Esses tênis brilham porque não são feitos para pisar o chão. O corpo virado do avesso é, na realidade, um corpo que vem de outra parte, um corpo que existe de outra maneira no espaço e que reclama, por isso, uma outra forma de posição. Há fumaça e escuridão, há também aquelas luzes azuis que se movem diante dos nossos olhos. Estou assistindo uma viagem no espaço, uma aventura cósmica, uma evocação de forças disruptivas sobre os mundos de dor que compõem aquilo que convencionou-se chamar realidade. Estou falando sobre mágica; estou falando sobre coreografias fugitivas; estou falando sobre futuridade negra; estou, enfim, falando sobre o solo de Ana Pi, NoirBLUE [1].
Ana Pi é bailarina, investigadora, coreógrafa e artista da imagem. Sua prática envolve as tradições incorporadas da diáspora negra e as danças contemporâneas periféricas em um movimento simultaneamente íntimo e coletivo voltado à invenção de exercícios de liberdade transitórios, de micro e múltiplas interrupções nas coreografias normalizadas de captura e violência. Nesse sentido, seu trabalho é um estudo sobre como estar atenta enquanto dança e a filosofia política encarnada que ela articula nos fornece um aglomerado de ritmos, batidas, quadris que vibram, saltos, quadradinhos e sarradas elaboradas através e para além da violência racial; um arquivo sensível de gestos comprometidos com uma definição de dança enquanto um ato de luta e uma estratégia de fuga.
A dedicatória aos movimentos #BlackLivesMatter e #JovemNegroVivo, por sua vez, não opera simplesmente como a promoção de uma causa. Mais bem, ela assinala um engajamento da artista com o informe campo de forças que configura a coalizão espiritual negra. NoirBLUE parece emergir de uma espécie de encruzilhada cronológica, tanto como a atualização de uma força ancestral quanto como uma operação premonitória. Sua relação com tempo e memória, e seu compromisso com a luta continuada para que as vidas negras importem, intervêm na dança especulativa de Pi com um programa ético definitivamente enraizado numa certa forma de futuridade – uma abordagem estratégica do tempo que visa operar no futuro por meio de uma leitura poética do presente do mundo, suas relações fodidas e as brechas radicais que elas comportam.
Num certo momento da peça, Pi propõe à audiência um jogo (aqui é importante registrar que, ao dizer “audiência”, estou me referindo a um grupo majoritariamente Eurobranco). Ela traz para a frente do palco um bocado de pequenos rótulos autocolantes brancos e começa a colá-los ao próprio corpo um a um. Enquanto isso, a audiência é convidada a enumerar categorias de azul. “Azul marinho, azul bebê, azul piscina”, Pi é quem ativa a lista para que em seguida o jogo comece. Gradualmente, as vozes da audiência começam a entrar em cena com mais e mais categorias de azul. Pi segue brincando com as palavras, fingindo e fazendo mal-entendidos, mas o que captura a audiência no jogo armadilhado da categorização é a própria naturalidade do gesto classificatório no contexto social em que o trabalho se apresenta.
Quando, no final do jogo, quase todos os rótulos foram finalmente dispostos no corpo da artista como marcas, ela corta o diálogo com a audiência e corre rumo às sombras de seu palco, dançando firmemente à medida em que as luzes se enegrecem. Ao evidenciar os rótulos brancos, a implementação da luz negra opera como um dispositivo eficiente para as políticas da opacidade negra. Ela desmaterializa a negritude como um objeto do olhar branco-colonial enquanto marca o branco como um objeto de sua própria sujeição. É quando o corpo negro desaparece em meio a atmosfera fluorescente da luz negra que o trabalho realiza sua mais poderosa forma de crítica, ao desafiar a noção mesma de materialidade que reproduziu a branquitude como única e totalitária forma de presença. Assim, quando as luzes enegrecem, o corpo negro rompe sua contenção rumo a uma forma de presença radicalmente outra: tornando-se a escuridão ela mesma.
