“Faire des histoires” é uma expressão difícil de ser traduzida para o português. No uso coloquial, quer dizer criar caso, criar problema onde não tem, implicar, encher o saco, pegar no pé. Um pai pode dizer para o filho: pare de “faire des histoires!”, se o filho estiver fazendo birra, gritando, rolando no chão. Um homem diz para a mulher: não invente histórias, não crie caso, pare de reclamar à toa! No livro de Vinciane Despret e Isabelle Stengers, Les faiseuses d’histoires, a expressão remete ao papel das mulheres na universidade e a todas as pequenas diferenças em relação às posições ocupadas pelas mulheres: ao fato de que não chegar ao topo da carreira se deve, em muitos casos, a uma repartição desigual das tarefas familiares, à opção de ter ou não filhos, por exemplo. A inspiração vem de Virginia Woolf, que sempre desconfiou da oferta feita às mulheres para que entrassem na universidade: não devemos, dizia Woolf, engrossar essas fileiras de homens cultos, cheios de honras e responsabilidades. A universidade diz para as mulheres: vocês são bem-vindas, pois este é um espaço democrático, mas desde que não criem problema, não criem caso com essas questões menores (vous êtes les bienvenues à condition de ne pas faire des histoires…). No livro, as autoras transformam esse lugar, designando-se como as “fazedoras de histórias”, “as criadoras de caso, de situações”, o que pode ter um papel afirmativo como constituição de um novo lugar, uma nova relação com o pensamento: o que as mulheres fazem com o pensamento?
DR – Bonjour! Essa entrevista é sobre mulheres e política. Aqui no Brasil, desde as manifestações de junho de 2013 até recentemente, no período da Copa do Mundo, experimentamos algumas dificuldades em criar uma continuidade para os movimentos. Nessas manifestações, além dos movimentos organizados, estavam presentes também muitos outros sujeitos, que não pertenciam a nenhuma organização política. Em seguida, nas tentativas de organização que surgiram dali, tornou-se um problema a quantidade de disputas, de brigas. Nesse cenário, experimentamos algumas dificuldades, que acabamos associando à posição das mulheres. Acabou que nós, que nunca fomos feministas, de repente tivemos esta ideia de fazer uma revista só com mulheres. Porque começamos a sentir dificuldade em discutir política com homens.
VD – Concretamente, que dificuldades eram essas?
DR – Eles parecem dar lição o tempo todo. Se você concorda tudo bem, mas se quer colocar um ponto que não está na pauta, não prestam atenção.
VD – Não há como discutir…
DR – E tem todo o lado afetivo, que queríamos colocar em certo momento… Por exemplo, houve uma grande repressão aos protestos durante e depois da Copa, com pessoas presas, e quisemos escrever uma carta para a Dilma [Roussef]. Queríamos adotar um tom mais afetivo. Para a gente, a questão do tom era importante. Escrevemos a carta, circulou muito, achamos que até a Dilma leu, mesmo que não tenha respondido. Mas, durante o processo, foi difícil dar um tom afetivo à tal carta. Escrevemos junto com homens que partilhavam totalmente da nossa posição política, mas não eram sensíveis à questão do tom.
VD – Quais eram os argumentos para recusar o tom afetivo? Chegaram a dizer “não, não podemos falar assim”?
DR – Não exatamente, mas disseram que não teria efeito político se não fosse mais argumentativa. Se não trouxesse um discurso mais sólido.
VD – Sim, isso pra eles não tem efeito pragmático. O argumento é “falar afetivamente não tem efeito político”.
DR – Isso mesmo, é preciso explicar, dar “argumentos”, mobilizar “a história” ou “a teoria”.
IS – Como se as manifestações que permitiram que muitos homens teorizassem sobre elas não tivessem sido afetivas…
VD – Ou talvez haja uma separação. Para a manifestação é o gesto do corpo. Depois se racionaliza.
DR – E não foi só aí, experimentamos a mesma dificuldade em outros grupos. Então decidimos criar um grupo de mulheres e fazer uma revista chamada DR, que quer dizer “discutir a relação”. Se há um problema no casal, por exemplo, e se quisermos discutir a relação, isso costuma ser mal visto pelos homens. Eles dizem “ah! Lá vêm essas mulheres querendo discutir a relação”, “Que chatas…”
IS – Achei o Brasil mais machista que outros países. Na Europa não se ousaria dizer “ah, as mulheres”, talvez entre homens, mas nunca na frente de outras mulheres.
