María Galindo é uma militante anarcofeminista, psicóloga, locutora de radio e já foi apresentadora de TV. Fundou o movimento feminista Mujeres Creando na Bolívia, uma associação de mulheres de diferentes identidades sexuais, classes e condições para enfrentar o machismo e a homofobia. Suas ações performáticas chegaram a levá-la diversas vezes à prisão. Autora dos livros: No se puede Descolonizar sin Despatriarcalizar, 2013 e (com Sonia Sánchez); Ninguna mujer nace para puta, Edición ilustrada de Lavaca Editora, 2007.
Mujeres Creando é um movimento feminista anarquista que já existe há mais de 20 anos. Reúne mulheres de diferentes setores sociais, diferentes idades, diferentes culturas, diferentes opções sexuais e que se encontram em diferentes momentos existenciais.
Entrevista realizada na Casa do Povo, na cidade de São Paulo. Com apoio do PACA (Programa de Ações Culturais Autônomas), que organizou a visita de Maria Galindo a São Paulo.
Conta um pouquinho sobre o Mujeres Creando, a ação do movimento, como começou… A atuação política de vocês…
Claro! Mujeres Creando é um movimento de mulheres feministas. Nós temos uma visão anarquista do poder e somos autônomas com relação aos partidos políticos, às igrejas, às ONGs e a qualquer governo, de esquerda ou de direita. Não é que somos autônomas em relação a um governo de direita, mas não em relação a um governo de esquerda… Nós reivindicamos a necessidade histórica da autonomia política do feminismo em relação a qualquer governo. Lutamos muitos anos com diferentes instrumentos e de diferentes formas, pois o movimento passou por uma longa história, mas, basicamente, reivindicamos a necessidade de construir um movimento feminista heterogêneo. Essa homogeneidade dentro do feminismo latino-americano, em geral, de mulheres jovens brancas, profissionais, de classe média, é uma homogeneidade que nos entedia, que nos incomoda e que não nos interessa. Então nós construímos um movimento que cultiva as alianças insólitas, quer dizer, formas de aliança política entre mulheres com quem é proibido fazer aliança. Temos uma metáfora muito interessante: somos índias, putas e lésbicas, juntas, revoltadas e “hermanadas”. Isso expressa o tipo de aliança que Mujeres Creando constrói no interior do movimento. E não é só uma metáfora, é uma realidade, as pessoas mais novas no movimento devem ter ao redor de 18, 19 anos e as pessoas mais velhas devem ter ao redor dos 70, temos companheiras lésbicas, não lésbicas, um pouco de tudo, e também diferentes mundos sociais: há mulheres intelectuais, profissionais, como também há mulheres desempregadas, autodidatas. Defendemos que o cenário político mais importante para o feminismo é a rua e trabalhamos partindo da rua. Nós convertemos a rua, fizemos da rua nosso fórum político principal, e por isso nossa ressonância é muito forte na Bolívia. Porque não é uma voz emprestada que temos, não é um espaço emprestado, não é através do parlamento ou através das leis ou através dos meios de comunicação. Não, é através da rua. Há um conceito interessante que criamos que é o da “política concreta”. Várias de nós vínhamos da esquerda e questionávamos muito o fato de que os diferentes movimentos, seja ecologista, seja feminista, sejam outros movimentos de esquerda, são movimentos muito discursivos, poucos movimentos souberam traduzir o discurso em forma de prática concreta, então nós trabalhamos com o conceito de “política concreta”: oferecer serviços às mulheres sem despolitizar esses serviços. Oferecemos serviços a partir de uma visão feminista, mas sem a gente se institucionalizar, essa é a política concreta.
Por exemplo?
Por exemplo, lutamos contra a usura bancária. Na Bolívia, não sei como acontece aqui, mas lá o desemprego atinge as mulheres de forma massiva. Então, cada mulher desempregada, no lugar de buscar um trabalho que nunca vai encontrar, o que ela faz é pegar um empréstimo. E quando não podem pagar esse empréstimo, fazem outro empréstimo para pagar. E isso vira um processo de sobre-endividamento aterrorizante, uma forma de usura bancária muito forte porque as instituições bancárias sabem, conhecem a situação dessas mulheres e as pressionam muito. Nós temos gerado, então, outras formas de negociação com o banco, nas quais nos colocamos do lado dessas mulheres. É um serviço concreto, de política concreta anti-neoliberal. Tem ainda a questão da violência machista. Trabalhamos muito com ação direta, no caso da violência machista. Tudo isso se aglutina dentro do conceito de política concreta, que é uma forma de aliança, podemos chamar assim, ou de vínculos, estabelecer relação com amplos setores, setores massivos da população, mas não através da ideologia, e sim por meio de serviços.
