta de tempo se intensifica, uma vez que nós – mulheres, companheiras, mães, professoras, pesquisadoras, militantes –fomos e ainda somos constantemente pressionadas a estender o regime de dedicação exclusiva da esfera do nosso trabalho acadêmico para as demais esferas da nossa existência. A universidade é pensada como um espaço de predominância masculina com códigos de conduta, vestimenta e quantidade de produção científica que retroalimentam um “modelo masculino de sucesso acadêmico”, criam desigualdades e hierarquizam cargos e progressões da carreira. Esse processo é visível em algumas situações: há inúmeras docentes que internalizaram a lógica masculina de carreira acadêmica para ter alguma projeção e acabaram por abrir mão de algo que queriam na própria vida; há, por outro lado, docentes que resistem à essa lógica em diversas frentes, mas são constantemente constrangidas por isso.

É o caso da docente que engravida. Eu mesma passei por algo semelhante quando engravidei do meu terceiro filho, ainda no doutorado. Na época, 2010, não foram poucos colegas, mulheres e homens, que me aconselharam a largar a pesquisa sob o falacioso argumento de que a maternidade é incompatível com a universidade. Além disso, naquele momento as agências de fomento não previam a licença maternidade com bolsa de pesquisa. Felizmente, a relação com a minha orientadora, mulher e mãe, fez toda a diferença para que eu seguisse adiante, inclusive passando a militar na maternagem ativa dentro da universidade. Tanto que,um ano depois, as agências de fomento nos concederam o direito à licença maternidade com bolsa e essa decisão se deve à pressão de várias pesquisadoras que resistem à “lógica masculina de sucesso acadêmico” por meio da construção de novas subjetividades políticas dentro da universidade pública brasileira.

Giovanna: Acho que essa percepção atinge todas as mulheres em uma sociedade em que o trabalho doméstico não é majoritariamente compartilhado e que as mulheres, em especial as mães e mulheres das camadas pobres, ainda têm que demonstrar a mesma capacidade produtiva de um homem que, na maioria das vezes, mesmo casado e com filhos, cumpre apenas um turno de trabalho. Então, diante da realidade brasileira, sinto-me privilegiada por ter uma certa flexibilidade de horários. O mesmo não acontece com professoras divorciadas – universitárias ou não – que trabalham à noite e não tem com quem deixar os filhos.

Senti também quando meu filho nasceu e eu “apenas” cumpria minhas obrigações de ensino, deixando a pesquisa de lado, para cuidar dele. Ora, isso é visto como um “atraso” na sua vida acadêmica, ainda que eu continuasse trabalhando. A academia, como qualquer outro espaço de trabalho voltado para a produtividade, ainda privilegia a mulher que deixa o filho do lado de fora do espaço de trabalho. Eu, como mãe, não tenho a disponibilidade de horários que outras mulheres sem filhos têm. Não à toa vemos professoras adiando ou mesmo desistindo de ter filhos, quando é um desejo delas. Ainda existe esse fosso. Mas, comparando com outros espaços e classes sociais, ainda me sinto uma privilegiada.

Daniela: Eu compartilho sim essa sensação de falta de tempo, que ultrapassa a vida universitária. O tempo é o que temos de mais precioso, o tempo é a vida, e é o que “vendemos” através da nossa força de trabalho. Eu me encantei pela universidade pela possibilidade de aliar a esse processo de trabalho assalariado à dimensão do prazer, do crescimento pessoal, do aprendizado constante, de uma presença interessada no e pelo mundo, e na e pela vida. Mas depois que me tornei professora, aqueles momentos de prazer e crescimento que me encantaram tanto quando eu era estudante diminuíram de maneira muito significativa.

