Dossiê: Vibrações do Inaudível

Hidrografias ou vestígios da correnteza

Interstícios da enchente

(…) são feitiços do verbo PARTO ORIENTE-me pelas águas turvas de folhagens densas o som é delgado como varetas de pipa é grande a envergadura para que seja resiliência nadar entre as águas de algas emaranhadas como os cabelos da Yara cabelos verdes e pele escamada furta-cor mil-homens é a folha só o sumo das folhas os galhos queimam estalando lenha verde faz fumaçar sinais de fogo para dizer ao Povo Vento as ventanias que sopram por cá ao norte e ao leste PARTO ORIENTE reboso de onde me dependuro numa corrente circular de outras que beiram o abismo SÓ COMER E SÓ FALAR AQUILO QUE CABE NA BOCA (…)

Dezembro 2016/ Janeiro 2017: São Luís/MA (nos confins de um doutorado)

O mergulho nos poros, os desviantes das encruzilhadas o povo todo que tentei evocar para essa escrita… Dar conta. De um repertório de capital cultural e artístico, e dar conta do que é do desejo e das utopias todas que caminham junto desse corpo político. Percebo agora que o processo dessa escrita foi viver este corpo atravessado em múltiplas direções e dimensões e tentar traduzi-lo. Traduzir em linguagem palavral, imagética, física em matérias impermanentes o espaço de experiências que marcam este corpo que fala. As marcas marcam também toda a cadência de uma fala e por isso importam. E contando estória, fazendo o exercício da autoficção-científica como possibilidade de recriação de mundos e histórias que foram apartadas, sequestradas de nossos compêndios de saberes e acessos, de nós que habitamos as bordas. Fica este falatório gago de quem esfrega as mãos suadas e sente as gotas de suor escorrerem pelos pelos do sovaco como quem apresenta trabalho no colegial faz entrevista de emprego fantasiada de pessoa de bem ou presta concurso público ou faz uma performance com a buceta aberta com um espéculo. Só que nesse corpo aqui, impossível falar por outro que aqui não está. Ainda quando há as parcerias há que se olhar e acarinhar as diferenças, as polissemias que semeiam o que comemos, daquilo que vivemos. Em latifúndio se planta monoculturas, são várias repetições do mesmo. Nessas ideias das narrativas por malhas, na construção de histórias por outras vozes, descolonizar os corpos ou ao menos reconhecer onde em nós habita o colonial, as agriculturas são geridas pelo conhecimento da terra. Cada tempo é um tempo de uma coisa em cada estação uma diferença na geografia no clima… E o ritmo é de quem caminha em terrenos lodosos, corre na areia, serpenteia no mato. Corpo aqui sempre deslizando… As línguas deslizando uma sobre a outra de um lado para o outro… Então, foi sobre tecer epistemologias, narrar sobre trajetórias e caminhos para escrever fora da pauta preparada antes de saber; ajuntamentos de modos de viver que gozam por outros meios. Estes repertórios deslocados apresentados aqui e as narrativas fora de esquadrinhamento fazem parte de um processo de produção de conhecimento que parte da experiência do corpo que escreve escrevendo. Aquilo que se faz fazendo… gerundiando… como no telemarketing onde trabalhava no aeroporto de Congonhas em 2005. E na tentativa de fazer dessa escrita e pequenos métodos coisas acessíveis e possíveis para quem trabalhou comigo em 2005 e continua no telemarketing. Ou para as pessoas que cito aqui, durante todo o trabalho que se segue (ou seguiu, depende de que lado você samba…), que não fazem parte do circuito por onde os trabalhos acadêmicos costumam circular, possam fazer desse texto que escrevi algo delas, que as pertença de alguma maneira também. Só caminhando se faz o caminho, caminhante. E agora que é antes de terminar, mas é o fim escolhido para acabar com o juízo de não saber colocar um ponto final final, é que percebo que a angústia e o arrepio de finalizar este livro mora nesse dar conta de reverenciar todo o sangue derramado, toda sangria feita pela cura, todo corpo que transpira na celulose do papel, que para além do vômito da bomba, da dor que é companheira antiga neste processo de pesquisa e de vida, de todas as mortes que habitam aqui, que isso aqui e esse corpo aqui sejam um canto em coro que convoque a vida para dançar no som das explosões, nos fragmentos de silêncio expandidos que flutuam no estilhaço.  AGORA SOU UM COÁGULO, UMA ASSOMBRAÇÃO, UMA CONTRADIÇÃO. Inspiro fundo… Expiro… Ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssse Entrego.