Assim vocês conseguem quebrar essas barreiras entre diferentes tipos de mulheres, de classes sociais diferentes? Porque essas barreiras são reais… Como quebrá-las?
São reais! Quebramos pela luta, pela luta concreta. Por exemplo, vou te contar. Nós somos totalmente anti-institucionais, mas formamos uma associação muito grande de mulheres em situação de prostituição que estão definindo o prostíbulo como cooperativa. Nesse caso, já não é o proxeneta que é dono do prostíbulo, mas elas mesmas. Essas mulheres aliadas, às vezes três ou quatro, são pequenos grupos, mas aliadas montam pequenos prostíbulos. Fizemos, então, uma associação de prostíbulos e, como elas querem ser clandestinas, nós emprestamos nosso nome legal. Essas são coisas concretas, há também a questão do feminicídio, que na Bolívia é muito forte, e nós vamos através dessas lutas construindo alianças.
No Brasil há instituições pelos direitos das mulheres, mas a luta feminista propriamente dita, os grupos feministas, aumentaram bem recentemente…
Sabe o que aconteceu? E eu acho que em toda América Latina, o feminismo sofreu, nos anos 80 ou 90, um forte processo de “ONGuização”. As ONGs substituíram o movimento, suplantaram o movimento e terminaram estrangulando e fazendo desaparecer o movimento feminista. Essas ONGs se transformaram em instituições que ofereciam serviços, mas com relações hierárquicas verticais, clientelistas, colocada a serviço de uma agenda política internacional que era totalmente neoliberal. Então as feministas deixaram de ser feministas e se transformaram em funcionárias das instituições, com um trabalho de oito horas, com um escritório: você está daquele lado e eu estou deste lado. Foi aí que a agenda política feminista desapareceu e apareceu, no lugar, uma agenda de gênero neoliberal. Isso aconteceu em toda a América Latina. Desde o principio, Mujeres Creando foi muito clara ao questionar tudo isso. Questionamos a forma como, a partir da categoria de gênero, se fez uso do potencial e das necessidades das mulheres para salvar, ou melhor, para gerar um colchão social para o neoliberalismo. Porque claro, com o neoliberalismo há níveis de desemprego muito grandes, aí que se dá todo o ajuste estrutural, então era preciso um grupo humano capaz de se sacrificar mais do que o conjunto dos trabalhadores, a fim de amortecer a crise, e esse grupo humano fomos nós, as mulheres! Nós questionamos tudo isso. Neste momento estou apresentando uma tese nova, que é a tese da despatriarcalização, está no meu livro A Despatriarcar. É uma teoria que defende, de maneira muito crítica, que essa agenda de inclusão não roube o conteúdo subversivo do discurso feminista, que nosso horizonte de luta não seja roubado, senão para que nos organizamos? Para nos convertermos em clientes do Estado? Lei para cá, lei para lá, funcionárias públicas… Tanto que na América Latina chegamos a ter três presidentas, não é? Cristina Kirchner, Dilma Rousseff e Michelle Bachelet. E atrás delas uma grande massa de mulheres que entraram na gestão estatal e que foram totalmente absorvidas pelo caráter patriarcal do Estado.
Mas essa crítica valeria para todas as lutas das ditas “minorias”… Não poderíamos dizer o mesmo para o caso do movimento negro? Aliás, essa é uma crítica que se faz contra as cotas, que seria só para inserir no sistema neoliberal.
