Dossiê: Situar/Mover - Corpo, território, política

Des(en)terrar o corpo

2016, o ano que veio para ficar. As letras boiavam nas águas do mar de Copacabana na noite do dia 31 de dezembro, em referência a realização dos jogos no Rio de Janeiro. A frase foi também o mote de peças publicitárias relacionadas ao megaevento esportivo, e na ocasião, antecipava a comemoração da prefeitura pela concretização do que tem sido chamado pela grande mídia e pela classe política de ‘sonho olímpico’.

Para quem como eu leu ali uma ameaça, a coisa foi ficando cada vez mais evidente com o passar dos meses. A falência do Estado acompanhada e justificando o aumento da violência do mesmo contra as populações negras e periféricas, a continuidade dos processos de remoções, a (re)ocupação militar das favelas, o aumento do custo do transporte, o corte das linhas de ônibus (já efetivado em 2015), a ornamentação temática dos muros erguidos para esconder as favelas da Maré dos turistas que chegam pelo Galeão, dentre outras fronteiras reais e simbólicas, explicitam que, no trajeto entre os territórios da cidade, o trânsito dos corpos como fluxo contínuo nunca foi possibilidade para todos.

Compreendendo que os territórios são como zonas operadoras de intensidades, uma vez que produzem subjetividade, aciono minha vivência de mulher negra, submetida aos esquemas de vigilância e controle que me colocam em situação de vigília maior do que o fazem com pessoas brancas. Logo percebo como são construídas neste contexto as desculpas perfeitas para que eu ande pela cidade com o pé no freio, sabendo, entretanto, que meus trânsitos são facilitados por pertencer a classe média pós-graduanda. Ainda assim, sinto-me soterrada.

O sonho olímpico e suas promessas de trânsito total, de integração consensual, desemboca em abismos reais, num contínuo soterramento de diversas possibilidades de relação entre corpo e cidade. Em um texto recente [1], relato como minhas experiências de deslocamento entre regiões e cidades – as migrações da Paraíba para Bahia, e depois para o Rio, promoveram vivências capazes de forjar em mim territórios afetivos nos quais as marcas raciais e regionais aparecem não como características originárias, mas como experiência de fabulação e trânsito.

Aqui, escrevo a partir de outros movimentos. Componho uma pequena articulação de dois fragmentos de diários sobre sonhos, e os observo através de um dos processos disparados pelos encontros realizados no primeiro semestre de 2016, durante a oficina Resistências Feministas na Arte da Vida [2], no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. Repito aqui o gesto proposto durante os encontros: a autópsia – ver por si mesma : efetuar cortes, investigar as marcas, encontrar as feridas que restam abertas e habitar as ruínas em nós. Lanço mão das tentativas de forjar outras corporeidades, e não apenas de formular pensamentos sobre o corpo. Noto que a partir deste gesto posso tentar refazer meus caminhos pela cidade.

Há, certamente, muitas maneiras de fabular um corpo. Na oficina, escolhemos começar quase todos os encontros sonhando. Sonhando e lembrando de sonhos antigos e de sonhos recentes. A proposição do sono profundo indicava, primeiramente, um convite a habitar o espaço de maneira distinta das frequencias que nos atravessam no cotidiano pré-olimpico/paranóico carioca dos últimos meses, tomando uma certa distância da cidade empresarial e do barulho das britadeiras que operam o soterramento que antecede o monumento, e que ergue as fronteiras que o protege.

Na repetição deste exercício, meu corpo se dá conta tanto das ruínas quanto das fronteiras que experiencio cotidianamente, mas essa consciência não é um dado unicamente intencional. Antes de ser uma consciência completa que lança sua atenção sobre os processos de soterramento, é uma consciência que se efetua na sensação de  aterramento do meu próprio corpo junto com o corpo da cidade: a tristeza, o medo, a ansiedade e a insônia. Constato que meu ‘sono é ruim e o sonho tarda a vir’ [3].

Registro de diário (ausência de sonho): O sono me abraça como o faz com depressivos. Passado um período em que aparecia em demasia e era acompanhado por pesadelos, nas últimas semanas algo me desperta antes (as vezes bem antes) das primeiras 5 horas de descanso, e as tentativas de retomá-lo são geralmente inúteis. No pouco que durmo, não sonho. Desperta, me dou conta que a tristeza me acomete como doença. Como se o mundo todo, a política, a Copa, a costela fissurada, as crises de asma, a família e a morte (com a qual lido tão pouco e tão mal), tivessem mostrado suas parcelas insuperáveis, das quais sempre tive medo. Diante delas meu corpo não aguenta.

