Dossiê: Vibrações do Inaudível

Kiaola, em suas variações de Marrom Terra

Para Gessé Paixão, pelos seus sonhos e porque estamos sob a constelação de câncer.

nós, tão cansados de viagens atlânticas forçadas.

Na esperança de reencontrar nossa voz. 

Encontrei-a sentada numa esteira de palha, as costas largas pressionando a parede da frente da casa, ao seu redor haviam pedras miúdas, algumas conchas, gemas coloridas, búzios e restos de ossadas delicadas. Pressentindo minha chegada, levantou os olhos das contas espalhadas pelo chão e com eles percorreu meu corpo e feição dignando-se a um bom dia amistoso, de quem já está acostumada com a reação aturdida assumida pelos passantes que a constatavam  há anos naquela mesma posição e ofício. Apressei em explicar que era carteiro e estava no primeiro dia de trabalho naquela região, e que ao passar por aquela rua tinha decidido encontrar alguém que pudesse me oferecer água. Ouvindo-me estendeu a mão esquerda em direção a uma moringa de barro, e a mão direita a um copo e derramou o líquido transparente, oferecendo-me. Enquanto bebia, observei com atenção os anéis miúdos que o cabelo ralo cor de algodão teciam sobre sua cabeça, a pele de um tom desbotado indicava que há alguns anos antes tinha possuído a mesma cor escura e brilhante que a minha, e por sua fragilidade eu presumia que qualquer toque mais vigoroso poderia desfazer o fino tecido. 

Enquanto descansava por alguns minutos perguntei se não a estava atrapalhando, visto que não me dirigia muitas palavras. A resposta em tom negativo seguiu-se de uma interessante explicação. Kiaola, como se chamava, estava ali passando o tempo, procurando por sua própria voz, perdida em uma viagem muito antiga feita com sua mãe que ela mesmo não se lembrava bem como tinha ocorrido, o sumiço entretanto não a impedia de se comunicar com os outros, como estava fazendo comigo. Porém, ela reiterava que de fato aquela não era a sua voz autêntica. Continuou, explicando que já tinha se aposentado, e falando isso adensou “coisa que nesses tempos de agora, você não consiga mais fazer” e por isso passava os dias fora de casa,  para espiar e estar pronta caso ela, sua voz, retornasse. Enquanto deslizava bonitas miçangas em alongados cordões, disse-me que quando encontrasse o fio do som da própria voz, ele iria soar como o barulho intenso do tilintar de suas contas em movimento, ninguém poderia se fechar ao seu grito e as palavras que tinha guardado para dizer. Vendo minha curiosidade sobre qual matéria compunha o conteúdo de sua mensagem, confessou que faria uma denúncia das injustiças seculares, maldades centenárias e violências “que nosso povo tinha suportado”. Naquele instante, nas minhas memórias de menino-homem entendi exatamente o que ela dizia. 

Prosseguimos a prosa e continuei a contemplá-la. Ela era tão doce que se nos detivessémos em suas íris açúcar-mascavo ficávamos como que surpresos e cientes de um amargor de fundo, que não se experimenta de primeira. Sua presença me lembrava as plantas de canaviais, que mesmo quando espremidas em seu máximo, só sabiam expelir um líquido adocicado. Geralmente as pessoas só lidavam com a garapa e não com os bagaços e os fiapos que ficavam, e era desse amargo que eu falava e que ela escondia no dentro dela, sendo o gosto mais íntimo de sua boca. Percebi que enquanto conversávamos, chorava e as formigas iam colher gota a gota, seu sumo. Tornando-se pequenas contas-pretas que compunham um colar costurado pela linha invisível que descia furtiva de seu rosto, seio, barriga e pernas até encontrar o chão. Os insetos eram suas mais preciosas jóias, segredava, rememorando ao mesmo tempo a importância dos escaravelhos-sagrados para sua linhagem. Me disse também que quando era lavadeira e passava os dias na beira do tanque dando conta de pilhas e pilhas de roupas sujas, seu suor escorria solto, e a fazia rodeada de um balé de cores, asas e plumas. Ninguém se espantava com a dança de pássaros e borboletas orbitando como constelações em seu entorno, era algo dela. Ninguém se espantava, ninguém.  

Naquela ocasião, em que passei mais tempo em um intervalo do que podia, ou supunha, dentro das regras de uma empresa, limpei a poeira de seu rosto, tão antigo e sulcado que mais pareciam as máscaras de Nok. Talvez eu tenha sido a primeira pessoa que a tinha visto tão de perto, e portanto tomei parte daquela sensação de cansaço e tristeza que pesavam sobre seus ombros, uma desesperança que movia seus pés rachados e gordos pela terra, e como o gosto do Cacau eu descobri, que ela era amarga.

Despedi-me, em razão do adiantado estado das horas, e ela assentiu com a cabeça o meu cumprimento, com a resignação de quem já está acostumada com os momentos de partida. Disse-me que já que eu andava pela vida, carregando as palavras dos outros, talvez pudesse encontrar a dela, e caso isso se desse, que eu prometesse voltar para restituí-la, pedido que de pronto aceitei, enquanto experimentava um pouco de canjica branca com canela e coco macerados, feita por Kia no início da manhã e servida a mim antes dos meus passos ganharem caminho. 

Andei alguns metros de distância, e ao atravessar o cruzamento das alamedas, percebi que sua voz me chamava, retornei e estendendo a mão com um colar vistoso, de miúdas pedras avermelhadas, brancas e pretas, Kiaola me presenteou falando “atente-se aos atalhos do seu coração, encontre e siga sempre os ruídos do seu movimento”. Sorri, e abracei-a , sendo este o nosso derradeiro contato. 

Depois de ter estado com ela, passei anos atrás do  fio de sua palavra, e  isso me fez descobrir novos sotaques, fonéticas dissonantes e acústicas distintas, mas infelizmente não foi suficiente para que eu rastreasse o paradeiro da esperança sonora de Kia. 

Durante a extensa jornada, a procura misturou-se a minha própria vida,  meus filhos nasceram, e tiveram outros filhos e suspeito que Kiaola já tenha ido embora dessa terra. Então, talvez eu tenha me enganado crente que essa história, e que sua figura  haviam submergido como outras tantas, nos rios turvos da memória. Um equívoco, pois hoje quando amanheci, ao banhar meu rosto repleto de ranhuras e emoldurado pelos fios cinzentos de minha barba, ao encará-lo de frente, rente ao espelho do banheiro. 

Eu consegui ouvi-la. 

Desenho de Mariana Lucas Coutinho
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Edição 5