O Museu é o “repositório racial da memória” [1]. White institution [2] encarregada da monumentalização da supremacia branca. Ali está o relato escrito pelo senhor. Ali está a colonialidade feita escultura, a estetização do saque, da dor, a fetichização da otherness [3], a obsessão pela coleção, pela acumulação. Ali, nossa memória viva se faz pele.
Como acredita que seus ancestrais [brancos] conseguiram o que está aqui neste museu? Compraram a um bom preço igual a tudo aqui ou apenas roubaram?
A amnésia branca esconde sua responsabilidade histórica. Na ideia de “arte universal” prevalece a ideia de arte supostamente portável, não política, onde o museu é um espaço “não nacional” e livre de responsabilidade histórica. Isso “justifica a existência de museus cheios de artefatos roubados pelo colonialismo europeu”, cheios de estéticas e representações de uma história hegemônica. Nossa larga memória, nossas cicatrizes coloniais, nos proíbem de esquecer ao entrar em um museu. Talvez isso não o tinha presente quando junto ao coletivo Ayllu decidimos realizar ações poéticas dentro de museus e instituições que resguardam a memória colonial. Mas a estética colonial produz sensações a partir da monumentalização da dor.
Não vou falar de estética. Não sou especialista em arte nem crítica de arte. Vou falar de sensações, de fúria, de raiva, das manifestações de dor que me gerou entrar nos museus na Europa, especialmente no reinado da Espanha. Tentarei plasmar esse cruzamento que me fizeram fantasiar em assaltar o museu. Sinto que é uma fantasia coletiva com outros corpos diaspóricos e dissidentes sexuais. Não estou escrevendo nenhuma novidade. A ideia de recuperação, de reocupação ou de minar os museus não é nada nova. É algo latente no imaginário popular daquelxs que escapamos, vivemos a fugitividade e nos encontramos com o roubado, com parte do nosso passado.
Minar o museu
Fred Wilson, artista negro estadunidense, em 1992 e há 500 anos do massacre colonial, decidiu “minar o museu” em Baltimore, USA. Esta intervenção coloca diferentes peças a dançar e a dialogar com o passado escravista-colonial e sua renovação no presente, “no quinto centenário”. Wilson realizou uma invasão silenciosa e esse modus operandi foi replicado no Museu of World Culture, em Gotemburgo, Suécia. O título da instalação era Site unseen: Dwellings of the Demons [4]. Este exercício de exorcizar demônios não vistos do museu evidentemente é uma ação de reativação do trauma e da ferida colonial e, ao mesmo tempo, é uma ação necessária, com a qual temos fantasiado muito.
Suturar queer à diáspora recupera essas práticas de desejo e subjetividades, que são tornadas impossíveis e inimagináveis, dentro da diáspora e do nacionalismo não convencionais (Gayatri Gopinath).
Me tremem as pernas com toda essa cultura me mudava agora mesmo [ao museu] este deveria ser meu novo apartamento
O que acontece se um grupo de negras trans e outras dissidentes sexuais fantasia com assaltar o museu? Elektra, Angel e Blanca, protagonistas da série Pose, o fazem. Assaltando o museu para assaltar a estética. Para tirar-lhe a coroa e os trajes reais e desfilar no ballroom/ salão do baile.