Isso tem a ver, claro, com toda a dimensão estrutural que exige a manutenção da universidade como um espaço autônomo, na qual nos engajamos como professoras. Mas tem a ver também com a precariedade da nossa estrutura de trabalho, com a sobrecarga de atribuições que temos, com uma excessiva burocratização e a nossa adesão à cultura da avaliação/auditoria. Passamos boa parte do nosso tempo útil fazendo projetos e relatórios e prestando contas, e avaliando processos de outras pessoas que estão fazendo o mesmo. Não que isso não seja importante, eu concordo que o dinheiro público investido em nosso trabalho precisa ser concretizado, e que esses resultados devem se tornar visíveis, e sobretudo disponíveis (gratuitamente!), mas eu acho que há uma inversão de valores que envolve o tempo que gastamos fazendo essas coisas e o tempo que gastamos demonstrando, de diversas maneiras, que as fizemos. Me parece que essa lógica pressupõe que, se você não produz corretamente as provas do seu trabalho (como coloca Claudia Fonseca), isso pode significar que você não está trabalhando. E isso é incompatível com a multiplicidade de atividades que envolvem a vida universitária, muitas delas desvalorizadas e invisibilizadas.

EFEITOS DA AVALIAÇÃO DA PRODUÇÃO

Giovanna: Critérios de avaliação são necessários para que não tenhamos dentro das universidades professores que não contribuam de forma mais global com a sociedade. Se a universidade pública sustenta-se sobre o tripé pesquisa, ensino e extensão é preciso que esses três eixos sejam avaliados, inclusive respeitando a diversidade de cada área do conhecimento. Como o sistema está colocado hoje nota-se  que a produtividade acadêmica, e a palavra produtividade já nos mostra o caminho pelo qual as agências de fomento nos avaliam, está muito mais valorizada do que a inovação, a originalidade, e as resoluções efetivas de integração entre academia e sociedade; em resumo, quantidade ao invés de qualidade. O que nos leva a uma outra pergunta. Os melhores artigos, por exemplo, estarão realmente publicados nos periódicos Qualis 1A? Ou estamos produzindo pesquisas “seguras”, com uma bibliografia atualizada (que parece ser um critério importantíssimo para os pareceristas), mas que não estão, necessariamente, tendo um papel inovador?

Outro problema é a busca desenfreada por ‘atingir os padrões Lattes”, que tem como efeito colocar em segundo plano o ensino da graduação. Penso que isso sempre existiu. A Pós-graduação vista como um certo Olimpo e a graduação destinada aos professores “que estão começando” ou não tem uma produção científica sólida ou, ainda, povoada por professores substitutos. Na UERJ, essa condição já foi resolvida e hoje temos nossos quadros formados apenas por professores concursados. As agências estão, a meu ver, contribuindo ainda mais para esse fosso. Como se avalia um professor em sala de aula? Quem avalia? Por que publicar o enésimo artigo sobre o mesmo tema é mais valorizado do que um semestre dentro de uma sala de aula nas graduações de licenciatura de onde vão sair os futuros professores?

Não se trata, portanto, de recusar os critérios, mas de tentar flexibilizar os critérios para cada área de conhecimento. Um pesquisador de Literatura Brasileira pode ser avaliado da mesma forma que pesquisador da Engenharia? Para modificar isso, no entanto, teríamos que nos organizar de modo a pressionar as agências.

Daniela: Eu me formei no momento em que os sistemas de avaliação estavam sendo implantados, e me tornei professora já nesse processo atual em que eles operam ainda de maneira relativamente variável em alguns de seus critérios, mas dos quais não podemos mais escapar.

Eu entendo que há um parâmetro central que tem sido até problematizado, mas cujos limites e soluções ainda são pouco enfrentados, que é a “quantidade de publicações” que cada um é capaz de produzir num determinado período de tempo como critério quase exclusivo de qualidade e excelência. A avaliação se dá supostamente de forma coletiva (pelos cursos e programas de graduação e pós-graduação), mas no frigir dos ovos cada um (professora ou aluna/o) é levada/o a produzir dados sobre sua “performance” individual. Mais do que isso, é meio que obrigada/o a aderir aos sistemas de informação que concentram esses dados. Não só o famigerado currículo lattes, mas até as redes sociais (inclusive acadêmicas) que concentram essas informações e as fazem circular.

Esses sistemas de controle e informação têm problemas com os quais ainda não sabemos lidar direito. Quem define e escalona aquilo que é melhor, mais interessante ou mais relevante? Sobre isso ver, por exemplo, o relato etnográfico de Selma Albernaz da UFPE, no dossiê da Revista Mediações (UEL), sobre a cultura da avaliação na produção acadêmica. Ela problematiza a relação entre “mérito” e um sistema que precisa decidir onde alocar recursos, e que opera por uma lógica ainda presa à oposição centro-periferia. Essa lógica reforça a centralização dos recursos, num círculo vicioso desfavorável para quem já está em uma posição menos central.