Em julho de 2014 eu não sonhava, mas agora, deitada e descalça, ocupo-me de desterrar a mim mesma, minha memória faz sonho daquilo que deveria ser esquecido. Em pequenos movimentos, reorganizo as dinâmicas pelas quais minhas lembranças se alicerçam sobre uma série de esquecimentos, dores não partilhadas, tempo que não deveria ser jogado fora, o esmagamento de fluxos tidos como improdutivos. Neste movimento, revisito um corpo em coma [4], lembro dos sonhos esquecidos:

Registro de diário (lembrança de um sonho recente): T é uma mulher negra que foi cuidada “como filha” pela minha bisavó paterna em Campina Grande na Paraiba. Sempre silenciosa e discreta, ela era ‘da família’ , embora tenha sido a única a ter funções específicas no trabalho doméstico. No meu sonho, ela deitava sobre meu corpo, ambas de barriga para cima. Senti cócegas quando seu cabelo crespo encostou no meu rosto, senti também as lágrimas que lhe escorreram e me alcançaram: – Tenho 98 anos e só viverei mais 2, ela me avisou: – Não quero morrer servindo. Continuamos deitadas uma sobre a outra, sinto o pouco peso do seu corpo magro como o calor de um abraço. E depois acordo

Quando eu nasci, T já tinha 56 anos, vivíamos praticamente todas na mesma casa, ela, minha avó, tia A (irmã sanguinea da minha avó), minha mãe e meu pai, e sendo meu pai filho adotivo, todos os demais familiares, primos, tios e amigos eram brancos, exceto eu, meu pai e T. T foi assim, durante muito tempo, a única mulher negra com quem mantive relações de intimidade.

Lembro que fui com T na festa de São João de Campina Grande no final dos anos 90, e enquanto assistíamos a apresentação das quadrilhas, adolescentes sentiram-se autorizados a tocar seus cabelos crespos dando ao penteado dela outras formas ‘- Parece algodão doce’, debochavam, ao que ela respondia com um sorriso de canto de boca. Apenas depois dos 90 anos de idade T passou a recusar emprestar o próprio dinheiro aos gestos caridosos de minha avó, que quando não tinha dinheiro em casa solicitava o dela sem constrangimentos para efetuar suas generosidades. Quando criança eu perguntava para T se ela nunca tinha pensado em casar, ela me respondia sempre um ‘não’ beeem cantado, seguido de um sorriso envergonhado, como se aquela nunca tivesse sido sequer uma possibilidade.

Não me lembro de ouvir ela reclamar em nenhuma das inúmeras situações de constrangimento social e de racismo que a vi experienciar durante a minha infância; hoje, percebo que T construiu para ela outros espaços de vivência, longe da casa (grande) que era quase a sua, mas definitivamente não era: o grupo da terceira idade, no qual ela era a companheira mais velha e ganhava festas supresas de aniversário, as viagens que ela passou a fazer sozinha depois que conseguiu a aposentadoria. Contudo, as condições pelas quais uma família é a quase família de mulheres, em sua maioria negras, que fogem da fome ainda é, infelizmente, lugar comum nas relações serviçais de gênero e raça Brasil afora. Quando eu era criança, brincava de detetive tentando encontrar as provas de que T era a mãe biológica do meu pai, buscava as relações de ancestralidade que me eram impossíveis.

Assim como T, precisei efetuar diversos deslocamentos até aprender que o corpo da mulher negra pode pertencer a ela própria. Acompanhada de sua lembrança, sigo tentando abandonar a ansiedade em ser apenas cordial e bem quista nos muitos espaços nos quais me sinto isolada e oprimida. A academia, o supermercado, o consultório médico… são muitos os territórios da cidade que solicitam meu silêncio.

Grada Kilomba, escritora, poeta e psicóloga, no último capítulo de seu livro Plantation Memories (2010), atenta para o soterramento das histórias da escravidão, o que invisibiliza as atualizações destas relações e silencia sobre o caráter traumático das experiências de racismo cotidiano: “Escravidão e colonialismo devem ser vistos como coisas do passado, mas eles estão intimamente atados aos presente”, afirma.  Referenciando o trabalho de Jenny Sharp em Ghosts of Slavery(2003), Grada continua: “Nossa história nos persegue porque foi enterrada inapropriadamente. Escrever é, neste sentido, uma maneira de ressuscitar um trauma coletivo e sepultá-lo apropriadamente (KILOMBA, 2010, P.146)”.