Janeiro 2019: entre santos (Paulo e Luís)

Era terminar um rito de passagem pela aquisição de títulos de nobreza para então habitar essas ruínas assombradas de São Luís. E era um desejo de ser cavalo. Mas eu não parei de me assombrar com a morte. Mas não parei de mergulhar em profundidades abissais. E nesses mergulhos, o movimento de afastar-se da superfície não é tão evidente assim.

É antes de tudo um planeta em contra(di)ção. Contrair, expulsar, dequitar.

Duas vezes a ação de voltar: a re-volta. Três vezes se bate na madeira para que o mal não pegue. Mãe pragueja e fala alto. Sabe ser silente também. Sabidos sabiás assoviam. Aquele mato que faz remédio para a cabeça dos rins. A folha que faz banho cheiroso. A casca que ferve e limpa das entranhas o sal de pedra, a mágoa, o embuste. 

Não contar e ainda assim contar.

Eu contava os dias e enumerava semanas e contava as gotas de suor do rosto no calor úmido e de corpo cheio. Precipitações.

2017 / 2018: nos inícios da maré cheia (dentro)

(…) somos o peso dos ossos na carne nossos ossos nas nossas carnes água meu corpo é feito de água não sei como não escorre pela terra eu era feita de pedra areia e tijolo agora sou água e sal uma medida de ph e densidade hoje foi mais brutal e tive medo de me desconhecer no espelho eu era só um vulto agora raiz e espasmos (…)

(…) a coisa mais velha do mundo em paridade com as coisas que se formam no universo pó de estrelas restos de planetas implodidos para criar corpo forma densidade ossatura líquido e viscosidades espanto e choro incontido volteias as voltas na margem do útero expandido marsupial no sonho onde a comunicação é por extenso extensa via láctea lactante bicos prontos para o jorro é possível o gozo a partir de cordas que envolvem o corpo de dentro e de fora poroso poço posso entremeados de novembro germinar para num agosto mais espesso expandir telúrica (…)

Raposa baleia serpente-que-devora-outras-serpentes corpo celeste cadela cavalo marinho boto vaca réptil mamífero marinho corpo cabaça pedaço de mundo núcleo de esfera fera bruta selvagem animal não doméstico rebelião de seres embarcação voadeira biana bote canoa afronta nossa vida é uma afronta planta de raízes móveis eles que pensam que as árvores não caminham raiz raiz maíz Pacha que me guia abre expande torce estala a bacia estala como galhos de mangue que conversam entre si sou planta de manguezal prenhe de vidas e me julgavam morto eu manguezal urbano cheio de lixo me regenerei junto aos outros mangues (…)

2017 / 2018: líquidos entornados entorno (da bacia) e os auspícios das marés baixas (conta gotas de revés: des-encher)

(…) o suor me escorre da pele o corpo sabe e a razão tenta esconder os avisos pelos sonhos o sono enviesado a encantaria correndo léguas teu corpo diz “não quero esperar” eu digo “vou já” pela manhã madruga dia uma primeira tempestade te anuncia te grita das águas que invadem o quarto pela fresta das janelas ser de água e luz trabalho teu parto como ebó e gira corpo de barravento pra te proteger do sereno do mundo corre dia não enxergo mais as coisas apago a luz da baia que me é designada me apago desse mundo o que vejo são vultos luzes e minha avó sentada na cadeira defronte a nós rebolar uivar andar de quatro redonda circular o espaço quarto crescente em qualquer lugar é possível ser selvagem EM QUALQUER LUGAR É POSSÍVEL SER SELVAGEM quem vem comigo são as ayabás as amazonas tapajós guajajaras ê a caboclada nos examinam dedos na vagina dilatação 4 5 6 7 8 mijar de quatro na cama o cheiro de buceta domina todo o ambiente as batidas do teu coração forte como eco espectro tem marcas indeléveis e invisíveis que só nossos corpos habitarão (…)