Olha, eu te diria que não. Não estou completamente certa porque, primeiro, nós mulheres não somos uma minoria, mesmo sendo catalogadas como uma suposta minoria, nós somos a metade da população humana, somos a outra versão do humano, não é? Então, primeiro, não somos uma minoria e nas cotas estamos reduzidas a uma condição biológica, porque a cota não permite um imaginário político por fora do existente, senão um pertencimento ao existente, pela condição biológica de mulher. É a negação do sujeito político, das mulheres enquanto sujeito político, e eu acho que isso é grave. Eu não diria que há uma forma de crítica exata para os indígenas, para os negros, para os gays. Há um elemento comum que é o da inclusão. Você pode fazer parte do sistema, o sistema quer que você faça parte, porque quando você faz parte do sistema, se você é gay, se você é negro ou se é mulher, você fortalece o sistema, você não o debilita, pois faz parte dele, e vai ter um pensamento próprio. Essa é a crítica, denominador comum de todas essas coisas. No entanto, acho que há diferenças importantes no caso das mulheres. Primeiro, a diferença quantitativa, somos a metade da humanidade, não somos uma minoria. Segundo, acredito no feminismo como teoria política. Dentro da pluralidade dos feminismos, gerou-se uma teoria política muito importante, que não necessariamente outros sujeitos políticos desenvolveram. Uma teoria política com um potencial muito grande, então foi muito útil desvanecer, neutralizar, aniquilar, minimizar essa teoria identificando-a à mera condição biológica. Por que? Porque o feminismo é um imaginário político que trabalha o público, mas também o privado. Nem os negros, nem os indígenas, nem o mundo gay colocavam a questão do cotidiano como político, do privado como político. Esse é o potencial mais subversivo, mais importante do feminismo, isso sempre ficou de fora do imaginário patriarcal. Então neutralizar o feminismo foi uma arma importante para neutralizar todos esses outros discursos, o do negro, o do índio, o ecológico…
Aqui no Brasil, nos movimentos feministas mais recentes há uma disputa muito grande entre correntes distintas. Esse feminismo de ONGs já vemos pouco, agora existem muitos feminismos que disputam discursos. Também fazem muita coisa na rua, mas em atos, não ações contínuas. Há grande fragmentação das correntes, quem segue o feminismo radical, as teorias queer, bem fortes por aqui… De nosso ponto de vista, isso enfraquece um pouco a luta porque produz muita divisão.
Interessante o que você está dizendo. É verdade que a onda das ONGs é dos 80 e dos 90, que a essa altura está muito enfraquecida. No entanto, a agenda neoliberal de equidade de gênero segue absolutamente vigente. Nesse sentido, acho que é muito necessário continuar lembrando de onde vêm todas essas políticas de endividamento das mulheres, das mulheres como cota política, do “empoderamento” das mulheres. Tudo isso é parte das políticas neoliberais, porque o neoliberalismo na América Latina não está em crise, o neoliberalismo está absolutamente vigente. Acho que é muito necessário, portanto, continuar falando disso, pois o colchão humano do neoliberalismo é formado por nós, mulheres, nas nossas sociedades, através do trabalho precário, através das formas de busca de subsistência, etc, etc, etc…
O trabalho reprodutivo, os cuidados também…
E através da migração, que é um exílio econômico. A migração é uma expulsão. Falo sempre das exiladas do neoliberalismo. O Brasil absorve muitas exiladas bolivianas para o trabalho precário em oficinas têxteis. Esse exílio econômico das mulheres é também parte desse colchão do neoliberalismo. O neoliberalismo sempre pode baixar os custos baixando o custo da mão-de-obra e essa diminuição de custos é feita com o exílio econômico das mulheres, que estão dispostas a fazê-lo porque são as que menos têm oportunidades de trabalho em suas sociedades de origem. Tem também a questão dos cuidados que você dizia. A precarização do trabalho de cuidados, baseado na exilada do neoliberalismo, é o que permite à mulher de classe média, branca e profissional se achar emancipada, mas porque está deixando parte do trabalho dos cuidados nas mãos de uma mão-de-obra barata e sobre-explorada, que é uma mulher pertencente a outra sociedade. Uma boliviana, uma equatoriana, uma paraguaia… Então, tudo isso é muito importante porque isso vem da agenda de equidade de gêneros das organizações internacionais assumida pelas ONGs.