VD – O machismo, no nosso caso, passaria por questões acadêmicas. A diferença também seria ressaltada, mas não com um homem dizendo “ah, as mulheres”, pois os poderes se deslocaram. Por outro lado, seria ainda mais forte nas questões acadêmicas, porque um homem diria “academicamente não se pode escrever assim”. Nesse caso, lida-se com uma força ainda maior pois se trata da exclusão produzida pelo bom academicismo.
DR – Então, uma de nossas inspirações para pensar esse problema é o livro de vocês, Les faiseuses d’histoires – que font les femmes à la pensée?[1]. Agora surge a questão sobre os modos de se discutir e de se fazer política, depois de todos os movimentos que ocorreram no Brasil. Fazer política como universitárias, mas fora da academia. Não conseguimos mais fazer nosso trabalho do mesmo modo que antes. Achamos uma excelente ocasião que a primeira entrevista seja com vocês…
IS – Vamos em frente!
DR – Passemos às perguntas então. Até que ponto, o fato de sentirmo-nos solicitadas pela necessidade de prestar atenção ao “modo de dizer” em um discurso político significaria “ocupar um lugar de mulher”? Para nós, não basta que um discurso político seja justo para que mobilize o engajamento de todo mundo, é preciso também um trabalho sobre o tom, sobre os modos de dizer. Mas como conseguir o reconhecimento de que essa é uma questão política em si? Essa dificuldade nos parece ligada a uma longa tradição na qual a discussão política é uma atividade reservada aos homens.
VD – Eu começaria assim, mas é realmente uma maneira de começar pelo exterior. A reflexão sobre o modo de interpelar o outro é uma discussão psicológica ou uma discussão política? Começaria por aí. Se a psicologia se apropriou das emoções, por exemplo, e dos modos de afetar, de sentir, de expressar, ela moldou os modos de ser do povo que se expressam nas manifestações e nas revoltas. Os “homens civilizados”[2] se expressam através de uma racionalidade sobre a qual, invariavelmente, todo mundo deveria estar de acordo, pois todo mundo é racionalizado. De um lado, isso é um pensamento masculino, pois a psicologia segue com “os homens veem de marte e as mulheres de vênus”. Quero dizer, mesmo na Europa, supõe-se que ninguém use argumentos machistas, mas ainda devemos nos submeter aos discursos sobre um estilo. Nas revistas pretensamente emancipadoras femininas, ainda há “as mulheres são mais sensíveis” ou “as mulheres pensam mais em um discurso afetivo”, o que é muito perigoso de dizer, pois se se faz disso uma psicologia, torna-se uma maneira de desvalorizar e de dar razão aos que detém a racionalidade. Então, como tomar um discurso afetivo para fazer dele um discurso? Não um discurso afetivo, um discurso sobre a afetividade, sobre o corpo, sobre os modos de fazer, de maneira que isso se torne um modo político de engajamento? É a primeira coisa que eu diria, enquanto os homens não aceitarem, e mesmo as mulheres, aliás, pensar que a própria maneira de caracterizar os modos de fazer são questões políticas, ou seja, maneiras construídas, nas quais nos construímos pensando pragmaticamente no que é eficaz, no que dá forma a uma outra política, ainda não começamos realmente, pois essa questão será sempre rebatida para o lado da psicologia, “bem, são mulherzinhas, ora!”.
IS – Sim, acredito que em uma assembleia esteticamente masculina, e eventualmente também majoritariamente masculina, uma mulher sozinha que tente transmitir o afeto será irremediavelmente psicologizada, não vai conseguir. Por outro lado, isso seria possível com um grupo de mulheres que tenha se preparado para fazer uma intervenção, justamente porque é um coletivo, porque elas juntas se tornaram capazes de fazer essa intervenção. Poderíamos dizer “fazer disso toda uma história”, “criar um caso”, “criar uma situação”. Não digo que assim terão sucesso necessariamente, mas não se poderá dizer que é simplesmente um problema psicológico. Pois essa dimensão da produção coletiva de um afeto tem relação com a dimensão política. Acredito que o feminismo começou quando as mulheres conseguiram produzir grupos consistentes para intervir com um estilo que era o delas e que se tornou, então, irredutível à psicologização.