A iluminação de NoirBLUE é uma parceria entre Ana Pi e Jean-Marc Ségalen e é crucial para a peça, especialmente por sua relação com a sombra, a escuridão, a luz negra e a fumaça. Visibilidade aqui não é jamais confundida com transparência. Em vez disso, ela é reposicionada de acordo com um projeto visual que elabora a escuridão como um campo não-representacional onde não há um olhar dominante capaz de recortar corpos como objetos. Se esse é um trabalho sobre visibilidade negra – e é, bem como este texto, ambos inscritos por um mundo que nos invisibiliza enquanto sujeitos e criadoras para fazer de nós temas e objetos hiper-visíveis –, ele o é na medida em que a visiblidade negra necessariamente desafia o lugar comum do Iluminismo e configura um aparato sensível que nos permite ver através, pensar desde e existir para além do escuro.
Já no final, enquanto Ana Pi arma um novo jogo – desta vez um leilão do vinil contendo a trilha sonora original da peça –, a audiência é convidada a tomar uma posição no espetáculo do valor. Talvez a pessoa que venceu o leilão na ocasião em que assisti a peça (o renomado escritor português Valter Hugo Mãe), comprando o vinil por menos de 50 euros, acredite que aquela cena trata simplesmente da venda do disco. E num certo sentido sim, mas, quando consideramos o drama histórico que conecta o corpo negro de Ana Pi à cena do leilão, temos de confrontar a violência inerente à moderna equação do valor. O jogo, contudo, é dinamizado pela maneira como Pi entra e sai dele, jogando com o valor contra a violência do valor.
NoirBLUE não cessa de mover o modo como certas operações naturalizadas são feitas. Assim, do mesmo modo que na cena dos rótulos brancos, a cena do leilão incide diretamente sobre a automaticidade das respostas da audiência, instaurando uma armadilha reveladora da continuidade entre valor e evento racial, sem, com isso, evidenciar todas as estratégias críticas lançadas na cena. Essa dimensão jocosa do trabalho é, sem dúvida, uma outra manifestação da opacidade na poética de Ana Pi. Sem ceder ao imperativo da transparência, Pi aposta na dissimulação da densidade crítica do próprio trabalho para criar uma plataforma sensorial por meio da qual irradia uma poderosa força antirracista, que incide sobre a audiência branca sem que esta seja capaz de sequer perceber aquilo pelo que está sendo tomada.
Para encontrar as forças acionadas por Pi, é preciso permitir-se a enxergar com os ouvidos; especular com os pés; pensar com os quadris; e na pele ativar tanto um radar quanto um locus espiritual. Nesse processo, a música atravessa os sentidos, os significados e a cognição ela mesma, como uma força que faz vibrar tudo na sala, desde o corpo de Pi até o movimento intestino de todos os corpos e das coisas presentes. Jideh High Elements é o colaborador convidado por Ana Pi para a criação da trilha sonora, e suas faixas são, ao mesmo tempo, composições profundamente enraizadas nas tradições da música eletrônica negra e rotas de fuga para os gestos ancestrais de futuridade negra que compõem NoirBLUE.
Todos esses elementos realizam uma atmosfera, e nos sugerem que NoirBLUE não deve ser lido como um espetáculo, mas como a instauração performativa de um outro mundo. “Que mundo?”, a leitora pode perguntar, cedendo à tentação da transparência. Mas uma das belezas do trabalho de Ana Pi é, precisamente, sua capacidade de instaurar um mundo sem torná-lo completamente visível. Criar essa força imaginária que – em face do mundo como o conhecemos (o mundo do capitalismo racial) e seus aparatos extrativistas – recusa a visibilidade como transparência é uma forma de auto-preservação das vidas e projetos especulativos negros. Se no meio da peça as luzes de emergência da polícia iluminam o corpo de Pi, é porque, desde a posição do sujeito negro, ainda não se pode ser livre neste mundo; mas se Pi continua a dançar depois disso é porque, desde essa mesma posição, ela carrega consigo algo (um segredo!) pelo que vale a pena lutar.
N.E.: Esse texto já foi publicado previamente no livro “Não Vão nos Matar Agora”, de Jota Mombaça. Galerias Municipais/EGEAC, 2019
[1] N.E.: Site oficial Ana Pi https://anazpi.com/