A dívida
O tema dos artefatos culturais roubados é uma parte pequena mas significativa do debate sobre o legado colonial. As 15 nações do Caribe que forma o CARICOM a endereçaram diretamente, este 2013, quando convidaram a Europa a um diálogo reparador das sequelas da escravidão, do colonialismo e do genocídio (sua chamada segue sem resposta). O enorme valor econômico das peças roubadas, como o busto de Nefetiti, estimada em 350 milhões de Euros, semeia a questão das reparações financeiras do colonialismo
Fatima El-Tayeb, Reclaiming Nefertiti, em en: https://www.contemporaryand. com/magazines/fatima-el-tayeb-reclaiming-nefertiti/
O busto de Nefertiti se encontra no Museu Neues de Berlin, na famosa ‘ilha dos museus”, a cidade e o governo alemão se negam firmemente a devolvê-lo ao Egito, em que pese, as autoridades egípcias exigem exatamente isto desde 1925
Fatima El-Tayeb, Reclaiming Nefertiti, em en: https://www.contemporaryand. com/magazines/fatima-el-tayeb-reclaiming-nefertiti/
“i can’t believe we made it”
Beyonce, Apeshit
Beyonce assalta o museu. Cria uma coreografia de corpos negros frente a peças de arte icónicas. Se posiciona no Louvre frente ao quadro da consagração de Napoleão de 1804. Mesmo ano da independência do Haiti, a partir da revolução negra e de resistência ao massacre que fizeram os franceses em terras do Caribe. Essa consagração não é nada consagrada pelas narrativas coloniais. Assaltar o museu significa invadir os espaços que produzem serializadamente a estética do ‘belo’ a partir dos corpos brancos, esculpidos, representados desde, por e para a supremacia branca.
Quando xs negrxs e xs corpxs bandidxs, corpos ilegalizadxs pela supremacia branca, ocupamos o museu, são ações de desobediência estética, são ações políticas de imaginação, de viagem ao passado, de efervescência das recordações e desejos de recuperação.
Entrar no museu e nos espaços de arte implica submetemo-nos a um aparato de disciplinamento estético de nossos olhares. Esta maquinaria foi construída pela supremacia branca para produzir subjetividad(es), “sensações diante do belo”, desejabilidade diante “do branco” como corpo político universal. Esta imagem do vídeo de Beyonce revive meus rechaços aos museus mas, ao mesmo tempo, me convida a invadir o museu para reelaborar a história, para que a raiva brote e que as sensibilidades múltiplas da diáspora se multipliquem e manchem a branquitude.
Bich, better have my corn
Em 2015 me encontrava em Toulouse, França, com Duen Sachi e decidimos assaltar um museu. Era uma ação de ira sudaka diante da indignação de ver sequestrados distintos tipos de milho procedentes de Abya Yala no Museu de Ciência Natural de Toulouse. O guarda da segurança não permitiu que fotografássemos a mostra: milhos.
Ação performática Bich, better have my corn, Toulouse, 2015
Negras Malas
Nao (navaja), uma flor do Chocó Colombiano [5], me convidou a invadir o Museo Del Prado em Madri, com sua proposta Negras Malas [6]: um projeto audiovisual imersivo que reúne diferentes aspectos da identidade afrodiaspórica feminina. O Prado, igual ao resto da Espanha, é um espaço de vigilância e de criminalização dxs corpxs negrxs, dxs corpxs diasporicxs provenientes das ex-colônias. Sempre nos vêm como se viéssemos roubar o museu.
Ao entrar no Museu nos recebe Carlos V e O Furor. Uma escultura que rende culto ao massacre colonial. Uma escultura da dor e da exaltação da escravidão. A representação do homem branco europeu controlando com correntes o furor dxs negrxs selvagens. Carlos V é o legado do Plus Ultra, o mundo sem limites que pertence a Espanha. Lema que sintetiza a pulsão de conquista do homem branco espanhol.
“O Museo Nacional del Prado, desde que foi inaugurado em 1819 e ao largo de sua história centenária, cumpriu com a alta missão de conservar, expor, enriquecer o conjunto de coleções e obras de arte que, estreitamente vinculadas à história da Espanha, constituem uma das mais elevadas manifestações de expressão artística de reconhecido valor universal”
As negras malas foram surpreendidas ao tentar fotografar. As negras malas foram perseguidas corredor por corredor As negras malas disparamos no museu. As negras malas também sentiram as sensações diante dos corredores imensos, da multidão de corpos brancos, da realeza, “do Real”, da violência branca, da violência “Real”. Estas negras malas assaltamos o Museo del Prado com nossos corpos não perfeitamente belos como as esculturas que estão ali. As negras malas não fomos deportadas, ainda que sim, com o olhar policial da normatividade branca. As negras malas escapamos. As negras malas sempre somos fugitivas.