VD – E que passa explicita e claramente por um estilo escolhido e construído. Logo, todos os termos como “autenticidade” e “espontaneidade” são termos venenosos. Se as pessoas imaginam, por exemplo, que vocês têm um discurso espontâneo, vocês estão ferradas! Porque o discurso espontâneo pode permitir remeter à natureza das pessoas ou à psicologia. Eu continuaria então o que a Isabelle disse: a forma como a gente se produz é uma aprendizagem, de modo que aquilo que estamos produzindo não possa, em nenhuma hipótese, passar por algo que emanaria da natureza das mulheres, da natureza das dominadas. Tem que aparecer realmente como algo combinado, algo construído e elaborado conjuntamente.
IS – E é por isso que nos momentos em que o feminismo foi inventivo, a ideia de mulheres bruxas estava tão presente. No sentido em que as bruxas são também aquelas que sabem se reunir para preparar coisas. Sair. São aquelas que sabem que é preciso se proteger da interferência para serem capazes de sair, de produzir uma diferença.
DR – Queríamos falar também de algumas pequenas armadilhas que sentimos na discussão. Vocês falam de uma recusa ativa de um gênero de pensamento que desconfia das mulheres, como se elas fossem incapazes de levar a sério os problemas que transformam o pensamento em campo de batalha, uma recusa em deixar que um “falar verdadeiro” barre o caminho de um “falar bem”. Em que medida esse “falar verdadeiro” se infiltra, às vezes de modo muito sutil, nos discursos irônicos, indignados, e perpassam as polêmicas que estão na moda em toda discussão política. Esses modos, disfarçados de “maus modos”, porque revoltados, não levam também a reafirmar posições já constituídas, paralisando justamente a capacidade que o falar pode ter de estabelecer conexões?
IS – Que sempre estiveram na moda nos grupos estritamente militantes. Quer dizer que toda intervenção que complique, que abra, é difícil. Qualquer ação para complicar as coisas, a fim de permitir que outras coisas entrem em jogo, que não estão na pauta, será vista como algo que pode enfraquecer a causa.
DR – Sentimos que isso acontece muito nos discursos de intelectuais. Não somente militantes, mas intelectuais sofisticados, que fazem hoje um monte de discursos irônicos e indignados, o que é também um modo de criar um grupo fechado no qual ninguém mais pode entrar, sobretudo os que não são suficientemente inteligentes para entender ironia.
IS – Sim, mas a ideia de grupo militante, a ideia de militância, tem sempre intelectuais à frente. Quando se tem um coletivo de trabalhadores em greve, é diferente. Grupos militantes têm sempre ideólogos no comando. Logo, não se pode produzir diferença, o intelectual está sempre pronto para tomar o comando e dar a boa direção.
VD – Dar o tom.
IS – Logo, não se surpreendam, quero dizer, desse ponto de vista que falamos, os intelectuais estão sempre no seu lugar, não para abrir, mas para mobilizar e dar a verdade. A verdade sobre o que está acontecendo. E é sempre assim: “nós não somos cegos, somos os que veem a verdade!”, “devemos cassar as ilusões que levam a pensar de outras maneiras!”. Assim, é um tipo de radicalização que atua como se o fato de não ser cego, de enxergar a verdade, fosse a força do movimento, como se a verdade contra a cegueira fosse a arma principal daqueles que se revoltam. É também uma velha teoria da alienação, o intelectual é aquele que luta contra a alienação que faz com que as pessoas aceitem suas amarras, suas correntes. Ele é então aquele que quebra as correntes. E aí, efetivamente, o sentimento, a intuição, o afeto, não entram, é como se não tivessem nada a ver.
DR – Não sabemos se vocês observam algo particular com respeito à indignação. Nas redes sociais, por exemplo, há muito discurso indignado, e sua repercussão é muito fácil, discursos com esse tom se reproduzem com uma facilidade incrível. Mas já é diferente nos movimentos, por exemplo, o movimento dos indignados…
IS – Há diversos tipos de indignação. No movimento dos indignados, na Europa, há realmente uma indignação afetiva: “Assim não dá!”, “Esse mundo não dá mais!”. E isso permitiu reunir todos aqueles que, por seus pontos de vista, eram mais pluralistas do que indignados, ao menos na Europa. Já a indignação na boca de uma só pessoa se torna rapidamente “designar a verdade por trás da indignação”. É verdade que pode haver uma…como dizer? Algo que não está no coletivo, só no orador, em quem pode acontecer uma escalada da indignação: quanto mais ele fala, mais ele goza da indignação que o toma! Acho que há uma possibilidade bizarra de construção de uma posição mais e mais indignada. Nos movimentos, por exemplo, no movimento dos indignados foi muito diferente. Era uma tentativa de produção de transversalidade, de todas as razões de se estar descontente. E foi frágil por isso: porque depois da indignação, é preciso criar relações que permaneçam, que se segurem. É preciso mostrar uma consistência, um movimento ou relações que possam durar. Então, os intelectuais dizem: é a verdade que faz durar… (risos).