Agora a respeito da movimentação queer, eu, pessoalmente, respeito muito intelectuais como Beatriz Preciado ou Judith Butler. As respeito muito como intelectuais, trazem um aporte interessante. Mas, muitas vezes, nós fomos batizadas como queer e nós não somos queer, nós somos feministas, com pensamento próprio. Muito da onda queer chega na América Latina completamente distorcida, e por que? Primeiro porque é uma teoria política sumamente complexa, que só pode ser traduzida, interpretada ou absorvida em espaços acadêmicos, os espaços acadêmicos que traduzem, lêem essa teoria são espaços de classe média e de classe média alta, não são os espaços que partem da rua, que partem da prostituição na rua, que partem do travestismo da rua de prostituição, são espaços de elite, é uma teoria política sumamente complexa, desde seu manejo de categorias. Então eu acredito que na América Latina a teoria queer em geral, na minha percepção, é uma teoria para elite a partir das elites que termina perdendo seu conteúdo subversivo e conseqüentemente com uma série de práticas que eu não as vejo como interessantes, eu, pode ser que eu me engane, eu não as percebo interessantes. A movimentação transexual na América Latina, como eu a vejo, a partir dessa movimentação que poderíamos chamar, entre aspas, “proletária”, não é uma movimentação que parte do queer, é uma movimentação a partir da discussão sobre a prostituição e sobre o corpo, que é outra coisa. Então, sobre o fenômeno queer em geral, eu acho que é preciso discuti-lo, e sobre a fragmentação e a fragilidade dos pequenos grupos, não sei, eu tenho bastante esperança. Onde há um pequeno grupo de mulheres que se organiza, que faz algo concreto, me parece ser um fenômeno interessante, porque é uma espécie de segunda, terceira, não importa, quarta, décima onda. É um renascer, é um renascer de mulheres jovens que querem fazer algo a partir de si mesmas, que não querem ser chefas, que não querem ser lideres, que não querem carregar o peso do aburguesamento de muitos feminismos, muito pesados, muito imóveis, e que sem grande bagagem, saem para fazer algo. É um principio, eu acho, fabuloso, positivo. Agora, também se corre o risco de que se está fragmentado, de que pode ser fraco e de que pode ser um entusiasmo que logo morre. Mas a principio eu o vejo muito bem.
Como podemos transitar entre uma possibilidade de feminismo mais crítico, com ações diretas partindo de fora das instituições, de fora do Estado, e um feminismo mais de dentro do cotidiano, dentro das relações cotidianas, das relações de poder cotidianas? Como podemos combinar as práticas muito radicais com práticas mais cotidianas, de mais baixa intensidade, a partir do subterrâneo? Esse conceito de subterrâneo que você cita.Não podemos pensar em algo partindo de dentro, através das brechas institucionais?
Não gosto, em geral, de pretender que temos uma receita, mas nós fazemos exatamente isso. Então, eu pessoalmente acredito que é preciso construir tecidos sociais. O que quer dizer tecidos sociais? Muitas vezes quando dizemos “movimento” de que estamos falando? Estamos falando da soma de mulheres, muitas ou poucas, que se reúnem em seu tempo livre – conseguir tempo livre é muito difícil. Enquanto as mulheres que pertencem aos setores mais altos da sociedade têm algum tempo livre, as que pertencem aos setores mais populares têm bem menos tempo livre. Então, como você constrói movimento? Penso que é preciso construir tecidos sociais mais que movimento. O que quer dizer? Gerar espaços de construção coletiva da cotidianidade. Nós, em principio, gerimos nossa cotidianidade. Não é um feminismo de fim de semana, não é um feminismo de cada 15 dias, não é um feminismo de 8 de março, de 25 de setembro. Dia 8 de março, normalmente, bebemos e dançamos e não fazemos mais nada. Mas nós gerimos um refeitório popular, gerimos uma rádio, gerimos algumas cooperativas, gerimos nossa vida cotidiana. Se você é minha companheira e está doente, eu sei disso. Gerimos uma poupança coletiva, que é uma poupança onde nós mesmas podemos nos emprestar dinheiro para saúde ou para qualquer coisa. Então estamos gerenciando até o interior de nós mesmas, produzindo um tecido social. Agora, esse é um trabalho muito duro, muito longo, não é um trabalho fácil, simples. Supõe formas de solidariedade e de conexão muito demandantes. E supõe questionamentos, por exemplo, do individualismo de cada uma. Estamos absolutamente convencidas de que esse discurso de “eu vou resolver minha moradia, minha saúde, minha educação, meu trabalho sozinha” é um discurso falso que o neoliberalismo inseriu na gente. “Se você é boa, se você é inteligente, se você é bonita, você vai resolver e se você não resolve é porque você é feia, burra, incapaz”. Ou seja, temos que lutar também contra essa noção que está fortemente inserida nas mulheres, porque tudo nos custou muito. Terminar a escola nos custou muito, conseguir um trabalho nos custou muito. Então, uma vez que você consegue algo, você defende isso fortemente. Nós estamos construindo um movimento que constrói tecidos sociais, um movimento que diz: você não vai resolver nada sozinha, não vai resolver moradia, trabalho, educação, saúde, liberdade, dignidade, felicidade. Não podem resolver sozinhas. Ou procuramos gerir esses temas coletivamente ou não vamos fazer nada que tenha alguma profundidade.
Mas como vocês conseguem construir as condições para ter essa disponibilidade? Porque é algo muito demandante mesmo e o neoliberalismo faz com que tenhamos cada vez menos tempo, menos disponibilidade para algo que não tenha “retorno”, é só trabalho!
