No canto direito do quadro, há uma mulher. Ela está sentada na cadeira, mãos postas sobre o colo. O pequeno quarto ocupa a maior parte do quadro – a cama, o tapete, um pequeno sofá, uma cômoda e um espelho. Uma voz anuncia: “Et je suis partie”. Na tradução para o português, algo se perde, algo se parte: o original significa não apenas “E eu parti” mas também, em livre exercício de leitura, pode sugerir “E eu sou partida”. Este “eu” que se anuncia de partida, ou que se assume partido, permanece na imagem por exatos cinquenta e três segundos, imóvel e inteiro. O corpo está lá e dura, em grãos de luz e tons de cinza.
Trata-se do primeiro plano de Je Tu Il Elle (1975), da cineasta belga Chantal Akerman. É ela quem interpreta a mulher que partiu, a mulher partida. É dela a voz que diz “je”, assumindo, ao mesmo tempo, o lugar de diretora e personagem. Tal procedimento não é inédito em seu trabalho – seu primeiro filme, Saute ma ville(1968), já trazia a diretora como única personagem. Nele, vemos Chantal adentrar a cozinha, mas antes disso, nos é revelado um segredo atrás da porta – fixada abaixo de uma foto, uma folha de papel traz, escrita à mão, a expressão “C’est moi!”. Tal expressão poderia ser traduzida para o português como “Sou eu!”, entretanto, uma outra vez, algo se perderia na tradução: em francês, a contração do termo “Ce” com o verbo na terceira pessoa do singular “est” opera uma objetivação do “eu” – “Isto é eu”, seria a tradução literal, em que o “eu”, destituído do lugar de sujeito da frase, passaria ao lugar de objeto direto.
A questão do “eu” e do documentário, da ficção, do tempo e da verdade, são questões que nunca conseguirei responder. Por que não? Porque. Porque eu mesma não compreendo nada, nada mesmo. E sem dúvida, se eu compreendesse tudo, não faria mais nada. [1]
Estamos diante de um “eu” bem distante do cogito filosófico: eu que existe, resiste e se expressa nas margens do que não se pode pensar ou dizer. Chantal escreve: “Não há nada a relembrar, dizia meu pai, não há nada a dizer, dizia minha mãe. É sobre esse nada que trabalho” [2]. Ainda sobre a questão da autobiografia em sua obra, ela cita um trecho do diário escrito por Sydonie Ehrenberg, sua avó, aos 13 anos:
Eu sou uma mulher. Não posso, pois, dizer meus desejos e pensamentos em voz alta. Posso apenas sentir escondida. Portanto de você, diário, o meu, quero apenas poder dizer um pouco dos meus pensamentos, dos meus desejos, de meus sofrimentos e alegrias, e tenho certeza que você não me trairá porque será meu único confidente…” [3]
Chantal comenta: “esse diário, guardo comigo”. A diretora parece ter guardado de sua avó não apenas as memórias, mas o método: fazer da escritura, no caso, fílmica, uma forma íntima e constante de expressão. Em 1996, ela senta-se novamente numa cadeira, dessa vez de frente para a câmera. Está gravando um programa para a série de TV francesa Cinéma de notre temps, que irá resultar no filme Chantal Akerman por Chantal Akerman. Tem nas mãos um texto, que lê continuamente. Ela diz: “quando revejo meus filmes antigos, penso como pude fazê-los? Não fui eu, foi alguém de desconhecido que os fez.” E admite: “preciso de uma forma, um conceito, um dispositivo, para depois preenchê-lo de alguma coisa. (…) Conseguirei então mobilizar esse desconhecido de mim. [4]
Sim, ela sabe: o cinema pode oferecer “uma forma, um conceito, um dispositivo” para mobilizar o que não se pode dizer, saber ou conhecer. Ela sabe também que fazer um filme exige, entre outras coisas, haver-se com si própria, investir na obra uma dimensão reflexiva, estabelecer com as imagens e sons alguma relação de desejo. A sofisticação de seu cinema está na maneira como ele escapa do egocentrismo em favor de uma relação com o exterior, com o que ultrapassa e atravessa o corpo – o fluxo do tempo, a vastidão do espaço. Colocar-se em cena, nesse sentido, não é gesto movido por mero impulso autobiográfico ou confessional, mas pela necessidade de estabelecer conexões entre a primeira e a terceira pessoa, o interior e o exterior, o íntimo e o estranho, o pessoal e o político.