VD – Para completar o que diz Isabelle, o que observo nos discursos indignados, não no sentido da indignação afetiva, é que a verdade é um tipo de discurso que só faz denunciar a mentira. É incrível o número de “mentem para nós!” etc. Como se esperassem que nos digam a verdade. Como se esperassem, por exemplo, que as companhias petrolíferas nos digam a verdade. Claro, e aqui acho que é onde a esquerda não faz seu trabalho, no sentido de Deleuze: denunciar a mentira pode ser uma etapa necessária, mas parar aí é se recusar a pensar. Ao passo que, o que eu gostei naquilo que Isabelle diz em La Sorcellerie Capitaliste, livro escrito com Philippe Pignarre, é que não é exatamente a mentira que devemos visar, pois, à mentira só poderemos responder com uma verdade. Isso é problemático. Se há uma mentira, é porque há uma verdade correspondente. Logo, a gente permanece em um sistema binário que não faz pensar. Por outro lado, no belo movimento de que falava Isabelle, encontra-se o tempo todo questões como “o que é uma captura capitalista?”, “o que é estar em um dilema infernal?”. Encontramos o tempo todo essas frases, “ou deslocalizar[3] ou diminuir seus salários”, mas não se trata de uma questão de mentira ou verdade. É verdade, ou se deslocalizam (as empresas) ou… Não vamos dizer que são mentirosos. Assim, podemos dizer que não há mentira, mas há uma alternativa que não permite escapar, e a maneira de lutar não é denunciar a mentira por trás da alternativa, e sim não cair na armadilha que a alternativa coloca. Logo, o discurso indignado pode ser perigoso na medida em que se focaliza em uma relação estritamente binária entre verdade e mentira, que remete de novo à racionalidade. A indignação está aí para dar força à iluminação da verdade.
DR – Para pensar os desafios políticos de nosso tempo, reconhecemos a pertinência e mesmo a urgência de recorrer a conceitos filosóficos ou teóricos que não são evidentes. Às vezes isso significa sobrecarregar a linguagem, torná-la incompreensível. Alguns conceitos se tornam quase clichê, como rizoma, multidão, ou mesmo antropoceno. E são ideias de que gostamos, conceitos potentes que se tornam, muitas vezes, palavras de ordem vazias, assunto de iniciados. Como conciliar esse excesso da linguagem com a necessidade política de se fazer compreender por todos? Notamos um desinteresse dos intelectuais por se fazer compreender que não é proporcional à importância que fingem atribuir aos “outros”.
IS – Mas esse é todo o problema! Quando conheci Félix Guattari, ele trabalhava com psiquiatria alternativa e quando ele falava, não usava slogans. Toda a inteligência que os conceitos que ele inventava lhe tinham dado era colocada em prática na situação. Deleuze dizia que os conceitos devem ser instrumentos, é preciso se apropriar deles, mas é a situação que dá sentido aos conceitos. Não são os conceitos que dão sentido às situações. Nesse momento, a inteligência que se pode criar em uma situação, pertence a todos. E depois podemos dizer “peraí, isso é o que Deleuze chama…”, mas ninguém liga porque se tornou algo que pertence à situação. Quando escrevo textos, tento citar muito pouco. Em La Sorcellerie Capitaliste sabia que, se citasse, se dissesse “como disse Deleuze etc.”, as pessoas pensariam “ah, não li Deleuze, então não vou entender”. Então, às vezes, tentei transmitir os gritos, mas nunca algo como “é preciso saber que Deleuze… etc.”. Há um uso dos conceitos que separa as pessoas, mas se usarmos os conceitos na situação, não precisaremos mais citar o autor. Nunca deveríamos citar.