Modus operandi: ações anti-coloniais
Desde Ayllu armamos um modus operandi para realizar uma rota poética de assaltos imaginários as instituições coloniais: do Arquivo de Índias e o Museu da América ao parque temático das Caravelas de Colombo, em Huelva. Cada um desses espaços reativam a impotência ante o saqueio e o massacre.
Nunca pensei estar no Arquivo Geral das Índias. Quando estava na 8a série meu professor disse que havia ido a Espanha a revisar o Arquivo das Índias. Ali foi a primeira vez que escutei sobre esse “fantasioso lugar”. Espanha segue chamando “as índias” o território de Abya Yala e o Caribe. Segue produzindo essa fantasia colonial. Essa fabulação que mantém a Espanha em sua negação de seu passado colonial e da palavra negro – para referir-se a pessoas escravizadas – aparece ainda como categoria de busca no Arquivo Geral das Índias.
Oitenta milhões de registros tem o arquivo das índias. Não nos bastaria a vida para ler oitenta milhões de relatos de massacre, “justiçamento” e aniquilação, resistências e rebeliões. Com minhxs companheirxs de Ayllu fantasiamos fazer uma ponte com todos esses documentos e cruzar o Atlântico. Talvez a poesia, e fantasiar com ela, sirva para curar.
Fantasiar não significa esquecer, significa reelaborar as narrativas de dor. Retomar o arrancado. Devolver o roubado. Espanha é especialista em retornos quentes [7] : estratégia política do sistema de controle migratório que implica a expulsão e devolução de pessoas migrantes, irregularizadas pelo estado espanhol. Espanha devolve os corpos que “não pertencem” a esse território, mas ainda não devolve tudo que não pertence a esse território.
Devolver e remexer fazem sentido em uma mesma oração. Ao voltar a Heuva e ao cais das Caravelas de Colombo estávamos remexendo a história. Relendo essa narração feita por Espanha e convertida em uma parque de diversões estilo Disney World. Espanha, com seus 14 monumentos a Colombo, com nomes de ruas dedicados a escravistas, com estações de metrô em honra de “conquistadores”, com as coleções do Museu da América e o Museu de Antropologia, faz esplendor de sua amnésia colonial seletiva. Um período da história que não quer ser desempoeirado, ou quer, mas sob o relato único. Nossas ações anti-coloniais foram ações poéticas para assaltar instituições coloniais, ações de “sutura da ferida“, um modus operandi que segue trabalhando sem anestesia a mesma ferida, ainda aberta, talvez infecta.
Tradução: Cíntia Guedes
Notas
[1] Fatima El-Tayeb, “La vida queer de la diáspora”. Conferência nas Jornadas “Descolonizar el Museu”, Museu de Arte Contemporânea de Barcelona (Macba), 2015. Tradução própria. Propriamente proscrita trans-fronteiriça-barroca sudaka-afrocaribenha.
[2] Instituição branca. Nota da tradutora: O texto original está escrito em espanhol e algumas expressões são deixadas pelx autorx em inglês, o que evidencia o contexto no qual tais expressões foram forjadas. Escolhemos deixar as expressões em inglês no corpo do texto, bem como alguns nomes de instituições e obras, e apontar em notas suas traduções para o português.
[3] Alteridade
[4] Local invisível: moradias dos demônios.
[5] Nota da tradutora: estado colombiano caracterizado pela floresta equatorial, banhado pelas águas caribenhas e pelo oceano Pacífico.
[6] Ver projeto: https://negrasmalas.hotglue.me/
[7] Retornos quentes, são as políticas anti-imigrantes e racistas operadas pelo Estado espanhol na fronteira Sul – com Marrocos – pela qual migrantes – em geral pessoas negras de África – são expulsas imediatamente, devolvidas de modo instantâneo ao território africano.