“Lembre-se. Lembre-se do poder da mãe
– retome posse da terra sobre a qual você está,
retome posse da aspiração e do terror
– faça seu esse poder com uma consciência (…)
que te permita conhecer em você mesma
o movimento dos grandes poderes da vida e da morte...”
Starhawk
Alguns dias atrás, F. Paumari mandou me chamar.
Recebi uma mensagem avisando. “Ela precisa falar contigo, liga de noite aqui em casa”. Esperei e liguei. F. estava com a voz apagada e senti nela um desânimo imenso. Algo havia acontecido com M., sua filha mais nova. Aquela que já tem vários filhos, sem pai, ou melhor, filhos de muitos pais. Aconteceu de novo. M se juntou com mais um homem, sem o acordo da mãe, impondo a sua escolha. Só que F. não aguenta mais criar os próprios netos. São muitos. E sempre sobra para ela. Mais um casamento da filha, é mais um neto para criar. E mais um homem branco, forasteiro, que não irá ajudá-la como um genro deveria.
Era desgosto, o que tinha na voz dela nessa noite.
“Desgosto” na língua Paumari é um sentimento que não dá para traduzir em uma só palavra. Nahina-ra nofiravini afojahakini é algo assim como“não querer-desejar mais ir atrás de nada”. É um afeto. Ou melhor, um desafeto. Consequência de um acontecimento desagradável, triste ou traumático, esse desafeto toma posse do corpo-alma da pessoa e a impede de parar de pensar no que ocorreu, o que a faz então parar de sentir e de ter vontade de satisfazer seus próprios desejos. O desgosto provoca desinteresse, desânimo, tristeza e dor. É um despotencializador dos desejos e da força, o que para os Paumari já é sintoma de doença. O fígado, va’i, é oórgão onde se situam sentimentos, mas o desgosto acaba afetando também o estômago e a garganta, deixando pouco a pouco a pessoa sem apetite, sem vontade de falar ou responder. Ele aniquila a força vital, bloqueando a vontade de se alimentar e, portanto, de se relacionar com os parentes.
A única saída para o desgosto é sair. Se afastar dos seus, de seu corpo de parentes, de sua parentela, sua aldeia, sua casa, seu rio, seu lugar. Se afastar também da lembrança. Se distanciar de tudo o que lembra aquele evento ou pessoa. Como no luto. Quando, após a morte, tudo do falecido é aniquilado, eliminado, queimado, enterrado, esquecido, e seu nome, seu lugar de vida e relações são abandonados.
O distanciamento também preserva da obsessão e da saudade doentia. Porque lembrar incessantemente é um estado perigoso que atrai seres sobrenaturais super agressivos, como o pitai. Aquela ou aquele do qual se sente falta acaba surgindo, mas é uma miragem. O pitai é um monstro canibal que aparece sob a forma do ser desejado, para se aproximar e matar quem o deseja. Ser devorado pela saudade, consumido pela lembrança. Isso não pode, então é preciso sair. Se afastar. Sair como movimento de retirada, de um lugar e das relações que fazem dele um espaço habitado pela lembrança daquela pessoa. Sair como interrupção espaço-temporal.
Me lembro bem de B. que tomado pelo desgosto, após a traição de sua mulher, saiu da aldeia, e se instalou na cidade, por vários anos. Lembro também de K. que após questões políticas na cidade decidiu sair e foi trabalhar num canteiro de obras em outra região, voltando quase dez anos depois, quase irreconhecível. E de R. que após sua mulher falecer no parto de sua filha, também se foi, mas nunca mais voltou, acho que porque não quis mesmo, não deu.
Conversei então com F. Ou melhor, ouvi o que ela tinha para dizer e procurei entender, e sentir aquilo que estava tentando me dizer, misturando frases em paumari, termos em português, imagens e lembranças comuns. Ela disse então que ficaria na cidade, longe da aldeia, esperando minha chegada, em setembro. Após um silêncio, acrescentou: “Amanhã vou para consulta, o agente de saúde me disse que a doença que tenho chama depressão”. Fiquei muda. E a conversa terminou com ela insistindo que me esperaria ali, na cidade, porque não tinha gosto para voltar para casa.
Desgosto? Agora desgosto é “depressão”, pensei. Pensei no agente de saúde. Em todos os agentes, pensei. Todos os agentes que nas últimas décadas passaram a interferir nas vidas, nos corpos e nos desgostos dos Paumari e de tantos outros povos.
Então lembrei das mulheres guarani e kaiowá, e das crianças super arrumadas e penteadas para ir para a escola. Dessas mães guarani carregando as compras pesadas do mês nas costas, na garupa da moto, percorrendo quilômetros no sol e na poeira das estradas, gastando todo o dinheiro do “benefício” para garantir, todo mês, roupas novas e materiais escolares bonitos para os filhos não serem discriminados nas escolas da região. E lembrei dos jovens e dos homens guarani trabalhando duro nas fazendas que asfixiam suas terras e seus corpos. A asfixia guarani. A mesma asfixia que provoca os suicídios de tantos jovens indígenas lá. Asfixia capitalista, ruralista, asfixia pelo cerco do Estado. Cercam-se as terras, os corpos, as pessoas, a alegria. Eis outro lugar cheio de agentes, acho que mais cheio ainda do que no Amazonas.