Bom, nós fomos fazendo muito pouco a pouco, em muitos anos, buscando resquícios. Por exemplo, lembro quando começamos, eu havia voltado do exílio com um dinheiro que havia conseguido, então consegui comprar uma casa na periferia, que se tornou a casa do movimento. Com o tempo, fomos construindo pequenas cooperativas. Fazemos tudo em cooperativas, tudo o que fazemos é em cooperativas, desde o filme até os livros etc. Três companheiras se juntam em uma cooperativa e contribuem com algo para uma poupança comum. Tratamos de desburocratizar, não se institucionaliza nada e cada cooperativa vai comprando coisas que precisam. Por exemplo, temos uma cooperativa de comida muito boa que foi comprando cozinha por cozinha, ou seja, agora é uma grande cozinha, mas começou do zero, com um pequeno forno artesanal fazendo comida para as feiras e, pouco a pouco, fomos somando.
E as mulheres que têm filhos?
Há muitas mulheres que tem filhos! Questionamos a maternidade como um mandato, mas respeitamos totalmente a vida de cada uma. Então há muitas mulheres que tem filhos e também há muitas mulheres que trabalham fora, jornalistas ou advogadas etc. Em seu tempo livre, elas se somam ao movimento, mas o núcleo das mulheres do movimento é das mulheres que fazemos cooperativas. E fazemos sempre discussão política, discussão política permanente, você não pode pertencer a um movimento se não fizer discussão política! Esse é o mecanismo para pertencer: participar de discussões políticas concretas. São 25 anos de trabalho. Começou como vocês, que estão começando com essa revista, que já tem dois números. Da revista podem passar ao papel, mas sem institucionalizar, tratando de gerar formas de economia coletiva e de gestão coletiva.
Não temos dinheiro, então às vezes temos esse problema de não ter dinheiro para fazer algo… Como é essa questão do financiamento pra vocês?
Em alguns casos, aceitamos. Nas esferas que não são autogestionárias, como nossos serviços de proteção à violência (um de La Paz e outro de Santa Cruz), as companheiras recebem um salário, porque são muitas horas de trabalho. Além disso, elas têm que ser sempre as mesmas para um bom seguimento. Para esses trabalhos optamos por usar fundos. O que é importante é que temos uma metodologia própria de trabalho.
Você pode falar um pouquinho mais sobre a situação política da Bolívia atualmente? Você disse que há uma mistificação muito grande em torno do governo Evo Morales. Há conflitos entre o governo e vocês?
O governo boliviano reivindica, faz um discurso de que gerou um modelo social que não é neoliberal, mas isso é simplesmente uma piada, uma mentira, porque na Bolívia o neoliberalismo está vigente e muito forte. Especialmente em torno do trabalho, mas também em muitas outras coisas. A educação é mercadoria, a saúde é mercadoria. Todo o discurso de direitos é absolutamente neoliberal. As formas de representação não mudaram nada. Na Bolívia o que está acontecendo é uma democracia liberal hipócrita. Hipócrita porque diz que é uma democracia participativa, plurinacional, e não é. É uma democracia liberal como sempre a conhecemos. De cara, tem a questão das mulheres. A coisa é muito complicada porque estamos diante de um governo com um perfil de muito controle sobre a sociedade. Esse é um governo que vem da esquerda, que vem dos movimentos sociais e que sabe que os movimentos sociais e o tecido social são uma força muito importante, muito poderosa. Então, um dos seus objetivos principais foi controlar, vigiar, dividir, debilitar, estar presente nos movimentos sociais, mas para cooptar todos os movimentos sociais por meio de políticas clientelistas. Nossa situação como feministas não é fácil. O governo tem um discurso extremamente machista, patriarcal. Há um movimento social muito grande que está com eles, o movimento de mulheres camponesas. Mas esse movimento, que se chama Bartolina Sisa, também está envolvido em relações muito clientelistas. Então essas companheiras são uma espécie de círculo do altar caudilhista do presidente, mas são mulheres. Então representam o apoio das mulheres camponesas indígenas, o apoio de Evo Morales. Tudo isso foi muito duro para nós, porque também tínhamos alianças importantes com mulheres Bartolinas, no entanto, perdemos essas alianças. Muitas delas abandonaram seu próprio movimento e foram fortemente hostilizadas. O espaço para um discurso feminista autônomo na Bolívia é muito difícil. Agora nós temos muita força. Há três semanas, fui citada em um julgamento e quase fui presa. A acusação era de destruição da riqueza nacional por ter feito um grafite. Foi muito divertido porque eu fui disposta a ir para a prisão, mas não se atreveram, porque daria mais força pra gente. Então, estamos resistindo, temos uma rádio que nos dá muita força, é uma rádio legal, uma rádio que não é só online é em cadeia aberta. Precisamos vender publicidade para pagar a rádio e nenhuma empresa estatal contrata publicidade conosco. Nós temos um refeitório muito eficiente e com o refeitório temos que sustentar a casa e sustentar a rádio. A ideia é asfixiar toda dissidência. “Se você não está comigo, então é de direita”. Mas essa é uma polarização absolutamente falsa! Nós questionamos as bases neoliberais do programa de governo de Evo Morales. Há um manuseio comunicacional para difamar, muito grande.