Trata-se, portanto, de um “eu” que toma o ato de criação como via de deslocamento, que obriga este mesmo “eu” a se reposicionar: não mais centro a partir do qual emanam ideias e sensações, mas ponto que se liga a outros pontos, outros sujeitos, outras histórias. O movimento que interessa a Chantal é o de descentralização, como uma lenta panorâmica que busca capturar detalhes do espaço, dos objetos, dos móveis, da luz que entra pela janela, flagrando o corpo apenas de passagem – o que seria, sumariamente, a descrição do que se passa em La chambre (1972). Uma outra vez, é ela quem está diante da câmera, deitada na cama, mas o olhar não se demora nela, antes, desloca-se numa varredura espacial que dilata o tempo da tomada, lentamente compondo um espaço que, em sua circunspecção, apresenta-se constantemente modificado, reinventado à medida que a câmera circula por cada elemento da cena. Não há centro, no cinema de Chantal: a economia formal que orienta, com rigor, suas imagens, cria uma espécie de força centrífuga que orienta o olhar em direção à região marginal da imagem, lá onde tudo se movimenta, tudo escapa. É tênue, embora bem delineada, a linha que separa o que está em quadro do que está fora, e é exatamente essa linha, essa fronteira, que Akerman busca explorar através de seus planos fixos, geométricos, extremamente bem compostos, como quem trabalha entre os “dois excessos” sobre os quais escreve Bresson: “a ordem para criar e a desordem para fazer a vida”.
Assim, seu corpo em cena torna-se, ele próprio, campo de uma experimentação firmada entre a imobilidade e o movimento, a repetição e a invenção, a ordem e a desordem. “Olha-me, então, de corpo inteiro”, diria a personagem de Je Tu Il Elle, a mulher de cabelos escuros que se despe frente ao reflexo da janela, que arrasta os móveis pela casa, que escreve cartas enquanto se alimenta de açúcar, que dá prazer ao homem a quem pede carona, que finalmente se deita com outra mulher, performando o ato amoroso como se dele restasse apenas linhas, volumes, luz e contraste. “Veja do que meu corpo é capaz”, diria a personagem de Saute ma ville, a mulher de cabelos escuros que, ao engraxar os sapatos, acaba por sujar as próprias pernas, a mesma que come e bebe com gestos exagerados, que veda a porta da cozinha e acende o gás, como quem declara: “meu corpo também é capaz de morrer”.
Na primeira parte de Je tu il elle, a menina que escreve cartas durante o que parece ser uma eternidade diz: “Sabia que estava ali há vinte e oito dias”. Mede-se o tempo pelo ciclo do corpo: a cada 28 dias, sabemos, a mulher sangra. Sobre este filme, um homem escreve:
a novidade em Chantal Akerman está em mostrar assim as atitudes corporais como signo de estados de corpos distintivos da personagem feminina enquanto os homens apontam para a sociedade, o ambiente, a parte que lhes cabe, o pedaço de história que arrastam consigo. Parado ou no espaço, o corpo da mulher conquista um estranho nomadismo que lhe faz atravessar idades, situações, lugares. [5]
Em seu “estranho nomadismo”, Chantal não apenas oferece ao cinema um outro olhar sobre o corpo feminino em contraposição ao male gaze, como propõe um aprendizado que começa por este corpo. Corpo que sangra em perigos regulares, que é capaz de gestar e parir, se assim for, ou que é capaz de fugir e se negar a tudo isso, se assim desejar. Silenciado, canonizado, castrado, queimado na fogueira, santificado em nome de Deus, satanizado como objeto de desejo e perdição, o corpo feminino é aquele que, historicamente, esteve sempre de partida. Et je suis partie, diz a mulher. E deita-se, nua, páginas escritas ao redor, sobre o colchão.