(…) uma desaparição às vezes é preciso desaparecer desapagar para dar espaço para nada ser é como um tipo de reencarnação e habitar esse novo corpo velho desusado era um que virou dois que era dois em um que era o desacreditar que era o crescente que virou cheia até explodir quando o dois que era um resolveu ser um fora daí acreditar e seguir acreditando são desesperos condensados no meio da felicidade em volta dela por onde não sabemos ou não queremos ver há traumas e colapsos há desamores e coisas arrancadas deixando raízes fraturadas há uma carência absurda (…) acredito no revide a solidão é estruturante na ma-trans-ternidade

Hoje me sento para conversar com o Tempo é tempo de perceber as rotações torcer para dilatar expulsões contorcer os ritmos é num aboio mais grave [ ] é o caminho sentar-se diante do tempo é observar o assentamento das almas no espaço de vida as palavras se afogam nos fluidos que vertem correntes elétricas que desaguam pelo corpo ESTA É UMA FÁBULA PERINATAL é pelas bacias que posso falar nas vozes do tempo pela minha bacia suas vozes no tempo dobra e mais uma vez e outra vez e outra vez diz-torce a violência divina pegam fogo as matrizes para que não haja mais cópias asas finas que dobram as contagens mil cópias quebradas e os dedos estilhaçados pela própria boca foram dois dias de banhos [ ] agora chove depois de tanto tempo sem pingar do céu PRECIPITAÇÕES não temer o erro tomei as pancadas da primeira chuva de lava 15 de outubro

2018: escrever com os olhos

O relógio virou na meia noite. É lua cheia e um grande clichê arrodeia pelas órbitas oculares. Trepida o peito. Não saber mais o que se é. Refém recém chegado ao cativeiro. O encontro se gera se gesta e regenera camadas esquecidas. Cada mormaço em cada pele que retesa de calor amolece e flui pela umidade relativa do ar e o suor pode brotar fresco. O suor. As mãos que se esquartejam frias esperando a hora do jantar as pausas indecentes mínimos silêncios em cada testa que deixa vazar palavras enrugadas pelo pulsar da língua entredentes. No canto da boca uma palavra caída não dita. Em cada canto de cada boca uma palavra caída maldita escorrendo aflita. Cada sela espera por um cavalo em cada cela sela pactos com a palha e os tijolos o barro grosso e vermelho como uma cara branca ardendo no sol da palma da minha mão. Pisando com as mãos a amassar as construções em palcos de danças da besta fera. A era erra. Não ouso dizer um romance nem coisa alguma destas nefastas que cheiram a naftalina e lembrancinhas de casamento empoeiradas aqueles sabonetes envolvidos em filó com pequenas rosas mentirosas fechando o pacote falso. Não ouso falar nestes termos que remontam a coisas esquecidas em quartos que ninguém abre. Não quero dizer dessas coisas que me dão calafrios e fogo nos pés. 1, 2, 3, respirar para desopilar as artérias da cabeça. O ar está pouco aqui. Mas eu respiro bem debaixo d’água. É o encontro e a falta que ele faz. Era lua cheia e ainda é. 

Para virar a festa para parar os relógios com os pés. Em vielas o corpo se esconde atroz. O corpo não é são. São corpos e nenhum são. São elas Paulo e Luís cada cidade em sua ilha e um rir de janeiro entremeios entranhecido. É um desencontro um descompasso os ponteiros tropeçam e o encontro se esquiva. Se perde nos escombros da cidadeassombro. As sobras as sombras e um desdizer constante.