Convocar o movimento da memória e dos sonhos consiste, portando, na tarefa de recuperar um evento traumático de uma biografia individual para que ele se junte ao trabalho de revelação da história coletiva do trauma colonial, para que possamos pensar o que o racismo produz, enquanto ferida, nas experiências de violência que nossos corpos experienciam ao transitar na cidade monumental, cujo o sonho não partilhamos.

O movimento do corpo sobre si mesmo e a escavação de nossas ruínas é por isso um gesto político, porque reescreve a memória coletiva, neste caso, reescreve a memória da escravidão, que séculos antes dos horrores do holocausto marca a história, mas que como aponta Jota Mombasa [5], compõe um conjunto de violências produzidas pelos processos de colonização, as quais nunca foram tidas como suficientes para desestabilizar os paradigmas do humano, ou novamente nas palavras de Grada, a escravidão nunca foi compreendida sob a perspectiva do trauma, como o extermínio do povo judeu, devidamente, o foi. Esta não-inscrição garante que o cenário da suposta superioridade branca se atualize, e que nossas feridas, provocadas pelo racismo cotidiano, permaneçam abertas, porém soterradas.

Encarando os soterramentos aos quais somos submetidas, cada pessoa de maneira singular e eu em face do racismo e do machismo cotidiano, e diante da atualização das relações de escravidão no ambiente familiar, percebo que aquilo que na ausência de sonho formulo como insuperável é na verdade o enterro impróprio de minhas lembranças.

Aos poucos, tento parar de sonhar comigo mesma e com aquilo que me cerca para que um outro corpo possa surgir, fragmentando e recompondo corporeidades, ora como projétil, ora como fóssil.  Nesta dimensão, meu corpo não busca uma origem, embora trabalhe para fazer ver os rastros das forças ancestrais; sabe que é ele próprio uma fratura da ossada dos mortos que carrega.

Retorno ao meu próprio corpo sem esperança de superá-lo ou resolvê-lo, mas sim para observá-lo atravessado pelas forças do mundo. Desterrar é o movimento de costura dos tempos, passado e presente, e pode ser um dos trabalhos mais preciosos do corpo. Fabula memória e faz sonhar.

Pirataria:

[1] O texto meu ao qual faço referência se chama Memória Sobrevivente e foi publicado no dossiê Resistências Feministas na Arte da Vida – Revista Lugar Comum nº 46,  em Junho de 2016.
[2] A oficina Resistências Feministas na Arte da Vida aconteceu em encontros semanais, somando 48 hora de encontros intensas nas quais compartilhamos textos de teóricas feministas e descoloniais, além de processos de vida das muitas pessoas envolvidas. O processo foi conduzido por Angela Donini, Camila Bastos, Sara/Elton Panamby e por mim, e tomou corpo a partir das colaborações das participantes. A oficina fez parte do projeto de extensão Processos escavatórios para habitar o corpo, da UNIRIO, e integrou o projeto Plataforma de Emergências que vem sendo desenvolvido a partir da parceria entre o Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica e as universidades UFRJ, UNIRIO, UFF, UFRRJ, UERJ e PUC por meio de seus programas de graduação e pós-graduação.
[3] Uso na frase ‘meu sono é ruim, e meu sonho tarda a vir’ palavras de Davi Kopenawa em A Queda do Céu : Palavras de um xamã  yanomami (2010). Sonhar, para ele enquanto xamã, é uma das principais maneiras de apreender as coisas do mundo. Sobre o sonho dos brancos (e neste caso eu me incluo nesta categoria) ele diz: “Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham com eles mesmos. Seu pensamento permanece obstruído e eles dormem como antas e jabutis. Por isso não conseguem entender nossas palavras (KOPENAWA, 2010, P.390)”.
[4] Quando digo ‘um corpo em coma’, faço referência ao texto Fale com ele” ou como tratar o corpo vibrátil em coma  (2003), de Suely Rolnik, disponível aquihttp://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/falecomele.pdf
[5] Jota Mombaça ou Monstrx Errátika influênciou os caminhos deste texto nas inúmeras e excitantes conversas que tivémos durante sua vinda ao Rio nos primeiros dias de julho de 2016. Cito aqui parte de seu texto Nós outres: o colapso da colônia que catei através de suas postagens no facebook. Sigam a monstrx.
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Edição 3