E outros desgostos. Com outros nomes. Mas para os quais o Estado tem sempre o mesmo nome, e o mesmo remédio.
Desgosto agora tem tratamento?
Suicídio agora tem tratamento?
Lá também o tratamento vem com enfermeiros, assistentes sociais, médicos, conselhos tutelares e outros agentes que diagnosticam e contabilizam muitas depressões. Então receitam-se antidepressivos. Talvez mais do que nunca, porque hoje os índios, no Mato Grosso do Sul, no Amazonas, no país todo, se tornaram “beneficiários” de políticas públicas: da saúde pública, da educação pública, do dinheiro público. Eis o Estado cuidando de seus cidadãos originários. Todas as intromissões benfeitoras públicas possíveis estão lá: diagnosticando, receitando, medindo, vacinando, avaliando, alimentando, documentando, controlando, encaminhando. “Encaminhar”, verbo de Estado que merece reflexão. Encaminhando, cercando e asfixiando, sempre com todas as boas intenções do mundo, claro. Quem sou eu para dizer o contrário?
Agora é a tarja preta que vem reforçar o cerco dos corpos, barrando desgostos. Está tudo resolvido então? Resolvemos o problema. Dinheiro para conter a fome dos índios transformados em pobres (sem terras demarcadas, mas com escolas, ou algo parecido com escolas), saúde para conter doenças e remédios para conter os desgostos, restituir a alegria.
Tá legal, agora F. toma antidepressivos e voltou para a aldeia.
Partos indígenas na cidade. Mesmo dispositivo de Estado. Outro dia D. ganhou neném na cidade, como a maioria das mulheres Paumari hoje. Até uns anos atrás elas se recusavam a ganhar filho na cidade, longe de suas mães e parteiras, se sentiam (e eram) maltratadas pelas enfermeiras, envergonhadas de parir na frente de médicos forasteiros e assustadas pela frieza de todos os procedimentos médicos, sem falar nos boatos de envenenamento dos bebês indígenas que circulavam sempre por lá. D. sentiu contrações fortes durante a madrugada, chamou sua acompanhante, uma sobrinha de 12 anos que foi atrás do médico. Mas o médico dormia. E não ouviu os chamados e nem os gritos. Nem ele, nem ninguém ouviu nada. O bebê nasceu, dizem que prematuro, e caiu do alto da maca, de cabeça. Resistiu só alguns dias. D. ganhou e perdeu seu bebê na cidade, mas são tantos né? Pra quê nos preocupar? Afinal ela já voltou para a aldeia, devidamente medicada.
Disciplinar, internar, conter corpos e almas, limitar os movimentos e violentar a diferença. Um só e único dispositivo genocida. Sempre o mesmo.
Não sei se o desgosto paumari é o mesmo que o guarani. Imagino que não. Mas ambos têm algo em comum: é que desgosto se trata com movimento. Levantar-se, mover-se, partir, deixar, retomar, ocupar. Dinâmica radicalmente inversa à imobilização forçada, ao confinamento, à internação, à medicalização, à contabilidade dos corpos e seus males.
O movimento da mulher paumari, guarani, da mulher tout court, como antídoto.
Corpo em movimento. Sedento e suado. Transportado e transportando. Na canoa, rio acima, exposto. Rio abaixo, exposto. Sol, chuva, temporal, ventania. Olhares. Predadores. No mato. Na cidade. Na aldeia. Corpo suado e cansado de subir, subir e descer, descer e subir o barranco. Carregando água, enchendo pote, esvaziando pote. Tomando banho. Lavando roupa. Carregando criança, enchendo criança. Dando banho. Balançando criança. Estendendo roupa. Deitando criança, desmamando criança. Rio enchendo. Do rio para casa, da casa para o rio. Lavando roupa, carregando roupa, estendendo roupa, batendo roupa. Rio vazando. Pé afundando na lama. Corpo suado, ensaboado e cansado. Ensanguentado e carregado. Corpo que vive, que ri, que resiste.
Não vazio. Nem Doente. Nem Anestesiado. Nem Dopado. Nem Tranquilizado. Nem Morto. Nem Morta.
Mas por que os corpos e as pessoas indígenas só passam a existir, ou melhor, só se tornam visíveis aos nossos olhos quando já neutralizados? quando já mortos? Um ou outro cadáver, quase sem nome, exibido pela mídia sedenta de audiência e likes, e aí sim, de repente, os percebemos, por alguns instantes. Então são apenas cadáveres, de vidas cuja existência efêmera só se dá pós-mortem, em uma imagem, duas, e que torna mais visível x jornalista que as exibe do que qualquer realidade da vida que se foi. No matagal. Na beira. A corda, a bala, o feto, a maca, o cadáver. Desgosto. O fim do mundo é o fim da potência do movimento, e da alegria. Tudo, qualquer coisa, continua existindo mais aos nossos olhos de brancos do que a existência indígena.
E o nome disso aí continua sendo genocídio.