À convite das Divas Revolucionárias, reúno aqui os relatos que publiquei em minha página do facebook sobre os abortos que fiz. O primeiro, de 2015, respondia à campanha contra a legalização do aborto, mulheres grávidas andavam fotografando suas barrigas nas quais se lia “pró-vida”. O segundo relato foi feito de supetão, em novembro desse ano, antes de sair de casa para a manifestação contra a PEC181, que pretende proibir o aborto no Brasil nos casos já previstos em lei, como em situações de estupro ou de risco para a mulher.
Entendo que falar abertamente sobre o aborto é, no limite, tangenciar as normas de controle e criminalização de nossos corpos. Contudo, a decisão pela exposição dessas histórias atendem ao desejo de dar contorno às dimensões afetivas que as situações de aborto suscitam.
Aborto exige cuidado. Falar, ouvir e elaborar sobre essas situações são modos de sobreviver enquanto mulher diante das forças misóginas no Brasil de 2017.
em 2015:
Eu não fiz um aborto. Foram 2! Ambos aos 22 anos de idade. Engravidei no resguardo de um deles, e claro, fui atravessada por uma sensação terrível de irresponsabilidade. O fato é que, como muitas de nós, eu estava desinformada. Não sabia, por exemplo, que quando se faz uma curetagem fica mais fácil o espermatozóide chegar ao útero… Com a necessidade de fazer o procedimento, fiquei sabendo de outras coisas: sabia que não precisava tomar e inserir uma caralhada de comprimidos (como muitas fazem), bastava administrar uma dosagem mínima, dependendo do tempo da gestação, e fazer uso intervalado. Assim, o risco é menor, a dor também, e o efeito, no meu caso, foi o mesmo. Sabia também que no hospital elxs não tinham como saber se o aborto foi provocado ou espontâneo, os maus tratos eram fruto do preconceito, que eu não sofri tanto por estar muito tranquila, me sentindo relativamente segura por estar acompanhada por familiares, que criaram barreiras de proteção: não fui eu quem falou na recepção, nem com xs médicxs. Além disso, e isso é muito importante, eu tinha plano de saúde na época. Outra coisa que eu sabia, deveria procurar um hospital para curetagem, sob risco do procedimento não se completar ou de sofrer uma infecção grave. O fundamental era: eu sabia que não queria estar grávida naquele momento e isso era o que importava. Senti pouca dor física, o equivalente às minhas cólicas nos piores meses. Senti pouco moralmente, nunca partilhei da ideia de que a maternidade é obrigação, curso natural da vida ou o lugar onde a mulher se completa. Não fiz feliz, não gostaria de ter feito, mas principalmente, não me arrependo. Conversei muito antes de decidir fazer e como. Tive a sorte de ser bem informada, nossas redes continuam, clandestinas e ilegais, mas estamos juntas! Tive muita sorte de ter apoio e carinho. Não carrego a culpa que essa campanha de grávidas ‘pró-vida’ ‘contra o aborto’ querem nos fazer carregar. Um filho naquele momento seria o abandono de tudo que eu queria fazer da minha vida, não sei se seria melhor nem pior, mas não vou carregar esse fantasma. Ninguém fala das muitas de realizações das quais uma mulher abdica para ser mãe, ninguém põe o dedo na cara de uma grávida para dizer o que ela deixou de viver, então meu amor, balance seu rebento em paz, no meu corpo, sob o risco do meu cadáver, mando eu e não o Estado, queira você ou não.
em 2017:
Tempos atrás fiz um relato sobre os abortos que havia feito. Eram dois e de lá pra cá fiz mais um. Era pra ser o mais “seguro” porque meu ex-companheiro tinha dinheiro, fiz esse com menos risco de morte, como fazem as brancas e ricas, ainda bem. Mas foi de todos o mais violento, porque não houve recurso afetivo pra dar conta do processo emocional e hormonal que é anterior, e segue após o procedimento. Adoeci. Sangrei em muitos sentidos. Hoje, falar de aborto é falar de desejo, e nem é só sobre o desejo de ter ou não ter um filho, é sobre o desejo de cultivar relações onde caiba o cuidado sobre as feridas que o procedimento provoca.
Precisamos que o aborto seja legal, gratuito e seguro para que a gente tenha opção de escutar umas às outras para além do marco da proibição. O que leva cada mulher a decisão pelo aborto são situações que dependem de atravessamentos de raça, classe, da trajetória de cada uma. Mas a gente anda tão ocupada com a pauta pela legalização que nem consegue criar mecanismos para lidar com esses atravessamentos.
A decisão de abortar precisa ser nossa, mas a responsabilidade sobre esse corpo em vias de abrir-se, e depois de arrebentado, deve ser partilhada não apenas com os possíveis progenitores. Nessa história, homens se sentem confortáveis tanto para se esquivar da responsabilidade de uma futura paternidade, quanto para se recusar a cuidar das feridas que um aborto provoca. Já ouvi muito dizer que maternidade é solidão. Aborto também é. Toda nossa saúde reprodutiva é controlada por uma máquina macropolítica que nos ocupa em responder aos homens brancos, enquanto esfacelam nossas corpas e nos distanciam umas das outras. No fim, o plano deles é nos deixar num estado de vida que não é vida.
Para decisão ser das mulheres, a responsabilidade de amparo e segurança das nossas corpas precisa ser partilhada socialmente. Pra que a gente aprenda enfim a escutar nosso desejo, e saber melhor como seguir quando, por muitas razões, não podemos sustentá-lo e quebramos junto com ele. Para isso é preciso desde logo sair da sombra da criminalização e da moralidade.
Nenhum aborto é tranquilo, legalizar é pra ontem, então: RUA!