Franze as sobrancelhas junta as pálpebras úmidas e os cílios podem agora molhar sem demora. A seguir a seguir… E uma após a outra pinga gota grossa. É chuva. Sobe o cheiro de mofo; ideias velhas vazias. Juntei meus olhos e derramei no fogo. Pague meus honorários e desvie das ratazanas na calçada. Cuidado: eu ainda existo? Ainda… anda fala e ouve vozes. É pela boca que reconhece as coisas do mundo. Boca vazia sem dentes e uma língua que dança ensaiando palavrório. Há um cansaço inabalável em cada olheira. É muita água.

Enquanto des- espero a pia continua cheia de louças sujas de ontem, as roupas não secam no varal. Três lâmpadas esperam ser trocadas, as contas aguardam a paga, os panos de chão fazem aniversário no balde com água sanitária, coisas amontoadas na fila de um destino mais justo. Somos essas coisas amontoadas esperando uma justiça que não vem. Des- esperando. As mães fazem isso… Nos des- esperam enquanto dançamos frenéticos aos ritmos etéreos do som da rua. Minha mãe, a sua mãe, eu-mãe. Puta Madre. A carta de número 22 sobre a mesa, Heyokah dançando a vida e a morte. Eu-mãe nascido do morto eu-filha. 

O invisível. Prudência. 

Uma lacraia gigante com patas de elefante e ferrões de arraia faz sua coreografia peçonhenta no chão do banheiro. Água quente para mudar de cor. Num braço carrego uma criança que ri na mão oposta três serpentes vivas. Meu semblante é soberano olheiras púrpura. Os dedos do pé empurram o chão até o inferno. Estou em pé um seio mais cheio que o outro. O corpo repleto de algas cabeça exposta ao vento. Silêncio. Uma rajada de pedras. 

Continuo em pé, a criança crescida ainda ri, serpentes em riste. Vou queimar o sol com meus olhos. Esse cansaço não me abala.

Janeiro 2019: São Paulo/SP

(…) no delírio da carniça. Aqui tem esgoto descendo a rua junto com nossos passos. Águas envenenadas de abandono, impossível negar que vim daqui. Os rios pesam toneladas para além e correm como uma superfície densa de metais, óleo diesel, trilhos, chumbo e animais mortos: Pinheiros, Tietê, Pirajussara, os córregos na beira das casas da beira. Pra trabalhar às quatro da manhã todos os dias minha avó atravessava uma pinguela nas ruas sem asfalto. Por baixo corriam águas verde lodo com cabeças de boneca e outros membros desencontrados em decomposição. Nas férias da escola eu ia com ela. São Paulo. O esgoto a céu aberto onde nasci. Periferia sul, Jardim Santo Antônio, Capão Redondo, Grajaú. Eu vim daqui. 

Agora que a buceta está destampada minha boca pode falar. Eu falo

Esperar e des esperar. A placenta o coágulo o resto de parto. Escorre o sangue derrete a cara desfigurada da dor dos movimentos para coroar e expulsar a nobreza ancestral que sai da caverna da montanha. O tempo murcha o corpo que pari esse corpo não para não peça que eu pare. Nas pentecostais neonazi militares eles rezam para suas armas suas pólvoras suas bíblias com cheiro de morte matada. Aqui no útero degenerado, na buceta que fala, na cria insurgente e inviolável, brotamos do nada. Somos parentes da água e da terra, viemos da lama e reconhecemos no raio e no trovão o brilho de nossas vozes. Nós falamos no sotaque das plantas que curam feridas do açoite e sequelas ancestrais. Também para dar de beber aos sinhozinhos e sinhás como o feitiço que nos libertará. É no cuidado…  Nós sabemos o bem e o mal que faz cada coisa, o que se vela e o que é velado. É em passos miúdos que se segue adiante. Que as águas enferrujem seus metais. O medo não nos abala.

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Edição 5