nota inicial:
Este texto foi escrito entre o fim de 2018 e início de 2019. Para essa publicação, fiz uma última revisão em 2020, após meses sem contato com esses dizeres. As frases em negrito no corpo do texto são anotações feitas na última revisão. São lembretes a mim mesma, que me fazem lembrar da perecividade da linguagem escrita e falada. E também da imprevisibilidade dos nossos modos cotidianos de guerrear.
Em tudo há vida e no corpo há tudo.
Eu sou um corpo-flor e estou em guerra. Eu sou um corpo-flor e estou cansada de guerrear. Eu sou um corpo-flor com desejo de batalhar. Eu sou um corpo-flor e irei vencer todas as batalhas. Não tenho medo da morte e sim, da aniquilação.
Sou um fragmento de Írôko e consigo dimensionar em meu corpo as diferentes temporalidades que o constituem. Minha experiência de mundo é marcada por ficções racistas e aquilombamentos, que assim como eu, sobrevivem há séculos graças a reinvenção de si.
Faz algumas centenas de anos que estou sendo reterritorializada em zonas de batalha onde tecnologias contra e a favor de minha morte são produzidas. Brasil, Angola, Paraguai, Estados Unidos da América, Portugal, França, Nigéria, Cuba, Argentina, Inglaterra, Índia, Japão: eu negocio minha existência em diferentes gestos culturais quando reinvento-me num linguajar singular, o pajubá; gestos são linguagens e linguagens podem ser escritas. Malandramente, assumo nacionalidades que me desmaterializam na tentativa de assegurar minha sobrevivência nessas geografias bélicas.
Aqui e lá, crio acordos com a Humanidade e, assim, consigo fortalecer o tráfico internacional de informações proibidas. Nos proíbem o acesso a conhecimentos [2] e nos impedem a produção de conteúdos que nos ajudam a forjar liberdades. A obra de arte, por exemplo, é uma digestão singular dos desejos, afetos e memórias produzidos e ingeridos em coletividade. Caso a autora ocupe uma posição de mortificação no território que reside – como acontece comigo – certamente as práticas de poder-saber irão dificultar suas experiências de liberdades; a exemplo da escravidão, o extermínio e o encarceramento em massa da população negra brasileira. Logo, a dificuldade que nós, corpos despatrializados, podemos desenvolver em criar obras de liberdade é um sintoma de nossa própria experiência de aprisionamento. Por isso, não se deve produzir uma lacuna entre obra e vida – mesmo que a vida opte pelo anonimato – pois a obra e a poética – em todas as suas possibilidades – só acontece com uma intencionalidade da artista e, nesse sentido, toda escolha é sempre uma redireção de potência vital.
A energia, força ou potência vital é o conteúdo mais precioso para nós e para aqueles que querem nos mortificar e nos matar. É essa energia que nos movimenta e nos permite movimentar Mundo. No grito, no silenciamento, na dor, no gozo, na felicidade, na angústia, na liberdade, no aprisionamento: em tudo há energia de vida; em tudo há vida. Faz séculos que os odiosos da diferença aprenderam a capturar e manipular tal conteúdo vital e, desde então, nos usam para despontencializar-nos, redirecionando nossa força vital para violências contra nós e nos descartando quando já não temos mais força para ser apreendida;
mas não existe o fim da força, porque na macumba o que há é a eterna transmutação vital.
Então, cabe a nós forjarmos autonomias de vitalidade que nos possibilite continuarmos afirmando-nos em materialidades desconformes – corpo, obra – e desobedecendo coodernadas do biocapitalismo [3]. Para que aconteçam desestabilizações nas máquinas coloniais que produzem e só autorizam subjetividades racistas e binárias, e para que também ocorra desterritorialização e abdicação de territórios urbanizados, precisamos nos desfazer do corpo encouraçado pela colonialidade e entendermos nosso corpo como local de memória [4].
Se em mim há milhares de memórias jogadas no mar, hoje existo pois sou um dos corpos que sobreviveram ao naufrágio. Nós, corpos aquáticos, devemos sempre sermos compreendidos na perspectiva de cardume, porém sem que haja um apagamento de nossos singulares modos de mergulharmos nas histórias salgadas. Ou seja, minhas condições geográficas me constituem em gestos que não seriam os mesmos caso eu tivesse vivido meus 22 anos em outro ponto terrestre que não fosse a cidade de Vitória no Estado Espírito Santo – Brasil. Gestos esses que estão em perpétua modificação e podem contribuir ou não para contra-atacar aqueles que querem eliminar nossa materialidade não-branca, empobrecida, dissidente.