Sim, aqui acontece o mesmo. Nos interessa o discurso que vocês fazem sobre o trabalho, a visão de que o trabalho das mulheres tem uma especificidade na sociedade contemporânea que interessa ao neoliberalismo. Essa é uma visão difícil para a esquerda compreender, não? Como é o diálogo que vocês têm com os movimentos mais tradicionais de esquerda que, pelo menos na experiência daqui, não compreendem muito essas questões como tendo relação com uma outra maneira de pensar o trabalho? Para eles o trabalho é o trabalho industrial, proletário, assalariado. Não compreendem essas outras categorias.
Não, não as compreendem. Mas olha, eu vou ser bem sincera, tenho 52 anos, e acho que nós da minha geração não perdemos tempo dialogando com essa esquerda, porque é inútil (risos)! Não compreendem porque não toleram o questionamento de seus privilégios de machos. Na Bolívia, a irresponsabilidade paterna e não assumir o trabalho doméstico são instituições masculinas sagradas. Para nós é muito cansativo, mas dialogamos com a sociedade, através dos grafites, através da rádio, através das ações de rua. Por exemplo, na rádio temos uma lista de pais irresponsáveis e lemos o nome, o sobrenome, o lugar onde trabalha, um por um.
É um escracho! (risos)
Sim, é um escracho! Mas não somente proletários, tem homens que têm muito dinheiro que estão nessa lista.
Risos – Temos uns nomes pra colocar nessa lista…
Coloquem, é uma lista gratuita, as mulheres vêem e escrevem o nome. São duas listas, uma é a lista de machos violentos e a outra é a lista dos pais irresponsáveis. É muito divertido porque na programação a lista sai cinco vezes ao dia e dizemos “Atenção! Agora vem a lista de pais irresponsáveis! ”. Então ficam assim: “E agora quem está aí? ”. É muito efetiva. Tem homens, especialmente da classe média alta, banqueiros, que disseram “Por favor, estou pagando e não quero estar mais nessa lista”. Se a mulher disser “Apaguem, tirem ele”, no dia seguinte tiramos o nome. Renovamos essa lista uma vez por mês e fazemos o escracho. Causa sempre muito bom humor e, ao mesmo tempo, é efetiva.
Os homens políticos não querem ter seus nomes aí, né? Devem ter até uns de esquerda…
Então, nós com a esquerda… Olha, existem diálogos que te matam, existem diálogos que não te dizem nada, em que se perde muito tempo, existem diálogos que te cansam, existem diálogos, inclusive, que te fazem retroceder. Alguns propõem: “Não, o diálogo é importante e não sei o que”, mas nós mulheres não podemos ficar dizendo há cem anos a mesma coisa… Se vamos repetir todo o tempo a mesma coisa, vamos enlouquecer, podemos perder a vontade de pensar coisas novas, linguagens novas, frases novas e para mim isso parece muito desesperador. Por isso, há realmente alguns diálogos que exigem, de nós mulheres, repetir sempre o mesmo, e esses diálogos não valem a pena, esses diálogos não são frutíferos, são perda de energia e de tempo.