DR – Nem empregar os termos, as palavras que eles usam…
IS – Depende das palavras. Porque há palavras que são simples e que aprendemos, graças a certo autor, a utilizar de um modo em que elas se tornam potentes. Então podemos empregá-las, mas não “rizoma”, não palavras que as pessoas não conhecem. Por exemplo, quando Deleuze diz: a diferença entre a direita e a esquerda é que a esquerda precisa que as pessoas pensem e a direita precisa que elas se submetam, que confiem. Isso, todo mundo pode entender (risos). Há palavras que são “para os que leram”. Mesmo em um colóquio como este para o qual viemos[4] não deveríamos empregar todas aquelas palavras, pois isso separa. É como se tivéssemos dado a solução antes mesmo de começar a compreender a situação. Acho, por exemplo, não para criticar, mas se falamos de guerra, todas essas máquinas de guerra de Deleuze e Guattari aparecem. Mas surgem como uma conclusão. A questão seria fabricar a máquina de guerra e só então dizer “peraí, é o que Deleuze e Guattari chamam máquinas de guerra…”. É quem usa o conceito que tem que pagar primeiro. Pagar no sentido de tornar interessante o conceito que permite pensar. Mas a academia fabrica papagaios.
DR – Chamar nossa revista de DR é uma maneira de dizer, de algum modo, que nós, as mulheres, estamos “criando caso”, “inventando histórias” (“faire des histoires”, como vocês dizem). “Pare de inventar histórias”, “parem de criar caso”, nos dizem os homens. E eles são avessos à DR, discutir a relação é coisa de mulher…
IS – Mas as mulheres vieram de Vênus, elas adoram discutir a relação !!! (risos fortes)
DR – Estamos cansadas de trabalhar na universidade com se nada estivesse acontecendo, como se não tivéssemos nenhum papel, o que é uma tentação forte hoje em dia. Na linha das mulheres que “cultivam a raiva e o humor para resistir”, como vocês dizem no livro, decidimos fundar essa revista, apostando em uma reversão pelo riso. Dissemos, “tem que ser engraçado!”, senão não tem força. Quando dizemos DR, queremos reverter essa posição que nos é atribuída, mas pelo riso. Não sabemos aonde vai nos levar essa experiência, nem se vai nos levar mais longe do que esse “rir juntas”, porque é verdade que quando nos reunimos gargalhamos muito, e ainda nem lançamos o primeiro número! Queríamos terminar então falando do riso e do papel do humor em relação à ironia, que está associada ao falar-verdadeiro masculino.
IS – Acho que cultivar o riso sempre foi uma grande força dos movimentos feministas. Mas também de mulheres juntas, independente dos devires políticos, porque o “rir juntas” é um riso rico. Um riso de compartilhamento, onde um monte de coisas, que podem ter sido vividas por umas ou por outras de modos diferentes, se encontram no riso. Quando discutimos com as mulheres que participaram da segunda parte do livro, em Paris, e que alguém, não sei mais quem, disse que sempre se sentiu uma impostora, foi uma explosão de risos, e uma enxurrada de “eu também!”, “eu também!”. Às vezes era diferente, “eu assim”, “eu assado”, mas não era uma crítica, e sim um enriquecimento. Havia uma espécie de “se sentir juntas”, não em nome de uma verdade, mas por causa de uma experiência da qual nos dávamos conta de a que ponto era compartilhada, e que podia dar consistência a esse grupo. Ou seja, o fato de não se reunir por obrigação, mas sim porque esse “rir juntas” nos alimenta. Isso é extremamente importante.
VD – A respeito do riso, estou pensando que faz anos que trabalho em uma universidade e não me sinto no meu lugar, sou impostora e serei descoberta! Vão me pegar! É isso que desperta o riso. É aí que o riso é extremamente saudável, pois não temos mais medo de fazer rir. E se há algo nos meios acadêmicos e/ou masculinos que toca os homens, e ao que eles são extremamente vulneráveis, é que um homem tem medo de provocar o riso sem intenção, sem que seja de propósito. Mas quando digo “vou ser pega!” não estou tentando fazer rir, eu falo desse medo real. E logo, risos enlouquecidos! De repente isso desloca a situação, pois no lugar de ser vítima desse terror de ser uma impostora, eu me torno… A gente se produz como alguém que cria o humor na situação, que é capaz de fazer humor sem querer, sem fazer de propósito. Nos damos conta então que fazer rir é uma alegria, pois é um riso de confiança. Os homens têm medo de fazer rir porque o riso é associado ao ridículo, ao fato de que as pessoas, os que riem, vão se juntar contra aquele de quem se ri. Mas no nosso caso, cria-se uma cumplicidade com aquela de quem se ri e ela pode “rir junto”. Muda tudo. Nos demos conta, as mulheres, que um monte de coisas acontecia nas nossas vidas por motivos sociais etc. E dissemos: “peraí, podemos fazer algumas coisas que os homens jamais teriam a liberdade de fazer”, colocar as coisas rapidamente em uma relação pessoal, por exemplo.
IS – Mudar a relação.