Eu suponho que a não adesão, voluntária, a determinadas dessas redes ou a essa lógica, que poderia ser pensada como uma estratégia política de resistência ao sistema por discordância em relação a seus critérios, tenha como efeito simplesmente a invisibilidade e a exclusão, e o não acesso aos recursos disponíveis. É uma visão pessimista, admito. Mas penso que talvez mais realista. A adesão, por outro lado, implica compactuar com alguns dos efeitos que estão pressupostos. Não há para onde correr, são as regras do jogo. Mas somos nós que as estamos elaborando e as fazendo funcionar.

Na Antropologia, pelo menos, esse paradigma de produtividade é dissonante em relação a toda a nossa tradição de reflexividade, de uma formação ampla e sólida, embasada por leituras aprofundadas e de trabalhos monográficos resultantes de uma experiência etnográfica que, também, envolve períodos relativamente longos de pesquisa empírica. Nesse sentido, a lógica vigente é inadequada ao nosso estilo de produção de conhecimento, e esse descompasso fica visível nos trabalhos que temos sido levadas/os a produzir ultimamente.

Essa lógica não tem nenhuma novidade, apenas atualiza no mundo acadêmico e universitário as dinâmicas do mercado capitalista que operam nas demais esferas do trabalho e da vida. É por essa ótica que entendo o paradigma produtivista, esse sistema febril, como coloca a antropóloga Marilyn Strathern, que pressupõe e induz uma hiperatividade.  

Eu acho que na universidade isso toma uma dimensão altamente preocupante, uma vez que o trabalho administrativo, o de formação e acompanhamento dos alunos (desde a graduação), o respeito do tempo necessário à reflexão e ao amadurecimento de ideias, assim como as atividades de extensão, não “valem” tanto quanto a publicação de artigos. Tenho ouvido queixas de estudantes, que se sentem preteridos por essas outras atividades que nós, professoras/es, precisamos privilegiar.  

De uma perspectiva feminista, não consigo deixar de pensar numa analogia entre o que acontece na universidade e a desvalorização do trabalho doméstico, do cuidado, da educação (sobretudo de crianças) e a valorização do trabalho assalariado e qualificado, mercado dominado sobretudo por aquela figura clássica do “homem branco heterossexual”. As atividades de cuidado, educação e manutenção estrutural da universidade são preteridas em relação às atividades produtivas e as outras atividades são frequentemente obscurecidas. Eu acho inaceitável conhecermos essa crítica e toda a história desses movimentos sociais e, mesmo assim, reproduzirmos esse tipo de estrutura na universidade.

Patricia: Quem milita ativamente na universidade pública brasileira com excelência, como eu, tende a levar os sistemas de avaliação dos professores e dos programas de pós-graduação a sério. Isso implica em destacar suas qualidades e apontar suas limitações. Primeiro é preciso considerar que os sistemas avaliativos foram implementados no empuxo do vertiginoso processo de expansão universitária e consolidação de novos programas de pós-graduação além do eixo centro-sul do país, deflagrados a partir do primeiro mandato do governo Lula. Novos espaços, novos agentes, novas demandas e novos desafios, cuja gestão pelo Estado funciona com alguma isonomia e eficiência por meio de plataformas que garantem a qualidade dos programas de pós-graduação, o repasse de recursos públicos a esses programas, e maior controle e transparência sobre o uso desses recursos perante a comunidade acadêmica e a opinião pública. Não parece ser por outra razão que boa parte dos prêmios de melhores teses, nos últimos anos, foram destinados a pesquisadores de programas de pós-graduação do norte, nordeste e centro-oeste.

No entanto, é preciso considerar que esses sistemas de avaliação são baseados em critérios quantitativos: números de artigos publicados, número de citações recebidas e fator de impacto das publicações – o que acaba por desconsiderar as múltiplas temporalidades das ciências e outras variáveis no processo de avaliação: qualidade, criatividade e originalidade. A implicação mais imediata é a baixa produção científica capaz de transcender as formas do mesmo. A corrida desenfreada por recursos e prestígio no universo dos indicadores acabou por forjar o pesquisador que publica 70 artigos em um ano e obstaculizar a produção autoral em várias frentes – isso talvez possa explicar tanto o fenômeno editorial de coletâneas publicadas na última década quanto as crescentes denúncias de plágios nas universidades. É preciso fazer mediações entre critérios quantitativos e qualitativos, respeitando as especificidades das áreas.