De onde vem a força para tudo isso? Para contestar as instituições, as formas de subjetividade, o individualismo, os ideais de sucesso… É uma desconstrução muito forte, não? Estava lendo no site de vocês um artigo que dizia que é preciso transformar a dor do feminicídio em uma força revolucionária… E de onde vem a alegria para fazer isso? Porque é pesado lidar com a violência contra as mulheres, a solidão, a falta de emprego, de dinheiro…
Transformar a dor do feminicídio em luta por justiça. De tudo, o mais duro é o feminicídio, pois é a morte. No ano passado mataram a filha de uma companheira nossa, e isso foi terrível. Nada foi tão doloroso quanto isso. Quero responder bem claramente ao que você disse. Não somos excepcionais. A força vem do fato de que é a nossa única possibilidade de pensar, de desfrutar, de criar e de construir algo. Quer dizer, nós mulheres não nos damos conta que solitariamente, individualmente, não temos absolutamente nenhuma possibilidade – temos a possibilidade somente de sobreviver – mas se nos unimos tudo muda. Podemos, além de sobreviver, desfrutar muito da vida, fazer coisas interessantes, pensar, isso somente construindo tecidos sociais. Então, não é um ato de renúncia, não é um ato de renúncia cristã, messiânica, missionária: “eu renuncio por ti”. Não, não é um ato de redenção de ninguém, é a única possibilidade em uma sociedade neoliberal latino-americana. Provavelmente as condições sejam igualmente duras na Europa ou outro lugar, mas não me interessa assinalar. Na América Latina nossa única possibilidade é tomar decisões radicais somando nossas forças, somando nossas inteligências, somando nossas energias, somando nossas histórias, somando nossos espaços. Você tem uma cozinha, você tem um refrigerador, você tem um espaço, então já temos algo com que começar. Você pode ir procurar por sua conta e vai ter que se inserir em estruturas sexistas, classistas, racistas. Ainda que você não seja negra, você quer ser parte de uma estrutura racista e funcionar como a branca ali? Não! Se você não quer isso, não pode se somar a essa estrutura. Eu acredito que podemos construir micro espaços diferentes. São micro espaços, mas são tão significativos porque trazem um possível.
No Rio de Janeiro tem um candidato com chances de ganhar a eleição para prefeito que é um cara que já espancou sua mulher, ex-mulher, mais de uma vez. É sabido, está nos registros policiais, todos sabem e o seu partido disse que isso é uma coisa assim: “Ah, foi uma briga normal de casais…”. Para nós é um golpe, nos sentimos justamente sem voz.
De qual partido?
Do PMDB, que é um partido horrível, reacionário fisiológico, mas é da base do governo nacional.
Na Bolívia acontece muito isso institucionalmente. Evo, por exemplo, eu recentemente escrevi um artigo dizendo que ele tem uma atitude de humilhar as mulheres e isso não é casual, é um ato de poder que todos aplaudem. Então é como uma espécie de virilidade dentro do poder. Não é algo que querem ocultar, é algo que querem mostrar. Teve o caso do estupro de uma mulher por parte de um político do MAS e ela perdeu tudo. Acho que aí nós temos que denunciar fortemente.
Há uma denúncia muito boa nesse último número da nossa revista, pois fizemos uma entrevista com Antonia Melo, que é uma das lideranças do movimento contra a Usina de Belo Monte, a usina hidrelétrica que está deslocando os indígenas no Norte. Antonia é de tradição dos movimentos camponeses de Chico Mendes, movimento que era a base do PT há tempos, quando o PT era um partido de movimentos de base. E agora, quando estava resistindo à construção de Belo Monte, ela foi falar com o Lula, e ele foi muito machista. Ela conta que o Lula a interrompeu quando começou a falar dos prejuízos que a usina de Belo Monte iria causar à população de onde ela vive, e Lula a interrompeu dizendo: “Não quero mais escutar discursos ideológicos. Isso é ideologia”. Assim! Muito forte.
Por isso fomos um dos poucos movimentos na Bolívia que disse “É preciso manter a autonomia”. Quando Evo subiu ao poder, muitos disseram “Ah, subiu, é preciso somar” e nós dissemos “temos que manter a autonomia”. Tem que manter uma distância, tem que seguir cuidando do espaço da luta social, não podemos desmontar, desarmar a luta social e nos colocarmos no governo. E nesse momento, já passados muitos anos – Evo está há dez anos, Lula também esteve por muitos anos, Chaves, todo esse processo bolivariano – pois agora fica claro que essa autonomia é valiosa. Se agora nós tivéssemos que voltar a construir um espaço que havíamos abandonado, enfraquecido, não teríamos a credibilidade para fazê-lo. Em vez disso, nós temos essa credibilidade e essa voz. Eu acredito que a autonomia do feminismo é uma necessidade histórica.
Você vê uma proximidade entre a maneira de pensar do seu movimento e a ideia de Buen Vivir?