VD – Mudar a relação mesmo nas transações comerciais, por exemplo. Uma anedota. Uma de minhas amigas que faz transações comerciais (ela é antiquária) reconhece imediatamente pela internet quando lida com uma mulher porque aparecem frases como “ah, uma caixa de bombons, minha avó tinha uma”. Um homem nunca diria isso dessa forma e, imediatamente, a comunicação toma outro rumo, e depois volta. Essa flexibilidade, a capacidade de ultrapassar fronteiras e não considerá-las como verdadeiras fronteiras. Acho que o riso é isso, essa capacidade.
IS – É um dos motivos pelos quais essa ideia de bruxas é importante. É preciso criar espaços: não espaços protegidos, mas espaços onde nos protejamos para poder rir juntas, fabricar a força desse riso. E logo sair, isto é, transformar essa força em algo. Mas foi um escândalo, nos anos 70, as reuniões que eram só para mulheres, e é por isso que se falava em bruxas. Não era para excluir os homens, mas porque quando um homem chega, imediatamente tudo muda (risos). Depois, pode até haver grupos mistos, mas nos quais as mulheres cheguem com a força que acumularam juntas. Então, acho que o riso é realmente um alimento para as mulheres entre elas. E isso é muito sério.
VD – Pensando ainda na pergunta que você acaba de colocar: por que uma mulher que participa de um grupo de homens assume posições que não são de destaque, por que ela se conduz como um homem, ou faz tudo pra isso? É porque ela está só. Ao passo que, quando um homem entra em um grupo de mulheres, ele não passa por nada disso, alguns sim, e é com eles que se pode compor, mas geralmente o homem vai dizer “que história é essa?”, etc. Em vez de pensar “estou numa situação particular, o que se espera que eu produza aqui?”
DR – E aqui eles sexualizam a situação também, dizendo ”ahhhh”
IS – Me lembro de uma reunião feminista, bastante tardia, na qual muito do que tínhamos aprendido já havia sido esquecido. Havia um homem e, de repente, ele tomou a palavra e disse “eu gostaria que me explicassem os fundamentos do feminismo”. Imediatamente as mulheres se dividiram. Algumas queriam explicar para ele. Outras diziam “claro que não, não vamos parar tudo porque este senhor pede algo que ele pode aprender em outro lugar”. E pronto, ninguém mais ria. Bastou a intervenção daquele homem para que todo o humor que podia se desenvolver ali parasse. É a capacidade dos homens de dizer “tenho o direito de me informar”…
VD – “……do meu modo”
IS – … “do meu modo”, “não preciso tentar entrar no evento do jeito que ele é, participar do evento, surfar nele (risos)” . Não, “eu paro as ondas, construo um muro, fico ao pé dele e faço perguntas!”. Há algo aí que é preciso retomar. A mistura de gêneros é algo que se prepara entre mulheres! (risos).
DR – Justamente, na revista haverá homens, mas apenas convidados…
IS – Isso. Mas é preciso saber que existem povos, já que falamos muito em antropologia nos últimos dias [em Os Mil Nomes de Gaia], onde há o povo das mulheres e o povo dos homens, e os encontros são preparados.
VD – Mas “DR” é ótimo como nome de revista. É muito bonito porque se alguém me dissesse “vamos discutir a relação”, eu ficaria horrorizada, subiria pelas paredes se alguém me dissesse isso, seriamente. Já discutir, para mim… se levado muito a sério, é horrível. Mas é muito interessante a forma como vocês invertem essa expressão horrível para torná-la objeto de humor.
IS – E as bruxas, pessoas como Starhawk, que eu li muito, as ativistas em geral, aprenderam algo que inclusive os africanos sabem: nunca remeter – quando se discute a relação – à intenção. Sempre tentar dizer “aqui você me feriu”. Isso não quer dizer “você quis me ferir”. Mas se apresentar dizendo “aqui, o que você disse me feriu”. Colocar essa ferida “com”, e não dizer “você quis me ferir” e colocar o outro na defensiva.
DR – Por isso que o humor é interessante. Dizemos DR e as pessoas reconhecem “discutir a relação”, pois utilizamos essa abreviação que todo mundo conhece. Mas dizemos também: DR de Divas Revolucionárias… (risos gerais)
IS – Em todo caso é muito interessante e lhes desejamos muitas experiências belas.
VD – Longa e risonha vida para DR, pronto!
IS – Ah, e por favor, nunca com espírito de sacrifício ! Obstinação, coragem, mas que seja sempre uma alegria! (risos)