CONSTANTEMENTE ENDIVIDADAS…

Daniela: Há uma efemeridade da produção: o que vale apenas é a produção recente, de três ou quatro anos atrás. Isso potencializa essa sensação de que não é possível parar, há sempre algo a ser feito. Se por um lado isso pode ser positivo, estimulante, levar a novos projetos, novos trabalhos, por outro essa aceleração contribui para essa sensação de endividamento constante.

Um colega que pesquisou executivos das transnacionais na sua tese de doutorado trouxe uma imagem que acho muito emblemática, a de que a “empregabilidade” pode ser pensada como uma escada rolante ao contrário. Para nos mantermos onde estamos, é preciso andar sem parar. Para subir, é preciso andar mais rápido que ela. Considerando que a vida de todas/os nós tem seus altos e baixos, sua inconstância, seus imponderáveis, isso pode ser em determinados momentos muito angustiante. Acho que contribui para muitos dos processos de adoecimento que temos observado em nossos colegas e também, claro, em pessoas que estão trabalhando em outros lugares também sob alta pressão para produzirem. Eu gostaria de imaginar que, estando em um lugar de deslocamento e pensamento crítico, como eu acho que deve ser a universidade, deveríamos ser capazes de resistir a esse processo, e experimentar soluções que sejam mais justas e libertárias.

Patrícia: Nós, docentes e pesquisadoras, vivemos apagando incêndios dentro e fora da universidade. A angústia constante em razão do tempo que falta para darmos conta da nossa afetividade, sexualidade, maternidade, militância política, carreira acadêmica e vida doméstica foi inegavelmente adensada pela lógica dos indicadores com critérios quantitativos dos sistemas que nos avaliam constantemente. Em vários momentos, a sensação também é a de ser um personagem de George Simmel na passagem do século XIX para o XX, com todas as pressões, demandas e ritmos das relações monetarizadas de uma cidade grande, que rebaixa os indivíduos a um grão de areia em uma organização monstruosa de coisas e potências, que vai gradualmente lhe subtraindo espiritualidades e valores até transubstanciar subjetividades em objetividades. Acho que uma das pistas para sairmos dessa encruzilhada contemporânea está na resistência a esse processo quando sobrepomos o espírito subjetivo no lugar do espírito objetivo e apostamos na construção de subjetividades políticas no empuxo da enorme potência que a universidade pública nos confere: lugar da crítica, conflito, dissensos, mediações diversas, consensos e autonomia.

Giovanna: Esse novo volume de trabalho é reflexo justamente das exigências da avaliação. Os prazos são cada vez menores e as exigências cada vez maiores. No momento, por exemplo, estou com dois artigos em livros, já aprovados, mas que não têm prazo para sair. Os pesquisadores não podem mais se comprometer com capítulos inéditos em livros que não têm um prazo certo para sair e preferem destinar seus trabalhos aos periódicos. Qualis 1A virou um selo de “garantia”. Como um ISO. E, no meio dessa dispersão, muita coisa boa se perde. O próprio papel do intelectual se perde. Não há mais espaço para livros que versem sobre um tema único desenvolvido ao longo de anos. Os livros hoje, se não são publicações das teses, em sua maioria, são reuniões de artigos publicados e organizados para o formato livro. O que quero dizer é que não nos é dado tempo de amadurecer diante de agências que insistem na produtividade e de universidades que não se unem para o questionamento desses critérios. A área de Humanas, completamente à parte de um conceito como “produtividade”, sofre ainda mais porque nossas publicações são individuais. Ao contrário de publicações nas áreas de Ciências Biológicas e Exatas, que admitem mais de um autor, por vezes, cinco ou seis autores. A área de Humanas está obedecendo a critérios criados a partir do perfil de Exatas e Biológicas. Acho que uma mudança deveria começar pela atribuição de critérios específicos para cada área.

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Edição 2