Não. Não, justamente, eu assisti a um encontro sobre Buen Vivir, há dois dias. Nunca utilizei a categoria do Buen Vivir, porque é uma categoria artificial, é uma categoria construída pela demagogia governamental, pelo fundamentalismo indigenista e pela academia que está morrendo de tédio (risos). “Ah, isso é uma crise civilizatória tem que se apostar no Buen Vivir…”. Estou de acordo com o diagnóstico, há uma crise civilizatória, mas o capitalismo não está em crise em si mesmo porque o capitalismo está alcançando sempre processos de reciclagem. Processos de recondução de suas formas através da precarização do trabalho das mulheres, através da precarização do trabalho em geral, mas especialmente das mulheres. Isso é uma espécie de gasolina, de energia, de reserva que o neoliberalismo e o capitalismo têm de forma permanente. Os jovens, as mulheres, os exilados estrangeiros… Esses são os mecanismos para revitalizar este capitalismo, este neoliberalismo. Então até aí estou de acordo que existe a necessidade de redefinir as leituras e definir outros horizontes possíveis. E, consequentemente, considerar a crise da mudança climática, a crise ecológica que é muito grave e que é de escala mundial e planetária, até aí estou de acordo. O que não estou de acordo é que o Buen Vivir seja uma resposta possível a isso. Pois a resposta não tem que ser total, não sei se me entendem. Eu questionei muitíssimo o fato de que o marxismo se apresentou, e ainda se apresenta, como uma resposta totalizante a todos os problemas. Então há uma única resposta, que é “a resposta”, e essa resposta que é única vai conseguir definir tudo. Eu pessoalmente acredito que aí, epistemologicamente, estamos equivocados no enfoque. Não há uma resposta, há múltiplas respostas, o fundamental é que haja muitos sujeitos em luta e não um só, que pretenda instalar a norma sobre absolutamente tudo. Então, à crise civilizatória, eu acredito que a despatriarcalização é uma resposta, mas não é a única, é uma resposta que tem como ideia base a complementação com outras respostas. E no caso do Buen Vivir, acho que é um discurso bem abstrato também, que se presta a muitas formas de manipulação, de conteúdos, e é muito vago, em alguns casos até essencializado a partir do indígena, como se o indígena fosse algo que não foi colonizado, que não foi ocidentalizado, que não é também capitalista. É essencialismo e sou contra todo essencialismo, nem mulheres, nem gays, nem negros, nem indígenas… Não utilizo a categoria de Buen Vivir. Embora isso possa ser também porque eu sou boliviana e na Bolívia estamos cansados disso, ou seja, falam muito de Buen Vivir, mas como um discurso mais demagógico, muito intelectual e pouco prático.
Você acredita nós devemos mover o debate do feminismo para o centro da discussão sobre o poder? Como podemos fazer uma discussão sobre o poder a partir do feminismo, não mais como uma coisa isolada, separada, colocada nessa linguagem de gênero das organizações internacionais, mas trazer para o centro da política?
Acho que é uma pergunta muito linda. Para responder em duas partes. Primeiro, eu diria que nós abandonamos a categoria de gênero, a categoria de gênero não nos serve mais porque há muita confusão ideológica, e não é uma confusão casual. Há uma confusão ideológica deliberada em torno da categoria de gênero. Então, primeiro nós abandonamos a categoria de gênero completamente no debate social, nós participamos do debate social a partir da condição de sujeito político, as mulheres como sujeito político. Nesse momento, as mulheres estão no centro do debate porque, como sujeito político, você discute o trabalho, como sujeito político você discute a relação entre público e privado, a divisão entre público e privado. Esse é um debate bem longo, de muitos anos no feminismo, é um debate de uma longa tradição, e é um debate ainda muito útil e fecundo, porque essa dicotomia patriarcal, essa esquizofrenia entre o público e o privado, continua sendo um dos eixos do poder patriarcal, continua sendo um dos eixos principais do próprio capitalismo. Quer dizer, o capitalismo está tão forte porque está inserido da nossa vida privada, porque está inserido na nossa subjetividade, porque está inserido no desejo, por isso o capitalismo é tão forte e, evidentemente, o patriarcado também, pois o patriarcado e o capitalismo praticamente são um só. Então, esse me parece que continua sendo um debate central, a cotidianidade, a relação entre público e privado, a gestão do prazer, a gestão do tempo, a gestão do espaço, a gestão dos desejos, esse é um debate central. Não tem nada a ver com gênero. Nós estamos, podemos dizer, emancipadas de gênero há muito tempo (risos).
Bom, muito bom, foi demais pra gente, muito obrigada!
Fico muito feliz!