Todo ecossistema é um conjunto de elementos que juntos criam situações particulares que possibilitam a vida, a morte e a matança. Essa relação é responsável pela minha complexidade que se forja com os itens – identidades, memórias, desejos, afetos – que constituem meu território de existência: corpo.
Minha corporeidade é um efêmero fragmento da história e do Tempo; tempo exusiático. Desenvolvo estratégias singulares para coabitar o mundo com vidas que me amedrontam e me protegem. Eu vivo em conflito comigo e com os outros e estes outros me constituem numa relação simbiótica. Assumo-me subalterna e denuncio os abastados de facilidades que criam seus privilégios com meu empobrecimento. Minha negritude bixa e minha bixalidade negra não existe na dimensão da palavra falada e escrita, sem a existência da assimetria política do mundo colonial. Mas, minha existência pesa mais que uma palavra, logo minha experiência é autônoma a qualquer literatura e tenho negociado com todas as formas de escrever, falar e gestualizar que facilitam a sobrevivência de meu corpo negro testiculado.
Meu corpo antecede e se fortalece com a palavra, não me caibo em nenhuma identidade catalogada pela medicina, psicologia ou farmácia, mas as uso para fomentar possibilidades de sobrevivência. Durante meus 22 anos de contato com sociedades ocidentais meu corpo retinto e testiculado tornou-se negra, negro, masculino, feminino, bixa, travesti, mulher, menino, transsexual, não-binário, queer, kuir e continuará sendo capturado por processos identitários e continuarei negociando maliciosamente com os processos de racialização sexual.
Além disso, eu vivo um contemporâneo marcado pela hibridização da espécie homos-sapiens sapiens com as máquinas. Os processos de subjetivação atuais transformam meu prazer em pílula, minha organicidade em capital financeiro. Eu sou um tecnocorpo que deseja torna-se uma flor. Eu sou um corpo-flor que cotidianamente corta seus fios que o ligam ao sistema produzido pelo biocapitalismo. Meu sangue, anatomia e toda minha bioquímica viraram elementos de valor na economia. Então, a desintoxicação e a desprogramação são práticas fundamentais para que minha/nossa vida continue acontecendo. E, se percebo minha existência sendo manipulada pelo colonialismo como uma tenebrosa experiência de sobrevivência, então meu desejo de vida é um ato de guerrear.
Quero viver em cardume
Eu me preparo para a guerra sempre que denuncio sua existência; sempre que assumo à mim que estou em guerra. Corpos subjetivados pela ocidentalidade precisam compreender que estamos em guerra – civis, internacionais, subjetivas, existenciais. Não há liberdade se ignorarmos este conflito.
Durante todo esse período de guerra, as tecnologias de ataque estão sendo transformadas e atualizadas – a sobrevivência de singularidades negras é uma experiência de dar continuidade ao processo de cruzamento de diferentes culturas da diáspora africana. Nós, corpos racializados como negros, devemos compreender a cultura negra como uma cultura das encruzilhadas (MARTINS, 1997) e assumir nosso corpo como um local de interseções. Para sobrevivermos precisamos incorporar Exu Elegbara, “princípio dinâmico que medeia todos os atos de criação e interpretação do conhecimento” (ibid, p.26).
Treinar para a guerra é traficar tempo, memória, segredos e capital. É também permitir que nossos corpos sejam traficados por outros corpos que estão sendo traficados em suas colônias, ou seja: criar uma rede de circulação e fortalecimento de nossas potências vitais que estão sendo materializadas em textos, músicas, vídeos, objetos, ações e outras possibilidades. Devemos nos atentar aos processos de coletividade, pois por eles somos violentadas e é em grupo que iremos contra-atacar.
Treinar é desaprender gestos no rememorar de um passado que ao ser acessado, atualiza-se em forças no presente. O treinamento é um processo de pesquisa epistêmica, investigação afetiva, cartografia anatômica, mergulho em si. Quando assumimos um estado de treino, aprendemos com o cansaço que precisamos compreender nossos limites e optar por não ultrapassar alguns, pois esta ação pode ser suicida. O treinamento não cristaliza-se num tempo-espaço específico, ele pode ser realizado em qualquer ponto do território. Treinar é produzir coreografias de libertação com movimentos que nos aprisionam.
Notas
[1] Título homônimo à serie de obra desenvolvidas por mim, constituída por fotografias, vídeos e performances. Os trabalhos estão disponíveis em castielvitorinobrasileiro.com
[2] CARNEIRO, Suely Aparecida: a construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese de Doutorado. São Paulo, 2005, p. 96.
[3] PRECIADO, Paul Beatriz: “Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica”.
[4] MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória: o reinado do Rosário no Jatobá. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.